As "memórias" do barão
MERVAL PEREIRA
Já pensou, caro leitor, se coincidisse com o centenário da
morte do Barão do Rio Branco - ocorrida no dia 10 de fevereiro de 1912 – a revelação
de suas memórias, que por vontade expressa só poderiam ser divulgadas nessa
ocasião? (No Globo a Mais de hoje, a história de como a morte do barão fez com
que tivéssemos dois carnavais em 1912).
Pois o diplomata Paulo Roberto de Almeida, em seu blog Diplomatizzando,
resolveu tornar verdadeiro esse sonho de todo historiador interessado na nossa diplomacia
e está publicando as "Memórias", apresentando-se como o seu organizador,
responsável pela "transcrição e modernização da ortografia, a partir de
manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio". Ele relata que
"dentre os muitos papéis deixados pelo barão no momento de sua morte, na
mais completa desordem, encontrava-se um curioso caderno, que permaneceu obscuro
durante muito tempo".
"De aparência anódina, capa oleada marrom, lombada
preta, circundado por um barbante (um tanto sujo devido a um uso provavelmente constante),
que por sua vez retinha um simples pedaço de papel com esta inscrição a lápis,
na letra inconfundível de Paranhos:
"Reservado; não tocar".
O diplomata conta sua suposta experiência em detalhes: que
passou a lê-lo a partir de cópias fotostáticas e teve acesso ao
"original" apenas uma vez, "graças aos zelosos guardiões do
Arquivo Histórico Diplomático do Itamaraty, no Rio de Janeiro". Ao
abri-lo, "outro pedaço de papel, de igual feitura (provavelmente destacado
às pressas do mesmo pedaço de papel que serviu para compor a nota na capa),
também rabiscado a lápis, na mesma letra, com estas simples indicações:
"Proibida a reprodução ou divulgação antes de cem anos de minha
morte".
Nas páginas seguintes, "numeradas à mão, já começavam
as anotações manuscritas do barão, algumas datadas, outras simplesmente
localizadas no espaço (a maior parte do Rio, outras entradas feitas em Petrópolis),
mas sem o cuidado de manter a estrita cronologia de um diário "normal".
E por que ele não queria que essas notas fossem divulgadas
antes de pelo menos cem anos decorridos de sua morte?
"Presumivelmente
porque tinha consciência do delicado de suas opiniões sinceras sobre pessoas,
países, sobre fatos e percepções pessoais que mantinha nas mais diversas
situações que enfrentava na labuta diária à frente da chancelaria, que já tinha
sido a de seu pai e mentor respeitado."
Há dois bons exemplos nos "diários" do barão. No
primeiro, escrito no dia 2 de maio de 1910, ele relata que o Brasil participará
das comemorações do "centenário da independência argentina" no dia
10, "com uma delegação normal", isto é, por meio do ministro em
Buenos Aires, "e não com alguma embaixada especial ou enviado extraordinário".
O barão reconhece que seus auxiliares classificam tal
decisão de "erro monumental, uma descortesia gratuita, mais uma
demonstração de birra pouco diplomática vis-à-vis nuestros hermanos, já que
muitos outros países designaram plenipotenciários especiais, alguns a nível de ministros
de Relações Exteriores, uns poucos até com o deslocamento de seus chefes de
governo".
Como não podia externar sua opinião au grand large, o barão
decidiu escrever "para a posteridade e a devida fidelidade a esta musa
sempre tão conspurcada que atende pelo nome de História".
Para o Barão do Rio Branco, os argentinos festejavam,
"com orgulho indevido", o 10 de maio de 1810, pois "o fato
absolutamente verdadeiro é que no 10 de maio de 1810 não foi proclamada nenhuma
independência argentina".
Segundo o relato do barão em suas "memórias", os argentines
"comemoram, na verdade, duas ou três datas, dependendo da utilidade",
e a de 1810 serve para que anunciem "que ficaram independentes antes de
nós". Mas a independência só se firmou, escreve o barão, "e mesmo
assim de maneira passavelmente confusa, depois que San Martin andou fazendo valer
o que de fato vale na vida das nações: a crítica das armas, não as armas da
crítica".
Outro bom exemplo está nos comentários que o Barão do Rio
Branco faz sobre a classe política do país, tão incrivelmente atual. Em abril
de 1909, ele deixou claras as razões que o levaram a recusar, "de maneira
peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura,
praticamente vitoriosa, à Presidência da República, certamente o cargo mais honroso
que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época".
(...)
"Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum
tempo do futuro, que não tenho a menor vontade (...) de assumir um cargo que me
obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que
considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para
conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena
internacional."
"Minha aspiração - sem pretender chocar os que lerem
estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente - é a de que o
Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o
cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a
dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam
internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda
marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos,
alguns inclusive por razões inconfessáveis".
As "memórias" do Barão do Rio Branco estão
fazendo o maior sucesso no Itamaraty e na internet, pelas mensagens que seu
"autor" tem recebido, e muitos capítulos ainda serão colocados no ar,
"tudo baseado em fatos verdadeiros, em acontecimentos reais da vida do
barão, situações e pessoas que existiram, de verdade, nenhuma personagem
ficcional misturada com as verdadeiras, como ocorre com romances
históricos", como explica Paulo Roberto de Almeida em troca de mensagens
comigo, que o procurei para saber de detalhes de sua pesquisa e me deparei com um
brilhante e bem-humorado trabalho que começou inocente, como uma "verdadeira
farsa", e que se apresenta agora como uma "farsa verdadeira".