Diplomata, professor de Economia Política no Uniceub
Economia envolta em
ideologia representa uma combinação persistente: a despeito de mais de dois
séculos de evolução teórica e prática, desde a velha Economia Política até a
moderna síntese neokeynesiana, essa mistura algo indigesta insiste em
contaminar os debates intelectuais e o receituário prescritivo das diversas
vertentes contemporâneas das ciências econômicas (apropriadamente, no plural). Aparentemente,
estamos condenados a essa mistura pelo futuro previsível.
Com efeito, a antiga
disciplina, definida como um instrumento a ser usado pelos estadistas, tal como
a concebeu Adam Smith, já não possui mais – se é que algum dia possuiu – uniformidade
conceitual ou unidade de métodos empíricos, tantas são as correntes, ou
escolas, que disputam a preferência dos consumidores, isto é, todos nós:
estudantes de economia (ou de direito, além de outras disciplinas das
humanidades), profissionais de mercado, burocratas públicos, ou simples
cidadãos consumidores. Todos nós, consciente ou inconscientemente, possuímos
alguma visão de como deveria ser organizada a economia para melhor servir
nossos objetivos individuais ou metas sociais.
A grande questão, contudo,
é que essas preferências estão sempre marcadas por nossa formação educacional,
nossa posição no sistema produtivo, nossa inserção no mundo dos intercâmbios (e
todos os dias estamos fazendo intercâmbios, desde a compra do pão e leite pelas
manhãs, até a escolha de algum canal de TV pela noite). Tudo isso intermediado
por moeda: nosso próprio dinheiro, fruto do trabalho, a mesada familiar, a
herança dos antecessores, uma simples aposta de loteria. O dinheiro permeia e
azeita essas transações, aliás, hoje bem mais em sua forma eletrônica do que em
papel ou moedas metálicas.
Obviamente, todos nós
preferiríamos ter uma renda maior do que aquela efetivamente disponível em
nossos bolsos ou contas correntes. Isso porque, segundo uma velha “lei” da
economia, as necessidades são infinitas, e os meios são limitados. Essa é a lei
geral da escassez que preside ao destino da humanidade, e a economia é
justamente a arte – alguns a consideram uma ciência – de melhor organizar os
nossos recursos escassos para atender ao máximo de nossas necessidades ou
desejos de consumo. Este livro, como não poderia deixar de ocorrer num texto de
economia, discute e esclarece as melhores formas de fazê-lo, evidenciando,
justamente, como as mais poderosas ideologias nasceram, como ela se desenvolveram,
e como elas penetram, e quase submergem, as principais escolas de pensamento
econômico.
Três são as principais,
com pequenas derivações paralelas de cada uma delas: a economia política
clássica, que se tornou neoclássica, com o marginalismo do século XIX, e que
depois evoluiu para o chamado mainstream
economics, ou seja, a corrente dominante na economia contemporânea; o
socialismo, especialmente na sua vertente marxista, que se materializou no mais
poderoso desafio à economia de mercado no decorrer de quase quatro quintos do
século XX, ao lado das variantes fascistas e dos modelos verticais ou
autárquicos de organização produtiva; finalmente, uma derivação da escola
neoclássica, o keynesianismo teórico e aplicado, que teve seus momentos de
sucesso e fracasso, ao longo da segunda metade do século XX, até ser combinado
a alguns elementos mais puramente marginalistas para se apresentar hoje como
uma “síntese neokeynesiana”. Poderíamos apontar também a chamada “escola
austríaca de economia”, que deriva, em grande medida, dos ensinamentos consolidados
na versão liberal da disciplina, herdada da tradição clássica, a de Smith.
Todas essas vertentes
econômicas, ou escolas de pensamento, têm de ser necessariamente divergentes,
ou opostas entre si? Não exatamente, já que nossas preferências e inclinações nos
levam a escolher, em alguns casos, soluções totalmente privatistas para atender
nossas necessidades de consumo, ou a exigir, em outros casos, algum tipo de
resposta governamental aos problemas que enfrentamos na vida diária: segurança,
transporte, infraestrutura, justiça e tantas outras coisas. Estas são as duas
balizas que permeiam quase todas as escolhas econômicas: de um lado, os
mercados, como provedores da maior parte dos bens e serviços que consumimos; de
outro, o Estado, como garantidor de alguns bens públicos, dos quais nos
convertemos em demandantes, em troca dos impostos que pagamos a esse mesmo
Estado.
