Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Maior conquista do governo Bolsonaro até aqui, o acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia representa uma mudança de paradigma na economia brasileira
O Brasil sempre foi considerado a terra das grandes potencialidades. O país do futuro. Palco das mais valiosas riquezas. Celeiro e pulmão do mundo. Dono das maiores reservas florestais e agrícolas do planeta. Um dos desafios para o País, desde o Império, era como se inserir no mercado global com competitividade de modo a, ao mesmo tempo, impulsionar sua economia e legar benefícios concretos para a população. O maior entrave, até então, era uma espécie de cacoete colonialista. Conforme sublinhou o economista Celso Furtado no livro Formação Econômica do Brasil, nossa nação durante muitos séculos foi descrita como uma economia baseada em ciclos econômicos que se alternavam. Inicialmente com o pau-brasil, depois a cana de açúcar, os metais preciosos e o ciclo cafeeiro. Todos esses períodos foram muito pródigos, mas não necessariamente para nós. Não raro, a metrópole extraía uma ampla gama de recursos da colônia, satisfazia os luxos e os confortos de uma elite degradada, mas muito pouco era convertido para a nossa economia, o aumento da renda e da qualidade de vida da população brasileira. Agora, o País tem a grande chance de reverter essa lógica perversa e ingressar definitivamente num novo e sustentável ciclo econômico virtuoso. Na maior conquista do governo Jair Bolsonaro até aqui, celebrou-se, na última sexta-feira 28, o acordo de livre comércio do Mercosul-União Européia — que abarcará um quarto do PIB mundial e quase 780 milhões de consumidores.
Trata-se de um marco histórico. O tratado tem importância excepcional e significa uma mudança de paradigma. Um dos países mais fechados do mundo, o Brasil responde somente por 1,2% do comércio mundial. Está atrás de países como Vietnã, Malásia, Polônia e Tailândia, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC). Para se ter uma idéia, as montadoras nacionais exportam apenas 15% da sua produção — enquanto que as do México, 60%. Com o acordo, a indústria — que sempre foi protegida pela política de substituição de importações — precisará crescer por aumento de produtividade e integração às cadeias globais de produção. “O País vai trocar o antigo modelo nacional-desenvolvimentista pelo capitalismo competitivo”, comemora Marcos Troyjo, secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Ministério da Economia, dono de papel-chave na negociação final, em Bruxelas.
Mais investimentos
NO G20Bolsonaro comemorou o tratado, Angela Merkel (dir.) aceitou após criticar a política ambiental brasileira e Emmanuel Macron (esq.) exigiu compromisso com o Acordo de Paris (Crédito: Clauber Cleber Caetano/PR)
A estimativa oficial é que o País alcançará ganhos de R$ 500 bilhões no PIB em 10 anos e poderá atrair R$ 453 bilhões de investimentos. Apesar de a eliminação de tarifas comerciais ser gradual, para permitir a adaptação de todos os setores, o acordo irá trazer benefícios diretos para o consumidor final brasileiro, que terá à sua disposição uma gama maior de produtos europeus mais baratos e acessíveis com a tarifa zerada ao longo da implementação do tratado. Isso inclui medicamentos — o maior item das exportações europeias ao Brasil. Em 15 anos, carros europeus terão tarifas de importação zeradas. Hoje, automóveis oriundos da Europa possuem uma tributação 35% para entrar no mercado brasileiro. Na prática, os carros vindos da Europa devem ver seus preços caírem significativamente. O acordo também vai impactar os valores das bebidas importadas. Os preços dos vinhos, por exemplo, podem ficar quase 30% mais baratos. Atualmente, o Mercosul cobra 27% sobre vinhos europeus. Destilados hoje exibem tarifas entre 20% e 35%. Já chocolates e itens de confeitaria possuem taxação de 20%. A tributação para produtos lácteos, de 28%, também será zerada.
Entre todas as áreas, o agronegócio brasileiro — bem mais competitivo que o europeu — deverá ser o setor mais fortemente impactado. Não à toa, os europeus impuseram cotas para vários itens, como suco de laranja, café solúvel, carnes e açúcar. “Um acordo como esse força uma agenda de competitividade que o Brasil precisa resolver. A situação econômica é momentânea, e esses acordos são de longo prazo. Dão credibilidade ao País”, vibrou o presidente da Fiesp, Paulo Skaf.
EXPORTAÇÕESEmbraer é uma das empresas que terão novas oportunidades com a aliança (Crédito:Divulgação)
Finalizada depois de 20 anos de idas e vindas, a contragosto dos arroubos nacionalistas da atual chancelaria, a aliança Mercosul-União Europeia é o triunfo do pragmatismo sobre a ideologia — e uma conquista pessoal do ministro da Economia Paulo Guedes, que levou a política comercial para o coração da política econômica e finalizou em seis meses um acordo que já se considerava improvável. Todos os capítulos — incluindo desenvolvimento sustentável, tecnologia e compras governamentais — estavam totalmente em aberto no início do ano. Os negociadores europeus se espantaram com a coesão e agilidade dos brasileiros. “Foi uma surpresa positiva. É sem dúvida o acordo comercial mais importante e ambicioso que o Brasil jamais assinou, depois o Mercosul”, afirma Rubens Ricupero, um dos nomes mais respeitados da diplomacia brasileira. Outro fator essencial foi o apoio do presidente argentino Mauricio Macri, que defende a liberalização econômica — contra a tradição protecionista do país — e está empenhado na sua reeleição, no segundo semestre.
