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terça-feira, 8 de agosto de 2023

As três ondas de democratização e de autocratização: uma nova abordagem - Augusto de Franco (Dagobah)

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    As três ondas de democratização e de autocratização: uma nova abordagem


    Neste trabalho refaço os períodos das ondas de democratização e de autocratização, originalmente sugeridas por Samuel P. Huntington (1991) em Democracy’s Third Wave (Journal of Democracy Vol.2. No.2 Spring 1991) usando a classificação do V-Dem Institute, a partir do mapa dinâmico https://ourworldindata.org/democracy#interactive-charts-on-democracy.

    Usando essas projeções históricas (retroativas) do Our World in Data (Democracy Data Explorer) 1789-2022 com base nos critérios da classificação de Lührmann et al. (2018) (1) e a avaliação dos especialistas do V-Dem, redesenhei os períodos originais de Huntington (2) de sorte a chamar a atenção para o que é fundamental nas democracias: o seu conteúdo (ou a sua “substância”) liberal.

    Preliminarmente advirto para as limitações da presente investigação. A primeira limitação é que todo estudo retroativo é anacrônico: conceitos que fazem sentido hoje podem não fazer (o mesmo sentido) no passado.

    A segunda limitação é que toda classificação é arbitrária: separar os regimes políticos em quatro tipos (democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada), como faz o paperde Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018) – Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes – permite captar fotografias, mas não o filme (3). O importante aqui é ver que democracias (liberais ou eleitorais) se distinguem de autocracias (eleitorais ou fechadas) pelo grau de liberalismo político que apresentam (4). Um regime democrático liberal tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático eleitoral. Um regime é democrático na medida em que observa o princípio liberal da democracia, que implica uma visão negativa do poder político: não propriamente a capacidade do governo de se impor à sociedade, mas a possibilidade da sociedade de controlar o governo.

    A terceira limitação é que estamos falando aqui apenas de regimes (modos políticos de administração do Estado) e não da democracia em geral (a democracia como ideia, a democracia como modo-de-vida), quer dizer, como movimento de desconstituição de autocracia (o que ela é, geneticamente). Ou seja, a periodização de ondas de democratização e autocratização da era moderna não revela que a democracia possa ter surgido antes em vários lugares. Na verdade, ressurgiu no século 17, na Inglaterra, no movimento de resistência do parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I. E nos EUA, na luta pela independência da Inglaterra. Movimentos semelhantes, aliás, devem ter surgido em vários lugares durante os dois milênios posteriores ao fim da primeira democracia ateniense (de 322 a.C. a 1670) – ou até antes, quem sabe? – mas que não lograram virar regimes políticos stricto sensu (com um mínimo de estabilidade) (5).

    A ONDA PRÉ-DEMOCRÁTICA QUE DÁ NASCIMENTO A REGIMES ELEITORAIS

    Em geral considera-se que a história da democracia moderna começa com a Inglaterra e a Irlanda que se consolidam como regimes eleitorais em 1790 (os únicos do planeta naquele ano); em 1792 é a vez da França; e, em 1796, dos EUA, da Bélgica e da Holanda. Em 1800 começa uma regressão: voltamos a ter apenas Inglaterra, Irlanda e EUA como regimes eleitorais. Essa situação permanece até 1820. Em 1821 aparece outro regime eleitoral: a Colômbia. Em 1822, o Chile. Em 1823, a Espanha e o Peru. Em 1831, o Brasil. Em 1832, novamente a Bélgica. Em 1833, o Uruguai. Em 1835, a Bolívia. Em 1836, novamente a Espanha. Em 1839, Honduras. Em 1842, o México. Em 1844, a República Dominicana. Em 1848, novamente a Holanda e a França, mas também a Suíça, a Hungria e a Eslováquia. Até que então, em 1849, surge a primeira democracia da era moderna, na Suíça – e já surge como uma democracia liberal. Esses episódios que vão de 1790 a 1848 podem ser enquadrados numa onda pré-democrática, que deu nascimento a regimes eleitorais (muitas vezes de curta duração). Todos esses regimes eram eleitorais, mas não eram democracias pelos critérios adotados pelo V-Dem Institute (6) e, em parte, também por outros dois reconhecidos institutos que monitoram os regimes políticos no mundo: a The Economist Intelligence Unit (7) e a Freedom House (8). Eram, a rigor, autocracias eleitorais.

    Parece claro que não se pode classificar regimes do passado exatamente com os critérios de hoje, mas – admitida essa licença teórica para efeitos mais descritivos do que analíticos – isso é preferível a confundir regimes eleitorais com democracias, sobretudo porquanto os regimes autocráticos mais numerosos do planeta hoje são eleitorais.

    Na verdade a história da democracia na era moderna e, portanto, a primeira onda de democratização, começa em 1849, com a democracia liberal da Suíça (quando ainda não havia nenhuma outra democracia no mundo, nem mesmo alguma democracia eleitoral).

    A tabela abaixo resume a periodização que será descrita na sequência.

    PRIMEIRA ONDA DE DEMOCRATIZAÇÃO

    1849-1921

    É a onda de renascimento (ou segunda invenção) da democracia como modo político representativo de administração do Estado-nação. Essa primeira onda de democratização espalha – em pouco mais de 70 anos – dezesseis democracias pelo mundo: oito liberais – Suíça (em 1849), Austrália (em 1858), Bélgica (em 1897), Dinamarca (em 1902), Noruega (em 1906), Nova Zelândia (em 1913), Holanda (em 1918), Inglaterra (em 1919); e oito eleitorais – França (em 1874), Nova Zelândia (em 1887), Islândia (em 1904), Finlândia (em 1918), Argentina (em 1918), Alemanha (em 1919), Uruguai (em 1920), Estados Unidos (em 1921) e Canadá (em 1921).

    É interessante notar que sete dos regimes democráticos da primeira onda de democratização já surgem como democracias liberais sem terem sido democracias eleitorais (Suíça, Austrália, Bélgica, Dinamarca, Noruega, Holanda e Inglaterra). E que a democracia americana, tão decantada como “a primeira democracia” nas histórias dos regimes políticos modernos, foi (juntamente com o Canadá) o rebento mais tardio da primeira onda.

    1900

    No início do século 20, precisamente no ano de 1900, a Inglaterra e os EUA eram regimes eleitorais, mas não democracias. Tínhamos naquela data três democracias liberais (Suiça, Bélgica e Austrália) e duas democracias eleitorais (França e Nova Zelândia). Tudo isso diante de vinte e dois regimes eleitorais que eram autocráticos (Canadá, EUA, República Dominicana, Honduras, El Salvador, Costa Rica, Equador, Perú, Bolívia, Brasil, Paraguai, Argentina, Chile, Uruguai, Inglaterra e Irlanda, Noruega, Holanda, Eslováquia, Hungria, Itália e Grécia).

    PRIMEIRA ONDA DE AUTOCRATIZAÇÃO

    1922-1944

    Depois da primeira onda de democratização da era moderna (1849-1921), ocorre a primeira onda reversa, de autocratização, que assola o mundo. É a onda totalitarista. Ela vai, segundo a periodização aqui proposta, de 1922 a 1944, com o surgimento dos totalitarismos: fascismo e nazismo (que vão até 1945) e stalinismo (que se prolonga até 1953).

    1922

    A situação do mundo no início dessa onda (em 1922) era a seguinte:

    Não havia nenhuma democracia liberal nas Américas, somente três democracias eleitorais (o Canadá, os EUA e a Argentina). Todo os demais países eram autocracias eleitorais ou autocracias fechadas.

    Não havia nenhuma democracia (liberal ou eleitoral) na África (que era composta por autocracias fechadas, com exceção da Libéria e da África do Sul, que eram autocracias eleitorais).

    Na Ásia (incluindo Oriente Médio – sem a Turquia) não havia nenhuma democracia (liberal ou eleitoral). A região era composta totalmente por autocracias fechadas.

    Na Oceania, uma honrosa exceção: Austrália e Nova Zelândia já eram democracias liberais.

    Na Europa havia apenas sete democracias liberais (Islândia, Dinamarca, Suécia, Suíça, Reino Unido, Bélgica e Holanda). E onze democracias eleitorais (a Finlândia, a Noruega, a Irlanda, a França, a Alemanha, a Áustria, a República Checa, a Eslováquia, a Polônia, a Lituânia e a Estônia). Mas, também oito autocracias fechadas (a Espanha, a Romênia, a Bósnia, a Eslovênia, a Bulgária, a Macedônia do Norte, a Sérvia e Malta) e sete autocracias eleitorais (a Itália, Portugal, a Grécia, a Eslovênia, a Hungria, a Albânia e a Turquia).

    Nos anos seguintes a situação iria piorar muito para a democracia.

    A DÉCADA DE TREVAS: 1934-1944

    Stalin chega ao poder em 1927 (e fica até 1953). Cabe registrar que a Rússia, uma autocracia fechada (czarista) passa a ser, pontualmente, uma autocracia eleitoral em 1917 (ano da revolução bolchevique) e logo volta a ser, no ano seguinte (1918), uma autocracia fechada (assim permanecendo até 1990). Entre 1936 a 1938 ocorre, sob o comando stalinista, o grande expurgo na União Soviética, talvez o evento, até então, mais tenebroso da história promovido por um regime político na ausência de guerra em um só país (com o extermínio policial-partidário de mais de 1 milhão de pessoas, 1 mil por dia).

    Mussolini chega ao poder em 1922 (ano da sua Marcha sobre Roma) e fica até 1943. Em 1924 a Itália (que nunca antes chegou a ser uma democracia, nem liberal, nem eleitoral) passa ser uma autocracia fechada.

    Hitler chega ao poder em 1933 e fica até 1945. A Alemanha, que era uma democracia eleitoral, passa a ser uma autocracia eleitoral em 1933 e, no ano seguinte (1934), torna-se uma autocracia fechada.

    De 1934 a 1944 temos uma década de trevas instaurada pelos totalitarismos. No final desse período (1944) restam apenas sete democracias liberais no mundo: Islândia, Suécia, Suíça, Reino Unido e Irlanda, Austrália e Nova Zelândia. Pouquíssimas também são as democracias eleitorais: apenas quatro – Canadá, EUA, Uruguai e Finlândia. Na América do Sul e na América Central resta apenas uma democracia. Na Europa, cinco democracias liberais e uma eleitoral. Na África, nenhuma democracia. Na Ásia e Oriente Médio nenhuma democracia. A exceção de sempre é a Oceania, com suas duas democracias liberais (Austrália e Nova Zelândia).

    SEGUNDA ONDA DE DEMOCRATIZAÇÃO

    1945-1961

    A partir do final da Segunda Grande Guerra os regimes políticos no mundo voltam novamente a se democratizar. Foi uma onda curta, se comparada à primeira (1849-1921). Essa onda derrotou o nazifascismo, mas não o totalitarismo (pois o stalinismo remanesceu).

    Em 1946 a Argentina deixa de ser uma autocracia fechada e passa a ser uma autocracia eleitoral, assim como a Itália, a Bulgária, a Turquia, o Afeganistão, a Índia, Bangladesh, o Laos e o Vietnam.

    Em 1947 o mesmo ocorre com o Equador, a Grécia, a Bulgária, a Polônia, a Síria, as Filipinas.

    Em 1948 a Coréia do Sul também passa de autocracia fechada para autocracia eleitoral.

    Até então, entretanto, quase nada ainda de democracias.

    Em 1950 as Américas já têm cinco democracias eleitorais: Canadá, EUA, Costa Rica, Suriname e Uruguai. E nenhuma democracia liberal.

    As democracias liberais se concentrarão então na Europa (Islândia, Irlanda, Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia) e na Oceania (Austrália e Nova Zelândia). Ainda na Europa, a Itália e a Austria passam a ser democracias eleitorais.

    Na Ásia, Sri Lanka para a ser uma democracia eleitoral. Em 1952 a Índia passa a ser uma democracia eleitoral e o Japão uma democracia liberal. Em 1956 a Indonésia passa a ser uma democracia eleitoral.

    Em 1959 o Chile e a Venezuela passam a ser democracias eleitorais. No mesmo ano, com a revolução castrista, Cuba regride para uma autocracia fechada.

    Apesar do processo já iniciado de descolonização, a África continua sem ter nenhuma democracia (eleitoral ou liberal).

    O grande feito dessa segunda onda de democratização foi a conversão das autocracias fechadas do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) à democracias.

    SEGUNDA ONDA DE AUTOCRATIZAÇÃO

    1962-1988

    A segunda onda de autocratização é marcada pela primeira grande guerra fria. Esse estado de guerra, opondo EUA à União Soviética, diz-se que se instalou em 1947 (com um famoso discurso de Harry Truman, atribuindo aos Estados Unidos o papel de liderar a luta contra o avanço do comunismo na Europa e no mundo) e se prorrogou até 1991 (com a bancarrota da URSS), mas teve seu apogeu nos anos 60 a 80 do século 20.

    Eventos relevantes desse período em que o mundo se polarizou em dois blocos foram: a revolução chinesa de 1949; a guerra da Coréia em 1950 e a divisão das duas Coréias em 1953; a criação da Otan em 1949 e do Pacto de Varsóvia em 1955; a revolução cubana em 1959; a ereção do muro de Berlim em 1961; a guerra do Vietnam entre 1959 e 1975; a crise dos mísseis em Cuba em 1962; o surgimento de regimes militares na América Latina e em outras regiões do mundo – na América do Sul esse ciclo, que foi iniciado no Brasil em 1964, disseminou várias ditaduras militares pela região, chegando à Bolívia (1964), à Argentina (1966, e depois 1976), ao Chile e ao Uruguai (1973); por último, a guerra do Afeganistão entre 1979 e 1989.

    Durante o período aqui considerado como o da segunda onda de autocratização (1962-1988) houve importantes lampejos de democratização: os EUA passam a ser uma democracia liberal em 1969 e o Canadá em 1976. Portugal (como consequência da Revolução dos Cravos), vira uma democracia eleitoral em 1976 e liberal no ano seguinte (1977). A Espanha deixa de ser uma autocracia fechada em 1975 e se converte em uma democracia eleitoral em 1978 e liberal em 1983. A Coréia do Sul passa a ser uma democracia eleitoral em 1988. As ditaduras militares se desconsolidam na América do Sul, restando apenas uma ditadura fechada (o Chile). O Uruguai é uma democracia eleitoral (a única das Américas do Sul e Central).

    1962

    No início do período considerado (1962), as Américas têm dez autocracias fechadas (Cuba, Haiti, República Dominicana, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Guiana, Peru, Argentina e Paraguai) e sete autocracias eleitorais (México, El Salvador, Panamá, Colômbia, Equador, Brasil e Bolívia). A situação degeneraria nos anos seguintes, no ciclo dos golpes militares: em 1978, Equador, Perú, Bolívia Chile, Argentina, Uruguai, Panamá, Nicarágua, Honduras, Cuba e Haiti eram autocracias fechadas e México, República Dominicana, Guatemala, El Salvador, Honduras, Colômbia, Guiana, Brasil e Paraguai eram autocracias eleitorais.

    Em 1962, na África, não há nenhuma democracia (eleitoral ou liberal).

    Na Europa, Espanha e Portugal são autocracias fechadas. A Grécia e a Romênia são autocracias eleitorais. Todos os demais países da Europa do Leste são autocracias fechadas.

    Na Ásia, incluindo o Oriente Médio, só há três democracias eleitorais (Israel, Índia e Sri Lanka) e uma democracia liberal (o Japão). A Turquia é uma democracia fechada.

    Austrália e Nova Zelândia continuam sendo democracias liberais.

    1988

    Ao final do período considerado como o da segunda onda de autocratização (1988) ainda existem nas Américas nove autocracias eleitorais: o México, o Haiti, a Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Colômbia, Guiana, Paraguai; e três autocracias fechadas: Cuba, Panamá e Chile.

    A África tem somente duas democracias eleitorais (o Senegal e Botswana) e nenhuma democracia liberal.

    A Europa ocidental é composta por um bloco mais sólido de democracias liberais (Finlândia, Noruega, Suécia, Dinamarca, Islândia, Reino Unido, Irlanda, Alemanha ocidental, Áustria, Itália, Grécia, Suiça, Bélgica, Holanda, Espanha e Portugal). Mas a Europa do Leste continua compondo um bloco de autocracias fechadas, ainda sob o domínio da União Soviética (Letônia, Lituânia e Estônia, Polônia, Ucrânia, Eslováquia, Romênia, Moldávia, Bulgária, Sérvia, Bósnia, Macedônia do Norte, Albânia, Eslovênia, República Checa e Hungria).

    Na Ásia e Oriente Médio há apenas uma democracia liberal (o Japão) e duas democracias eleitorais (a Índia e a Coréia do Sul). Filipinas e Papua Nova Guiné são democracias eleitorais.

    Austrália e Nova Zelândia continuam sendo democracias liberais.

    TERCEIRA ONDA DE DEMOCRATIZAÇÃO

    1989-1999

    A terceira (e última, até agora) onda de democratização ocorreu na década mais favorável à democracia da era moderna (1989-1999). Ela começa, simbolicamente, com a queda do Muro de Berlim(em 1989), se consuma com a bancarrota da União Soviética (1991) e a conversão à democracia eleitoral das autocracias fechadas do Leste europeu, da Mongólia e da Rússia (pontualmente).

    A DÉCADA LUMINOSA

    Os anos 90 marcam o fim da guerra fria. Como já escrevi no meu livro mais recente, Como as democracias nascem (2023), “a humanidade teve uma janela aberta, por uma década, para poder respirar, depois da primeira guerra fria mundial. Um vento fresco soprou entre a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética (1989-1991) e o atentado às torres gêmeas do World Trade Center (2001)… [Naquele] interregno no trágico século 20… pudemos experimentar, entre outras coisas, o fim da guerra fria e da política de blocos, a expansão das democracias liberais, a ascensão de um chamado terceiro setor, a World Wide Web, o florescimento da blogosfera, a introdução da noção de capital social como variável sistêmica nas equações do desenvolvimento, o surgimento das teorias dos sistemas dinâmicos complexos adaptativos e a fundação da nova ciência das redes”.

    1992

    O apogeu dessa época foi o ano de 1992. Nas Américas, embora ainda restassem três autocracias fechadas (Cuba, Haiti e Perú) e seis autocracias eleitorais (México, Honduras, El Salvador, República Dominicana, Guiana e Paraguai), havia agora quatro democracias liberais (Canadá, EUA, Costa Rica e Uruguai) e onze democracias eleitorais (Jamaica, Nicarágua, Panamá, Colômbia, Venezuela, Equador, Suriname, Brasil, Bolívia, Chile e Argentina).

    Na África despontam cinco democracias eleitorais (Cabo Verde, Senegal, Benin, Namíbia e Botswana).

    Na Ásia, a Coréia do Sul se mantém como democracia eleitoral e virará uma democracia liberal no ano seguinte (1993). Taiwan, que já havia se convertido em democracia eleitoral em 1999, se prepara para virar uma democracia liberal (o que se consumará no ano 2000). O Japão segue sendo uma democracia liberal. A Índia e Bangladesh são democracias eleitorais, assim como a Mongólia, as Filipinas e Papua Nova Guiné.

    A Rússia vira pontualmente uma democracia eleitoral (apenas por um ano: o de 1992). As maiores transformações ocorrem porém no Leste europeu. Letônia, Lituânia, Belarus, Ucrânia, Moldávia, Romênia, Bulgária e até a Turquia e o Chipre, passam a ser democracias eleitorais. No Oriente Médio, Israel é uma democracia liberal.

    Todos os demais países da Europa – com excessão da Estônia, da Croácia, da Albânia (que são autocracias eleitorais) e da Bósnia e da Macedônia do Norte (autocracias fechadas) – são democracias liberais (Finlândia, Noruega, Dinamarca, Islândia, Polônia, Eslováquia, Eslovênia, Hungria, República Checa, Áustria, Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Irlanda, França, Itália, Espanha, Portugal, Grécia). Isso deve ter sido a maior concentração de democracias liberais contíguas (em um mesmo continente) em toda a história.

    Na Oceania, Austrália e Nova Zelândia permanecem como democracias liberais.

    1999

    A democracia continua avançando até o final da década.

    Ao final desse período (1999), nas Américas, restam apenas duas autocracias eleitorais (o Perú e o Haiti) e uma autocracia fechada (Cuba). Todo o restante do continente americano é composto por cinco democracias liberais (Canadá, EUA, Costa Rica, Uruguai e Chile) e por dezesseis democracias eleitorais (México, El Salvador, Guatemala, Honduras, República Dominicana, Jamaica, Panamá, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Equador, Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina).

    Na África há novidades. Surgem democracias eleitorais no Mali, em Gana, na Tanzânia, no Malawi e em Madagascar. E brotam, pela primeira vez no continente, duas democracias liberais: a África do Sul e Botswana.

    Na Europa, a Estônia e a Lituânia passam a ser democracias liberais. Mas Rússia, Belarus e Ucrânia decaem para autocracias eleitorais. Em todo continente europeu resta apenas uma democracia fechada (Kosovo).

    Na Ásia também há novidades. Coréia do Sul é uma democracia liberal, assim como o Japão (as duas únicas do continente). Mongólia, Índia, Bangladesh,Taiwan, Filipinas e Papua Nova Guiné, continuam sendo democracias eleitorais, mas surgem dois novos regimes de mesmo tipo: Tailândia e Indonésia.

    Na Oceania, Australia e Nova Zelândia permanecem como democracias liberais.

    O que virá em seguida, porém, é aterrador!

    TERCEIRA ONDA DE AUTOCRATIZAÇÃO

    2000 em diante

    Eis a onda de autocratização sob a qual estamos imersos, alguns avaliam que desde meados dos anos 90, mas na presente periodização a partir do dealbar do século 21. O marco menos inequívoco seria o início da recessão democrática (por volta de 2006), quando o número líquido de democracias, como diagnosticou Larry Diamond (2015) (9), parou de crescer no mundo. É arriscado nomeá-la como a onda da segunda grande guerra fria, mas há indicativos de que tal caracterização possa vir a ser aplicada. Poderia também ser chamada de onda de ascensão dos novos populismos do século 21 como principais adversários da democracia liberal.

    De qualquer modo, são eventos associados à terceira onda de autocratização:

    A subida ao poder na Rússia de Vladimir Putin em 1999-2000.

    A ascensão do jihadismo ofensivo islâmico, o atentado terrorista ao WTC (2001), a guerra contra o terror e o unilateralismo em política externa por parte dos EUA (sob o segundo governo Bush).

    O surgimento do populismo de esquerda na América Latina levando a autocracias eleitorais (Venezuela, Nicarágua) e à regimes eleitorais parasitados por forças políticas não-liberais (Bolívia, Equador, El Salvador, Paraguai, Honduras, Argentina, Peru, México, Brasil).

    A ascensão do populismo-autoritário de extrema-direita (Cinco Estrelas e Lega de Salvini, Le Pen, Brexit, Trump, Bolsonaro e consolidação de autocracias eleitorais de extrema-direita na Hungria, Turquia e Índia).

    O início da formação de um novo eixo autocrático (juntando autocracias fechadas e eleitorais como Cuba, China, Rússia, Irã, Síria, Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Índia) além de regimes eleitorais parasitados por populismos de esquerda e de extrema-direita, com tendência a instaurar uma segunda grande guerra fria.

    A invasão da Ucrânia pela ditadura russa (em 2014 e, mais amplamente, em 2022) e a formação de uma coalizão das democracias liberais para conter o avanço do novo eixo autocrático.

    No momento (2023, em dados de 2022), restaram apenas, segundo a The Economist Intelligence Unit, 24 democracias plenas; segundo o V-Dem, em 179 países: 32 democracias liberais e 58 democracias eleitorais diante de 56 autocracias eleitorais e 33 democracias fechadas como se pode ver na tabela abaixo (10):

    A terceira onda de autocratização está em curso (em 2023) e não se sabe quanto tempo durará, nem quais serão seus efeitos na desconsolidação da democracia.

    O FLORESCIMENTO DOS NOVOS POPULISMOS DO SÉCULO 21

    Um novo populismo de esquerda – guerreiro, de raiz marxista, que usa a democracia eleitoral contra a democracia liberal – surge na América Latina. Esse neopopulismo foi usinado na ditadura cubana, embora o regime cubano não seja populista. Surge, inicialmente, o regime sandinista de primeira geração na Nicarágua revolucionária (com Daniel Ortega: 1979-1984); depois vêm Venezuela (com Hugo Chávez e Nicolás Maduro: 1999 aos dias atuais), Brasil (com Lula e Dilma: 2003-2016 e Lula novamente a partir de 2023), Bolívia (com Evo Morales e Arce: 2006-2019 e 2020 aos dias atuais), Honduras (com Zelaya e Xiomara: 2006-2009 e a partir de 2022), Nicarágua (com Ortega novamente, de 2007 aos dias atuais), Equador (com Correa e Moreno: 2007-2021), Paraguai (com Lugo: 2008-2012), El Salvador (com Mauricio Funes e Salvador Cerén: 2009-2019), Argentina (com os Kirchners e Fernández: 2003-2015 e 2019 aos dias atuais), México (com Obrador: 2018 aos dias atuais), Colômbia (com Petro: 2022 aos dias atuais), Peru (com Castillo: 2021-2023 e Boluarte: 2023 aos dias atuais).

    Também surge, sobretudo a partir do final da primeira década do século 21, um novo populismo de extrema-direita. Esse populismo-autoritário irrompe, talvez, com a chegada de Vladimir Putin ao poder, na Rússia (1999-2000 aos dias atuais), mas só se expande a partir da ascensão do Movimento 5 Estrelas na Itália (2009-2019) e de Matteo Salvini (2018-2019, seguido pela eleição de Giorgia Meloni: 2022 aos dias atuais); do protagonismo de Marine Le Pen na França (a partir de 2012); do governo de Orbán, na Hungria (2010 aos dias atuais); do governo de Erdogan, na Turquia (2014 aos dias atuais); da ascensão de Narendra Modi, na Índia (2014 aos dias atuais); do Brexit (2016, com consequências nefastas nos nossos dias); do governo de Duda, na Polônia (a partir de 2015); do governo de Duterte, nas Filipinas (2016-2022); da eleição e do governo de Trump, nos Estados Unidos (2016-2021) e do movimento populista de Steve Bannon (2016 aos dias atuais); e da eleição e do governo de Bolsonaro no Brasil (2018-2022).

    Acompanhemos as principais mudanças de regime ocorridas nas duas primeiras décadas do século 21:

    Nas Américas, em 2002 surge a autocracia eleitoral da Venezuela e, em 2007, da Nicarágua. Ainda nas Américas, Honduras passa a ser uma autocracia eleitoral em 2009. Cuba permanece (desde 1959) sendo uma autocracia fechada. E o Haiti (desde 2006) uma autocracia eleitoral. El Salvador e Guatemala passam a ser autocracias eleitorais em 2021.

    Na África, as duas democracias liberais que havia no ano 2000 (África do Sul e Botswana), desapareceram em 2022. No ano 2000 havia na África oito democracias eleitorais (Senegal, Mali, Burkina Faso, Niger, Gana, Benin, Namíbia e Madagascar). Em 2022 havia onze (Senegal, Serra Leoa, Libéria, Gana, Niger, Zâmbia, Malawi, Kenia, Namíbia, Botswana e África do Sul), porém várias delas parasitadas por populismos ou capturadas pelo eixo autocrático, via Rússia ou China.

    Na Europa, em 2010 a Hungria decai de democracia liberal para democracia eleitoral e, em 2018, passa a ser uma autocracia eleitoral. Em 2013 a Turquia, que era já uma democracia eleitoral, passa a ser uma autocracia eleitoral. A Sérvia e a Albânia continuam sendo autocracias eleitorais. A Ucrânia volta a ser uma autocracia eleitoral em 2010 e só vai readquirir seu status democrático (eleitoral) em 2020; mas em fevereiro de 2022, violando o direito internacional e a carta da ONU, as tropas imperiais russas do ditador Vladimir Putin invadem em larga escala o país (em 2014 já haviam se intrometido no território ucraniano, anexado a Criméia e colonizado o Donbass com forças camufladas de separatistas, mas na verdade comandadas por Moscou).

    Na Ásia, as Filipinas passam a ser democracia eleitoral em 2004, mesmo status da Malásia. A Tailândia vira uma autocracia eleitoral em 2006, em seguida oscila e passa a ser uma autocracia fechada em 2017. A Índia e Bangladesh voltam a ser autocracias eleitorais em 2017. O Afeganistão – sob o domínio do Talibã – passa de autocracia eleitoral para autocracia fechada em 2021. Em 2022 restam apenas cinco democracias eleitorais na Ásia: a Mongólia, o Nepal, o Sri Lanka (que já virou ou está a um passo de virar uma autocracia), a Indonésia e o Timor Leste; e três democracias liberais: o Japão, a Coréia do Sul e Taiwan. No Oriente Médio (sem a Turquia), apenas Israel.

    A Oceania continua sendo o ponto fora da curva, com as democracias liberais mais estáveis do planeta (Austrália e Nova Zelândia).

    Em resumo, o quadro é péssimo para a democracia (liberal ou eleitoral) em 2022.

    Entre todos os países grandes do mundo (os quatorze países com mais de 100 milhões de habitantes), segundo o V-Dem Institute, só temos duas democracias liberais (e olhe lá, porque uma delas – os EUA – está sob risco de decair para uma democracia apenas eleitoral, só não tendo se consumado essa queda em virtude da resiliente cultura democrática da sociedade americana, em especial nas costas Leste e Oeste; a outra democracia liberal é o Japão). E temos apenas três democracias eleitorais (a Indonésia, de corte autoritário, o Brasil e o México). Todo o restante é composto por autocracias (fechada, como a China; e eleitorais, como a Índia, o Paquistão, a Nigéria, Bangladesh, Rússia, Etiópia, Filipinas e Egito).

    Segundo a The Economist Intelligence Unit, na lista dos países com mais de 100 milhões de habitantes só temos uma democracia plena (o Japão). Há cinco democracias defeituosas (Índia, EUA, Indonésia, Brasil e Filipinas), quatro regimes híbridos (Paquistão, Nigéria, Bangladesh e México) e quatro regimes autoritários ou ditaduras (China, Rússia, Etiópia e Egito).

    E o que parece pior do que tudo é que, na atual recessão democrática, as menos de sessenta democracias eleitorais que ainda existem, muitas das quais parasitadas por neopopulismos (ditos de esquerda) ou por populismos-autoritários (ditos de extrema-direita), não estão conseguindo se transformar em democracias liberais.

    CONCLUSÃO

    Haverá uma quarta onda de democratização?

    Não se sabe se haverá – e nem, se houver, quando ocorrerá – uma quarta onda de democratização. O que se sabe é que, se não houver, não haverá futuro para a democracia no século 21 e além. Se houver, não se sabe se será parecida com as três ondas anteriores.

    Estamos numa onda de autocratização porque está havendo… autocratização! Ou seja, como escreveram Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019) (11), está havendo democratização em sentido inverso, com recessão democrática (processos de autocratização ocorrendo dentro de democracias), ruptura democrática (democracias virando autocracias) e consolidação autocrática (traços democráticos declinando em situações já autoritárias).

    Para que haja uma nova onda de democratização seria necessário que houvesse autocratização em sentido inverso, quer dizer, recessão autocrática (processos de democratização ocorrendo dentro de autocracias), ruptura autocrática (autocracias virando democracias) e consolidação democrática (traços autocráticos declinando dentro de democracias). Em outras palavras, para usar a classificação de Lührmann-Tannenberg-Lindberg (2018) (12) – embora não se possa esperar que esses processos funcionem tão simetricamente assim – se houver uma onda de democratização, democracias fechadas deveriam passar a ser democracias eleitorais; autocracias fechadas e eleitorais deveriam passar a ser democracias eleitorais e liberais; e democracias eleitorais deveriam virar democracias liberais (13). O conteúdo ou a “substância” liberal do agregado total dos regimes políticos deveria aumentar (14).

    De qualquer modo, seria razoável esperar que, num sentido geral, numa nova onda de democratização, o número de autocracias deveria diminuir (ou que o número de democracias deveria aumentar). É difícil, porém, imaginar que os grandes países do mundo, em sua maioria, vão se democratizar a ponto de seus regimes autocráticos fechados ou eleitorais virarem, nos curto ou médio prazos, democracias liberais (ou até mesmo democracias eleitorais). Quem imagina isso ocorrendo com a China, com a Etiópia ou o Egito? Ou com a Índia, o Paquistão, a Nigéria ou Bangladesh? Mesmo as democracias eleitorais da Indonésia, do Brasil e do México não dão sinais de que passarão a ser democracias liberais (parasitadas que estão, as duas últimas, pelo populismo de esquerda – que é não-liberal). Claro que tudo pode acontecer diante de grandes disrupções, swarmings civis generalizados, catástrofes globais por razões ambientais ou políticas (como uma nova guerra mundial), falência sistêmica do eixo autocrático ora em formação (como ocorreu na terceira onda de democratização com o colapso da União Soviética), mas não há indicativos de que isso ocorrerá, não pelo menos nos curto e médio prazos.

    É possível, porém, que a democracia se estilhace, gerando processos democráticos de modo distribuído em países (sobretudo pequenos) e em não-países: ilhas democráticas na rede, para evocar o romance de Bruce Sterling (1989) (15). Talvez isso – a quarta onda de democratização – corresponda à uma terceira invenção da democracia, mas este já é assunto para outra investigação.

    Notas

    (1) Cf. Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018) – Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes. DOI: <https://doi.org/10.17645/pag.v6i1.1214>.

    (2) Cf. Samuel P. Huntington (1991). Democracy’s Third Wave. Journal of Democracy Vol.2. No.2 Spring 1991. O artigo original pode ser baixado aqui.

    (3) Lührmann et al. op. cit.

    (4) Cf. Franco, Augusto (2019). O debate sobre se pode haver democracia i-liberal. Disponível em https://dagobah.com.br/o-debate-sobre-se-pode-haver-democracia-i-liberal/

    (5) Todo o parágrafo é uma citação de Franco, Augusto (2023). Como as democracias nascem. Casas da Democracia: São Paulo, 2023.

    (6) Cf. Relatório do V-Dem 2023: https://dagobah.com.br/wp-content/uploads/2023/04/V-dem_democracyreport2023_lowres.pdf

    (7) Cf. Relatório da EIU (2022): https://dagobah.com.br/wp-content/uploads/2023/04/EIU-DI-final-version-report.pdf

    (8) Cf. Relatório da Freedom House (2022): https://dagobah.com.br/wp-content/uploads/2023/04/FH-Freedom-in-the-World-2022.pdf

    (9) Larry Diamond (2015). Facing up to the democratic recession. Journal of Democracy Volume 26, Number 1 January 2015 © 2015 National Endowment for Democracy and Johns Hopkins University Press.

    (10) A tabela foi extraída do relatório do V-Dem 2023, op. cit.

    (11) Cf. Lührmann, Anna, Lindberg, Staffan (2019). A third wave of autocratization is here: what is new about it? Democratization, Volume 26, 2019 – Issue 7, de onde foi tirada a figura.

    (12) Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018),op.cit.