De certa forma, as
ideologias econômicas giram em torno desses dois polos da moderna organização
econômica: de um lado, o mercado (ou melhor, os mercados, pois existem vários,
para toda e qualquer necessidade, mesmo as mais íntimas e por vezes secretas);
de outro, o Estado, ou melhor, o governo, pois o Estado é um ente “abstrato”,
feito de leis e instituições, que só se materializa quando representado por
indivíduos que assumem seu comando temporariamente (pelo menos nos sistemas
democráticos) e por funcionários mais ou menos estáveis que asseguram a
continuidade dos serviços públicos. A economia política clássica, o socialismo
marxista (e suas variantes) e o keynesianismo representam, grosso modo, formas
alternadas, ou distintas, de organização social da produção e da distribuição,
que combinam, em graus diversos, “quantidades” variadas de Estado e de mercado:
desde o regime mais liberal – o famoso laissez-faire
da era clássica, que de fato nunca existiu – ao mais autoritariamente
estatizante – o dos regimes coletivistas, de tipo bolchevique ou fascista –,
sem esquecer o dirigismo econômico mais moderado do keynesianismo, o mundo
conheceu as mais diversas experiências econômicas, algumas mais felizes do que
outras.
Com efeito, se olharmos o
mundo contemporâneo – no qual a renda pessoal de um cidadão do Luxemburgo, da
Suíça ou de Nova York, pode representar mais de duzentas vezes os magros
recursos com que devem sobreviver os habitantes de certas regiões da África –
contemplaremos todos os tipos de arranjos econômicos e de sistemas políticos
para organizar a produção e a distribuição de bens e serviços. Invariavelmente,
essas formações representam diferentes combinações de mercados livres (ou não)
e de instituições estatais (ou até Estados “falidos”), sistemas únicos e originais,
em cada caso, mas que podem representar a diferença entre a vida e a morte para
os indivíduos que nascem e vivem em cada uma delas. De fato, a disponibilidade
de serviços médicos preventivos, ou curativos, delimitam as chances de
sobrevivência de crianças nascidas na miserável Somália ou na riquíssima
Noruega: as taxas de mortalidade infantil expressam essas chances de maneira
altamente eloquente.
Essa diferença entre a
vida e a morte pode ser explicada por determinismos geográficos,
disponibilidade de recursos naturais, educação do povo, qualidade das
instituições públicas, mas também pode derivar dos tipos de políticas
econômicas que são implementadas num e noutro caso; essas políticas estão
sempre ligadas ao papel respectivo dos Estados e dos mercados nos diversos
sistemas de organização produtiva que existem nesses países. De maneira geral,
o que podemos observar, a partir desses diferentes experimentos de políticas
econômicas, ao longo dos últimos dois ou três séculos, é que os países mais
abertos ao exercício das liberdades individuais – ou seja, caracterizados pela
existência de mercados mais livres – são notoriamente mais ricos do que aqueles
que se enredaram em arranjos mais fortemente dominados pelo poder do Estado –
tanto é assim que os sistemas totalmente estatizados representaram um rotundo
fracasso e terminaram por desaparecer quase por completo da face da terra,
restando duas ou três “ilhas” de miséria comunista nas antípodas do planeta.
Este livro, elaborado por
um economista de formação, e professor por opção, explica como isso se deu e
desvenda os mecanismos econômicos pelos quais as sociedades organizadas podem
criar mais ou menos riqueza, segundo as soluções econômicas, e as opções de
mais Estado ou mais mercados, que escolham (ou a que são levadas por lideranças
políticas particularmente bem sucedidas no exercício do poder). Em cada uma das
vertentes econômicas delineadas, ele tenta separar os elementos econômicos
efetivos, da ideologia que muitas vezes envolve, e obscurece, as escolhas
específicas feitas pelos homens, economistas ou não. Keynes costumava dizer que
os estadistas, ou os líderes políticos, estão sempre tomando decisões,
conscientemente ou não, com base nas ideias de algum economista falecido. Isso
é tanto mais verdade no seu caso, pois é um fato que o destino da maior parte
das sociedades modernas foi determinado pelas escolhas que seus dirigentes
fizeram em torno de receitas inspiradas ou sugeridas pelo próprio Keynes.
Muitos economistas, da
escola liberal, rejeitam, obviamente, esse excesso de keynesianismo aplicado,
que pode ter conduzido algumas dessas modernas democracias de mercado aos
impasses, agruras e crises em que elas se debatem nesta virada da primeira
década do novo milênio. Outros, herdeiros intelectuais da tradição marxista,
acreditam que as crises recorrentes são o resultado inevitável do modo de produção
capitalista, e continuam a depositar sua fé nos sistemas socialistas, ou seja,
estatais, de produção e distribuição de bens e riquezas. Isto quer dizer que,
230 anos depois da obra inaugural de Adam Smith – A Riqueza das Nações – ainda não existe consenso possível entre as
várias escolas de pensamento econômico? Talvez não!