Do lado europeu, às voltas com a crise do Brexit, também havia uma nova disposição para a aproximação. Do ponto de vista político, trata-se de uma forte sinalização na ênfase multilateral, antiprotecionista e antinacionalista — na contramão do que é praticado pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Isso explica a reação de Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia: “Em meio às tensões do comércio internacional, estamos enviando um forte sinal de que defendemos o comércio baseado em regras. É o maior acordo comercial já fechado pela União Europeia”. Do ponto de vista da economia, os europeus também precisavam abrir mercados para fazer frente à ascensão da China e assegurar fontes de crescimento econômico. Essa conjunção de fatores acabou sendo crucial para a assinatura final.
PROTESTOSAgricultores franceses foram às ruas e autoridades colocaram em dúvida a assinatura do acordo (Crédito: REUTERS / Emmanuel Foudrot)
A expectativa agora é que, além da modernização do Mercosul, que sofrerá uma inflexão e deixará a agenda ideológica dos anos petistas para privilegiar a política comercial, com pragmatismo, também haja repercussão na política interna brasileira. Um exemplo é a seara ambiental. A Alemanha, por meio da chanceler Angela Merkel, teve papel importante no desenlace por defender que o acordo poderia conter o regresso do atual governo na área ambiental. As reações na França foram as mais fortes, devido a questões internas. As críticas uniram a área protecionista agrícola, que é poderosa no país, com os verdes, que estão em ascensão após as últimas eleições europeias. O presidente francês Emmanuel Macron exigiu que Bolsonaro se comprometesse em não retirar o Brasil do acordo climático de Paris — foi atendido. Espera-se que o gesto de Bolsonaro sinalize que não haverá retrocessos nessa área. Na verdade, os novos compromissos comerciais poderão servir como contenção a propostas de afrouxar a vigilância sobre o desmatamento na Amazônia e à expansão do uso de agrotóxicos.
Se olharmos para a história econômica brasileira, perceberemos que o país já se inseriu na lógica global em alguns momentos de sua trajetória, principalmente quando nos caracterizávamos como uma economia agroexportadora, baseada em produtos primários de baixo valor agregado, voltada ao mercado externo e marcada por ciclos de monoculturas que se alteravam com constância, sem uma maior profissionalização e marcada por um grande amadorismo na gestão. O acordo é um feito extraordinário que nos permite a oportunidade de nos reencontrarmos com a nossa história para, dessa vez, fazermos diferente. É preciso ter em mente, no entanto, que o tratado não resolve por si só todos os problemas da economia e não é capaz de, sozinho, ser o motor do desenvolvimento. É um mapa para o futuro, que exige no curto prazo a continuidade de reformas modernizantes que levem ao equilíbrio fiscal e à maior competitividade da economia. Como bem disse Troyjo, o próximo acordo do Brasil deverá ser com ele mesmo.
Abertura Gradual Tarifas serão baixadas de forma escalonada em até 15 anos
>>A União Europeia (UE) vai zerar as tarifas sobre 92% das importações do Mercosul em até 10 anos. O Mercosul vai acabar com 72% das tarifas que incidem sobre produtos europeus em até 10 anos. Em 15 anos, esse percentual chegará a 91%
>>Na área industrial, a UE vai zerar as tarifas para 100% das importações vindas do Mercosul em 10 anos. No mesmo período, 72% do produtos industriais importados pelo Mercosul ficarão liberalizados. Em 15 anos, o índice sobe para 90,8%
>>A tarifa de 35% para importação de automóveis europeus será mantida até o sétimo ano, caindo pela metade nos três anos seguintes, até ser zerada em 15 anos. Dentro do período de carência de sete anos, o Mercosul poderá importar uma cota de 50 mil veículos (32 mil para o Brasil) com tarifa de 17,5%
>>Entre os produtos agrícolas, 81,8% do que a UE importa do Mercosul terá tarifa zero em 10 anos. No mesmo período, 67,4% do que o Mercosul compra ficará sem tarifa
>>Haverá cotas para alguns produtos agrícolas exportados pelo Mercosul. Entre eles, frango, açúcar, etanol e carne bovina
>>Em propriedade intelectual, a Europa vai reconhecer 61 produtos agrícolas brasileiros, como a cachaça de Paraty e o queijo Canastra. O Brasil deverá reconhecer itens europeus como o presunto de Parma e a cerveja de Munique.
Populismo força europeus a reagir contra cisão em momento de governos sul-americanos pragmáticos
Após quase duas décadas de conversações, União Europeia (UE) e Mercosul estão mais próximos do que nunca de assinarem um acordo comercial.