    (13) Para além dos nomes usados para designar tipos de regime, na classificação de Lührmann-Tannenberg-Lindberg (2018), op.cit., considera-se aqui que toda democracia é, em alguma medida, liberal (e mais liberal do que iliberal ou não-liberal). Obviamente, um regime democrático liberal tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático (apenas) eleitoral (na classificação do V-Dem). Um regime democrático pleno tem um grau de liberalismo maior do que um regime democrático defeituoso ou do que um regime híbrido (na classificação da The Economist Intelligence Unit). Mesmo em regimes autocráticos, algum grau de liberalismo haverá. Um regime autocrático em que o grau de liberalismo fosse zero ou próximo de zero pressuporia a existência de uma não-sociedade, dado que, em alguma quantidade, haverá pessoas que desobedecem ou resistem ao governo (ainda que a oposição seja proibida e reprimida).

    (14) Numa interessante exploração, Renato Cecchettini (2022) somou os Índices de Democracia Liberal (V-Dem) de cada país ao longo do tempo para observar a variação do estoque total de democracia liberal no mundo. O estudo está disponível no Tableau Public. Os gráficos gerados são reveladores:

    Sobrepondo o primeiro mapa acima à periodização proposta no presente artigo, teríamos:

    Note-se que a terceira onda de autocratização se assemelha mais à primeira onda de autocratização, o que deveria nos levar à grandes preocupações.

    (15) Sterling, Bruce (1989). Islands in the Net (traduzido pessimamente no Brasil como Piratas de Dados). São Paulo: Aleph, 1990.

    Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio: Putin se enquadra nos atos descritos? Certamente...

     Vejamos se, por acaso, os invasores russos, a mando de Putin, estão perpetrando qualquer um desses exemplos de genocídio: alguns, todos, pelo menos um? Então Putin é um genocida e como tal deve ser acusado.



    A Cúpula Amazônica e a liderança do Brasil - Sérgio E. Moreira Lima (O GLobo)

    A Cúpula Amazônica e a liderança do Brasil 

     

    rgio E. Moreira Lima*

    O Globo, 8/08/2023

     

                A Cúpula dos Países Amazônicos acontece hoje e amanhã em Belém. Anunciada pelo Presidente Lula, após sua eleição, em discurso na COP-27, no Egito, a reunião simboliza o reencontro do Brasil com sua agenda ambiental e a retomada da liderança do país nas questões de mudança de clima e desenvolvimento sustentável. Como Belém sediará ainda a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, em novembro de 2025, a Cúpula Amazônica servirá para tratar das questões regionais, sem perder de vista os preparativos para a COP-30, que poderá tornar-se a maior conferência sobre o futuro do planeta e da humanidade. 

     

        A Cúpula Amazônica deverá reforçar a concertação entre os países da região, colocando em foco também o papel da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) na coordenação das políticas regionais com vistas ao cumprimento das decisões tomadas em Belém. Única entidade intergovernamental com sede em Brasília, a OTCA é fruto de uma iniciativa diplomática brasileira, o Tratado de Cooperação Amazônico (TCA), firmado em Brasília, em 1978, com Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. O encontro em Belém permitirá melhor conhecer essa instituição que tanto tem a contribuir para a articulação e a consistência das políticas ambientais e de desenvolvimento sustentável da Amazônia. Embora a França não participe do Tratado, o Presidente Lula, num gesto histórico, convidou o Presidente Macron a participar da Cúpula Amazônica.  Essa atitude reflete a importância do desafio ambiental e a necessidade de somar esforços com a comunidade internacional para compreendê-lo e enfrentá-lo. 

     

            O Brasil já integrava o Tratado da Bacia do Prata, em vigor desde 1970, mas, até 1978, a maior parte do território nacional estava fora de qualquer arranjo cooperativo com países vizinhos. O pacto amazônico supriu essa lacuna, aproximou a região, reforçou o apoio ao Brasil e consolidou o paradigma da política externa brasileira de autonomia e universalismo a partir de um regionalismo robusto, lastreado no Direito Internacional, com o propósito de tornar a geografia em fator de aproximação e integração. Nesse imenso território, o princípio orientador da política externa brasileira, desde Rio Branco, de fazer da geografia a melhor política, promoveria o diálogo e a cooperação.  A lógica do entendimento deveria prevalecer em meio a diferenças sobre programas de desenvolvimento nuclear, como ficaria ainda mais claro, na década de 1990, com a criação do Mercosul.

     

            A realização no Brasil, em 1992, da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio 92) colocou o país numa posição de contribuir para a harmonia entre aqueles dois temas antípodas no conceito de desenvolvimento sustentável, que concilia a  preservação do planeta e a erradicação da pobreza e da fome. Com o agravamento da questão ambiental e das mudanças do clima,  a posição do atual governo brasileiro recobra o protagonismo histórico e o respeito da comunidade internacional. Ao fazê-lo,  resgata a tradição da diplomacia brasileira com seu compromisso em favor do regionalismo e do multilateralismo e de um ordenamento fundado no direito num mundo em que a lógica do conflito voltou a ameaçar o paradigma do entendimento, da cooperação e da paz. 

     

    * Embaixador de carreira e advogado.