Depois de mais de dois
séculos desde a obra seminal do filósofo escocês (que é de 1776, o mesmo ano da
independência americana), pode-se dizer, com algum grau de ceticismo sadio, que
a economia política conseguiu estabelecer alguns consensos conceituais em torno
de seus argumentos explicativos e de suas prescrições práticas. A grande questão
permanece a mesma que tinha presidido à investigação iniciada por Smith, e que
foi continuada mais recentemente por David Landes: por que algumas nações
conseguiram ser tão ricas, enquanto outras permanecem numa inacreditável
pobreza material?
Essa pergunta é
aparentemente complexa, tantas são as variáveis – naturais, sociais, políticas,
culturais – que podem explicar o sucesso de algumas e o fracasso de outras
sociedades. Na verdade, algumas respostas tentativas a essa questão são menos
complicadas do que aparece à primeira vista, se atentarmos, justamente, para
alguns dos consensos que podem ter emergido ao longo desses dois séculos de
triunfos econômicos e de tragédias sociais. E quais seriam esses consensos?
Diferentemente das velhas
teorias, que colocavam essas diferenças na conta de fatalidades naturais, de
determinismos geográficos, de configurações raciais ou de peculiaridades
religiosas ou políticas, ou ainda, contrariamente às teses equivocadas que
debitavam a miséria dos desafortunados à exploração dos atualmente mais ricos,
a economia política contemporânea sabe que a essência das desigualdades sociais
e de riqueza entre as nações deriva, fundamentalmente, dos diferenciais de
produtividade humana entre elas. Esses diferenciais de produtividade são
explicados, em primeiro lugar, pela disponibilidade (existente, ou criada) de
capital humano de boa capacitação técnica e educacional, mas também pela
qualidade das instituições públicas, bem como pelo ambiente geral de negócios,
já que é nesse ambiente de iniciativas econômicas que se desempenham
empresários e trabalhadores, de preferência da forma mais livre possível (aqui,
um cenário virtualmente inexistente naquelas sociedades que caíram nos extremos
do coletivismo). Obviamente, a geografia, os recursos naturais e as dotações
próprias dos povos e comunidades organizadas também desempenham um papel
importante nesses diferenciais de produtividade entre as nações, mas os
fundamentos mais relevantes das desigualdades modernas são dados, propriamente,
por elementos institucionais e políticos (ou, mais exatamente, pelas políticas
econômicas).
Essas duas condições – as
instituições governamentais e a qualidade das políticas públicas – são as que
moldam, contribuem, ou obstaculizam, segundo os casos, o atingimento de graus
mais elevados de produtividade, que é, finalmente, o fator principal e o
responsável último pela criação de riqueza numa dada sociedade (ou seja, o
determinante do bem-estar dos indivíduos). Em outros termos: na inexistência
prática de obstáculos técnicos ou materiais ao desenvolvimento das nações – já
que a imensa maioria das tecnologias dominadas e dos conhecimentos práticos que
podem impulsionar o crescimento de uma economia está razoavelmente disseminada
e livremente disponível nos sistemas abertos de coleta de dados e de
informações úteis para a saúde, a educação e a atividade produtiva – os únicos
fatores que podem explicar a preservação da miséria e as imensas decalagens
entre ricos e pobres no mundo contemporâneo, são justamente essas diferenças,
para melhor ou para pior, entre as instituições e as políticas dos países.
Mais concretamente, quais
seriam os consensos alcançados pela ciência econômica (se existe apenas uma),
tanto pelo lado teórico, quanto pelos aspectos práticos, que poderiam
contribuir para um ritmo mais robusto de desenvolvimento humano e social, com
transformação produtiva e uma melhor distribuição de renda entre os indivíduos?
Eles poderiam ser enunciados sob a forma de cinco conjuntos de elementos
macroeconômicos e setoriais que deveriam integrar um “receituário” de
progressos humanos e sociais nas nações orientadas claramente pelo objetivo de
prover o maior bem-estar possível para os seus cidadãos:
1) um ritmo de crescimento
sustentável e sustentado, a taxas razoáveis (que não precisam ser muito altas,
mas preferencialmente constantes), pois sem ele seria impossível ter
desenvolvimento; esse processo depende,
por sua vez, de estabilidade macroeconômica nos elementos essenciais do sistema:
inflação baixa; contas públicas equilibradas ou apenas moderadamente negativas;
poupança e investimentos elevados, em relação ao consumo; câmbio e juros
neutros ou realistas (ou seja, mais próximos dos equilíbrios de mercado do que
determinados politicamente);
2) mercados abertos e
competitivos, o que significa ausência de barreiras governamentais ao
lançamento de novas iniciativas empresariais, combate aos monopólios e carteis
(que são muitas vezes criados pelos próprios governos) e estímulos a todos os
tipos de mecanismos concorrenciais na oferta de bens e serviços, inclusive pelo
próprio governo;
3) boa governança, que
significa instituições públicas funcionais e responsáveis (accountable, na terminologia inglesa), transparentes e isentas do
peso nefasto de corporações de interesses particulares ou de lobbies indevidos; sistemas eficientes
de solução de disputas (judiciário), de maneira a reduzir os chamados custos de
transações entre indivíduos e empresas;
4) investimentos contínuos
no capital humano, o fator possivelmente mais relevante para o atingimento de
altos níveis de produtividade e de melhoria no perfil distributivo da renda
nacional, o que significa, primariamente, educação de qualidade nos ciclos
obrigatórios ou universais, seguida de metas de desempenho no ciclo superior e
nos estudos especializados ou pós-graduados; a competição e a cobrança de
resultados, num ambiente de pesquisa livre, podem resultar em altos níveis de
inovação, que deve ser dirigida ao sistema produtivo, ao mesmo tempo em que se
assegura uma oferta razoável de pessoal médio dotado de capacitação técnica;
5) abertura ao comércio
exterior e aos investimentos estrangeiros diretos, reconhecidamente as fontes
mais seguras, rápidas e eficientes para a absorção de inovações produtivas e de
modernização tecnológica; essa abertura não significa, necessariamente,
orientações “liberais” em comércio exterior, e pode conviver com certo grau de
protecionismo setorial (mas temporário); ela tem a ver com atitudes
inteligentes em termos de aquisição de conhecimentos pela via dos mercados
(sempre mais rápidos e mais flexíveis do que os governos) e de interação com
padrões produtivos mais avançados, propensos, justamente, à maior inserção
internacional dos sistemas produtivos nacionais. Para comprovar os méritos
dessa abertura, basta traçar uma lista sumária dos países mais ricos no mundo; se
constata, assim, que eles são, via de regra, os mais abertos ao comércio e aos
investimentos diretos estrangeiros.
Dito o que vai acima, como
evidência dos consensos alcançados nas ciências econômicas – embora modestos e
nem sempre seguidos pelos líderes políticos –, o que poderia ser argumentado em
torno das diferenças e obstáculos ainda existentes, no terreno prático, para
que a moderna economia política possa trazer respostas úteis aos desafios e
dilemas de desenvolvimento de países como o Brasil? O primeiro ensinamento, que
o livro de André Nunes ajuda justamente a elucidar, é que devemos separar,
racionalmente, os elementos ideológicos do ferramental econômico que é possível
mobilizar para fins de crescimento e de desenvolvimento econômico.
Sou suspeito para me
pronunciar sobre as qualidades (reais) deste pequeno curso de introdução à economia
política para leigos – no caso, estudantes de direito e áreas afins – uma vez
que somos colegas de disciplina na Faculdade de Direito do Centro Universitário
de Brasília (Uniceub) e partilhamos, em grande medida, das mesmas inclinações
políticas e de orientações econômicas similares. Mas, com base numa longa
experiência de estudos teóricos, e de aprendizados práticos – no Brasil e em
muitos outros países aos quais me conduziu meu nomadismo diplomático – sei
reconhecer as virtudes didáticas do autor deste pequeno-grande livro de
iniciação às grandes questões que compõem o coração da economia política
enquanto guia de ação para os estadistas, tal como a concebia Adam Smith e
vários de seus seguidores.
Tenho certeza de que esta
obra cumpre integralmente seu papel de guia do pensamento e de farol para a
ação prática de alunos e professores que se dispõem a penetrar em alguns dos
meandros da ciência. Façam bom proveito deste livro e tenham tanta satisfação
em sua leitura quanto eu tive ao apropriar-me de algumas de suas reflexões e
ensinamentos para aperfeiçoar minha própria didática de ensino e de compreensão
dos fenômenos econômicos. Meus votos de longa vida no itinerário editorial que
ele agora empreende.