A constatação da iminência de um tal entendimento, que pode ser formalizado ainda este ano, ocorre justamente num contexto de enormes pressões protecionistas no mundo todo . Isso não deixa de chamar atenção.
Não é exagero algum identificar a eleição de DonaldTrump e o “brexit” como símbolos tangíveis do “risco de desglobalização” que, ominoso, se projeta sobre as relações internacionais.
Trump trabalha quotidianamente para minar o sistema mundial arquitetado pelos EUA desde o final da Segunda Guerra. Os EUA estão menos “globais” e mais “individualistas”. E a saída britanica da União Europeia (UE) mostra que blocos de integração regional não são necessariamente veículos conducentes a mais globalização.
Quando se iniciaram as negociações entre UE e Mercosul em 1999, o palco internacional era caracterizado por uma quase certeza de que livre comércio, democracia representativa e ganhos de escala empurravam blocos para um entendimento.
Havia mais, no entanto, do que essas forças de “globalização profunda” movendo as duas dinâmicas de integração para um maior intercâmbio. As estruturas econômicas de europeus e sul-americanos são complementares tanto na frente do comércio como na dos investimentos. Os dois blocos foram feitos um para o outro.
O fato da negociação se arrastar por quase vinte anos tem de ser visto de forma crítica. Alguém examinando o processo com olhos do setor privado diria que uma concertação que leva duas décadas para tomar forma é um fracasso. O mundo em que as negociações começaram não é o mesmo em que elas terminam.
E, de fato, muita água passou por debaixo da ponte nesse período. Quando as conversações se iniciaram em 1999, o euro já era moeda de referência, mas não meio circulante —o que apenas se viabilizou a partir de 2002.
O peso específico de diferentes países na geoeconomia também era outro. Em 1999, a China tinha um PIB duas vezes maior que o da maior economia latino-americana (o Brasil). Hoje, o PIB chinês é 7,5 vezes maior que o brasileiro.
No fim dos anos 1990, a economia digital, comparada com o que vemos agora, ainda engatinhava. Não havia tablets ou smartphones, e as grandes vendedoras de telefonia celular no mundo eram a Motorola e Nokia.
Ora, se os ventos da globalização profunda eram favoráveis, as economias complementares e as partes negociadoras punham em marcha um processo formal de negociação, por que o acordo jamais saiu?
Bem, a melhor resposta é a de que, embora hoje o protecionismo represente ameaça sistêmica ao comércio internacional, suas particularidades no eixo UE-Mercosul inviabilizaram um acordo rápido já no início da década passada.
Percebam o absurdo. No começo dos anos 2000, saía mais barato para um consumidor europeu adquirir uma vaca na Argentina, colocá-la num voo da AirFrance e a trazer para Paris do que arcar com pesadíssimos impostos transformados em subsídios aos agropecuaristas europeus.
Na mesma forma e período, ficava mais econômico para um consumidor brasileiro comprar uma passagem aérea para Copenhague, lá passar dois dias num hotel quatro estrelas e comprar um aparelho de som da Bang & Olufsen do que adquirir o mesmo equipamento no Brasil. E ainda sobrava um dinheirinho para comprar um Lego pequeno.
Além disso, UE e Mercosul também abraçaram o conforto da inércia negociadora como resultado da emergência de outros fenômenos.
À medida que a China demonstrava apetite cada vez mais voraz por commodities sul-americanas, diminuía a urgência do Mercosul em estabelecer acesso privilegiado ao mercado europeu. Este, por seu turno, estava muito ocupado em priorizar relações com os países ao leste que há um tempo compuseram a esfera de influência do bloco soviético.
E havia ainda, claro, a Rodada Doha da OMC como uma plataforma de negociação supostamente viável, o que poderia tornar redundantes algumas das conversações UE-Mercosul.
Bem, por que então as tratativas deslancham agora?
Por um lado, Bruxelas passou a ter de contabilizar seriamente o risco de fragmentação do edifício comunitário europeu.
O “brexit” é símbolo maior de tal pesar, eleições na França, Áustria, Holanda e mais recentemente Itália mostram quão forte é o flerte nacional-populista europeu com alternativas ao Velho Continente integrado.
Diante desse quadro, ao estabelecer tratados com outros blocos a UE mostra que não se abala com a saída, real ou possível, deste ou daquele estado-membro, e que portanto sua perpetuação é inquestionável.
Por outro, com o esgotamento de um ciclo nacional-populista (kirchnerismo e lulopetismo) nos dois principais sócios do Mercosul, o bloco retomou sua postura negociadora em bases pragmáticas e algo que deixou de lado seu terceiro-mundismo.
Estão a caminho rodadas negociadoras do Mercosul também com Canadá, Japão e países da Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile).
Por estranho que possa parecer, um contexto de globalização profunda e múltiplas oportunidades não deram a UE e Mercosul, no passado, a proximidade e sentido de urgência necessários.
Agora, é a conclusão de ciclos políticos internos e o espectro de protecionismo e desglobalização em outros quadrantes que impulsionam os dois blocos à ação.
Marcos Troyjo
Diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia.