Os herdeiros de uma derrota
intelectual e de um fracasso prático: os adeptos do marxismo cultural
Paulo Roberto de Almeida
Doutor
em ciências sociais, mestre em economia internacional;
professor
de Economia Política no Uniceub (Brasília); blog Diplomatizzando.
O
objetivo deste ensaio improvisado, rapidamente escrito, é claro: demonstrar que
o socialismo morreu, mas que o marxismo cultural tenta mantê-lo vivo, por uma
absoluta necessidade de persistência de alguma crença nas supostas virtudes
salvadoras do socialismo original. Para isso, seus adeptos usam todos os tipos
de manobras, mesmo as mais inconsistentes e incoerentes. Meu objetivo é apenas
o de lutar contra os zumbis do pensamento, se é que existe algum pensamento por
trás dos novos ideólogos.
Qualquer
pessoa medianamente bem informada – ou seja, educada em algum sistema formal de
ensino, ou pelo menos alfabetizada, acompanhando o noticiário corrente pelos
meios de comunicação disponíveis, conhecedora de um mínimo de história do
Brasil e do mundo – sabe que o socialismo morreu. Socialismo aqui deve ser
entendido como propostas ou projetos de engenharia social, empreendidos a
partir de uma base teórica – os escritos de Marx e Engels – e de exercícios de
política prática, por meio de partidos e movimentos voltados para a conquista
do poder – a exemplo de líderes comunistas como Lênin, Stalin e Mao Tsé-tung –
e cujo resultado mais evidente foi uma imensa tragédia social no decorrer do
século XX: estatísticas compiladas por historiadores de renome colocam a conta
dos empreendimentos comunistas na casa dos 100 milhões de mortos, em diversos
continentes.
Esse
socialismo, mais comumente chamado de comunismo, tomava como ponto de partida
as teses de Rousseau sobre as origens das desigualdades sociais – que ele
colocava na propriedade privada –, amplificou suas demandas igualitárias nas
demandas mais radicais da Revolução Francesa sobre a construção da igualdade
social com base no poder do Estado, passou pelo Terror da guilhotina contra
aqueles que eram julgados “inimigos do povo”, manifestou-se filosoficamente na
primeira metade do século XIX nas propostas dos chamados “socialistas utópicos”
– tal como designados por Karl Marx – e consolidou-se doutrinalmente nos
escritos de filosofia política de Marx e Engels, começando pelo Manifesto de
1848, que pregava a “luta de classes” para derrubar o “Estado da burguesia” e
para instaurar por meio da luta revolucionária do proletariado uma sociedade
sem classes, com a abolição completa da propriedade privada e a atribuição de
todo o poder a um “Estado democrático”, que se encarregaria de construir a
sociedade ideal, aquela baseada no trabalho de cada um, “segundo suas
capacidades”, e a garantia de meios de vida a qualquer um, “segundo suas
necessidades”.
Essa
utopia revolucionária de uma sociedade sem classes, radicalmente justa e igualitária,
cujo sistema político prometia o desaparecimento progressivo do “Estado dos
trabalhadores”, substituído pela “administração das coisas”, como pretendia
Engels, nunca teve nenhuma condição de ser estabelecida, pelo menos sem que a implantação
e o funcionamento de tal sistema de organização social e política requeresse
graus inéditos de violência, como foi efetivamente o que se passou, quando
revolucionários influenciados pelas ideias da dupla tentaram colocar em prática esses gigantescos
projetos de engenharia social. Esse vasto empreendimento de transformação
sistêmica começou pela Rússia, em 1917, foi tentado em diversos outros países
com fracassos espetaculares na primeira metade do século XX, e só conseguiu ser
implementado na sequência imediata da Segunda Guerra Mundial, pela força do
Exército Vermelho na Europa central e oriental, e na China como consequência da
invasão japonesa e da guerra civil deslanchada pelos comunistas contra um
governo corrupto e militarmente ineficaz. Alguns outros poucos exemplos se
manifestaram aqui e ali, sempre com altas doses de violência contra aqueles que
se opunham ao monopólio do poder por um único partido, e rotundos fracassos
econômicos em todos os casos.
Esse
é o segundo aspecto da utopia marxista, o de suas propostas econômicas, que
muitos ainda consideram possuir algum sentido “legítimo”, ou historicamente
“justificado”, em vista de supostas “contradições” do capitalismo: crises,
desigualdade, concentração de renda, exclusão, desemprego e pobreza. Marx
acreditava que o “modo de produção burguês” estava inevitavelmente condenado ao
desaparecimento, por se basear na “exploração dos trabalhadores” – via
“extração da mais-valia”, uma tese que não possui qualquer consistência
econômica – e por aprofundar a polarização social, ao conduzir a sociedade à dominação
de um punhado de ricos de um lado, os capitalistas, e da maioria de
trabalhadores oprimidos e explorados, de outro. A solução, segundo ele, seria a
estatização, depois a coletivização, de todos os meios de produção, e a
operação de uma economia administrada pelos próprios trabalhadores. Lênin deu
um passo adiante ao tentar implementar essas teses desprovidas de qualquer
fundamento empírico de Marx: ele, que era um gênio em política, mas um completo
ignorante em economia, decidiu simplesmente abolir os mercados, em favor de um
sistema de planejamento centralizado, administrado por burocratas. Obviamente
não deu certo, e levou a Rússia à sua primeira “epidemia de fome” (haveria
outras), o que interrompeu provisoriamente o experimento e levou a uma “Nova
Política Econômica”, com funcionamento parcial dos mercados.
Interessante
notar que, nessa mesma época, entre 1919 e 1920, um jovem economista austríaco,
Ludwig von Mises, que tinha sido socialista antes da Grande Guerra, ao observar
as propostas socialistas e o experimento comunista de Lênin, escreveu um
“panfleto” econômico, cuidadosamente intitulado “O Cálculo Econômico na
Comunidade Socialista”, no qual ele contestava a possibilidade de funcionamento
de um sistema econômico que dispensasse os preços de mercados e pretendesse
organizar a produção unicamente a partir de preços administrados por burocratas
do Estado. Um sistema desse tipo, disse Mises, seria impossível de funcionar em
bases racionais, justamente devido à inexistência de cálculo econômico com base
na raridade relativa dos insumos, ou seja, dos fatores de produção. O que
sabemos, depois disso, foi que Stalin foi capaz de colocar um elefante a voar,
ou seja, fazer o socialismo “funcionar”, mas ao custo de milhões de mortos, de
uma opressão tão descomunal que o comunismo soviético pode ser equiparado à
reprodução moderna de um gigantesco modo escravista de produção, com níveis
baixíssimos de consumo popular. Essa, aliás, junto com a total falta de
liberdade política, foi a causa da implosão e derrocada final do modo
socialista de produção, nunca qualquer derrota para os inimigos ocidentais, ou
os capitalistas das economias de mercado, que por acaso estavam financiando
todos os regimes socialistas durante a maior parte do pós-guerra.
O socialismo de tipo soviético, e suas derivações
terceiro-mundistas – hoje reduzidos a dois pequenos resquícios de completa
tirania –, foi, portanto, um completo fracasso, e não há ninguém que possa
contestar essa realidade, nem mesmo o PCdoB. A China pós-Mao, teve a “sorte” de
contar com mandarins comunistas mais esclarecidos, que deram a partida ao mais
gigantesco experimento de transformação social da era moderna, com base numa
economia de mercado, ainda que dominada por um sistema autocrático de partido
único, mas dispondo de mais liberdade de empreendimento, e de menor “opressão
tributária” estatal, do que o supostamente capitalista Brasil. Não se conhecem,
na atualidade, propostas sérias – isto é, fora dos delírios universitários que
conhecemos bem – de retorno à economia planificada centralmente, o que
confirma, portanto, a primeira frase do título: o socialismo morreu.
O fracasso de propostas utópicas de organização
política e social, de projetos pouco racionais de organização da produção e
distribuição de bens e serviços, não significa, porém, o desaparecimento das
ideias que lhes deram origem. Ideias são muito mais poderosas do que se pode
pensar, mais “permanentes” do que empreendimentos eventuais que delas partiram
para algum exercício concreto de implantação efetiva, mas seguido de sua
derrota prática. Aqui cabe considerar que o marxismo foi, parcialmente
acompanhado pelo freudismo, a mais poderosa ideologia política e social do
século XX, e se prolonga no século XXI, mesmo sem qualquer regime socialista digno
desse nome, mas com base nas ideias relevantes vindas da vertente rousseaniana
do Iluminismo, agregado das pregações igualitárias da Revolução Francesa,
passando obviamente pela filosofia social marxista, até chegar na doutrina
política do leninismo derrotado, o marxismo soft de Antonio Gramsci. O
comunista italiano revisou a doutrina leninista com base na leitura de
Maquiavel – não só o Príncipe, mas
também os Discursos da Primeira Década de
Tito Lívio – e de outros clássicos, e daí formulou uma estratégia de
conquista suave do poder, pela via da penetração nos principais aparelhos do
Estado, dispensando o putsch leninista e formulando as bases da apropriação
gradual do poder.
O gramscismo é esse marxismo cultural disseminado
amplamente no Brasil pós-derrota da esquerda tradicional em 1964, ao lado de
alguns empreendimentos leninistas, castristas e maoístas que foram
evidentemente derrotados pela força superior do Estado militar. A estratégia
transmutou-se na conquista gradual, quase imperceptível, desses aparelhos do
Estado – na área educacional, por exemplo – e das diversas correias de
transmissão da ação do Estado, ou seja, o corporativismo dos mandarins do
Estado e sua expressão social, os sindicatos. Eles passam a disseminar um
marxismo vulgar – que tem pouco a ver com a doutrina original marxista – e um
esquerdismo simplório, mas que alcança razoável sucesso político e eleitoral
pelas mesmas razões pelas quais partidos socialistas ou socialdemocratas são
ainda bem votados atualmente: eles prometem igualdade de condições, justiça
social, políticas públicas redistributivas, amplos canais de assistência,
medidas setoriais de proteção de grupos de interesse, enfim, a “sopa política”
de promessas generosas e de reivindicações “justas”, que são amplamente bem
acolhidas por um eleitorado sumariamente instruído ou informado.
Essas características da política brasileira –
igualmente encontradas em diversos outros países, sobretudo na América Latina –
estão muito bem refletidas no grande contorcionismo conceitual levado a efeito
pelos adeptos do “marxismo cultural”. Os que se refugiam nos desvãos de um
pensamento que não possuir qualquer coerência são todos aqueles que encontramos
no ambiente universitário animados dos mesmos propósitos salvacionistas. Eles são
os típicos representantes do gramscismo vulgar que domina a esquerda brasileira
desde várias décadas: os sindicalistas da educação, os militantes do
politicamente correto, os defensores de privilégios corporativos, os agitadores
das novas causas das minorias, raciais ou de gênero. Num ambiente já amplamente
dominado pelo agenda do politicamente correto poucos são os que têm a coragem e
a ousadia de contraditar os defensores dessas causas sem futuro, de desmentir
seus argumentos capciosos, e de enfrentá-los na palavra e na escrita, se
preciso nas ruas.
Os representantes do marxismo cultural, do gramscismo
vulgar, da idiotice do politicamente correto podem ser contraditados por
simples argumentos lógicos, e por demonstrações empíricas sobre como são
inconsistentes seus argumentos, pelo fato de simplesmente não se adequarem à
realidade do mundo presente, tal como ele é. Não é difícil encontrar argumentos
corretos para desmontar os discursos e as propostas dos marxistas culturais,
mas para isso é preciso que pessoas sensatas, ou simples amigas da verdade, se
disponham a tomar da pena, ou do teclado, para assentar-lhes alguns golpes de
realidade, não como fazia o jovem Marx na “Ideologia Alemã”, com base em
argumentos puramente filosóficos, mas com base em relatórios, estudos,
estatísticas.
O aspecto que eu mais destacaria na atualidade – revelador
das expressões mais delirantes do politicamente correto, que tende a se
espalhar no país, como várias outras tendências idiotas de nossa época –– é o
do desmoronamento das instituições de ensino, seja pela influência nefasta das
ideologias gramscianas amplamente dominantes nesses meios, seja pela ação quase
mafiosa dos sindicatos de professores (sobretudo do ensino médio, mas também
encontrável no terceiro ciclo), um processo que nos condena ao descalabro
pedagógico e à mediocridade no desempenho educativo, incidindo, portanto, sobre
o futuro previsível da produtividade em nosso país. Essa erosão da qualidade do
ensino no Brasil – em praticamente todos os níveis, do pré-primário ao pós-doc
– tem basicamente duas origens: de um lado o efeito nefasto da “pedagogia do
oprimido”, uma herança nefasta daquele que foi elevado à condição de “patrono
da educação brasileira” pelo regime companheiro, Paulo Freire, a quem considero
o supremo idiota da “não educação” brasileira; de outro, a ascensão e o
“empoderamento” – esse horrível conceito da terminologia politicamente correta
– dos sindicatos de mestres e de professores, o que aliás corresponde
inteiramente à ideologia predominante durante o regime petista, que foi uma
repetição mais bem sucedida da natimorta “República Sindical” do início dos
anos 1960.
De certa forma, ainda vivemos sob a “República
Sindical”, e ela é evidente no corporativismo exacerbado sob o qual vivemos, a
partir de um Estado omnipresente e onipotente (mas obviamente não onisciente).
Na outra ponta, a organização pedagógica brasileira ainda é dominada pela ideologia
do “freirismo” educacional, um conjunto de banalidades políticas – de
inspiração maoísta, cabe esclarecer – que desvinculam o ensino brasileiro de
suas funções básicas: formar as crianças e jovens no ensino da língua, das
matemáticas e das ciências elementares. Os exames do PISA demonstram a total inconsistência,
na verdade, o fracasso da educação brasileira, e isto é uma tragédia superior a
qualquer crise fiscal ou recesso econômico.
O marxismo cultural representa um dos maiores desafios
ao desenvolvimento do Brasil, na medida em que ele é uma tentativa de
sobrevivência do socialismo, mas baseado em mentiras, meias verdades,
diagnósticos simplistas da realidade, e prescrições totalmente equivocadas para
a solução dos nossos problemas. Um dos exemplos mais evidentes dessas
tendências nefastas é o chamado “afrobrasileirismo”, uma importação de teses já
equivocadas em sua origem – a ideologia African
American nos Estados Unidos – e que pode estar provocando o nascimento de
um novo tipo de Apartheid no Brasil, o que separa os supostos
“afrodescendentes” de todos os demais brasileiros; considero ser meu dever
intelectual, me contrapor aos desatinos dessas concepções anti-meritocráticas,
em defesa de uma concepção mais elevada da sociedade e da cultura brasileira.
O combate apenas começou: ele precisa ser continuado,
se não quisermos soçobrar na mediocridade intelectual e no atraso mental que
caracteriza, infelizmente, nossas elites. O meu combate é este: o da
racionalidade econômica, o da qualidade da educação e o da defesa da dignidade
da pessoa humana em face do primitivismo das causas particularistas que estão
fragmentando o conceito de direitos humanos nos últimos anos. Não tenho nenhuma
hesitação em fazer a defesa da verdade política, do sentido não corporativo das
políticas públicas, da noção correta de bem comum, contra o assalto dos “novos
bárbaros” gramscianos contra a sociedade e o Estado no Brasil. Não é fácil, mas
não se pode renunciar a certos imperativos de consciência.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de março de 2018