A longa travessia para a normalidade: juros reais no Brasil
Ilan Goldfajn
Valor Econômico, 27/06/2011, pág. A14
Quanto mais os indivíduos preferem o consumo à poupança no presente, maior é taxa de equilíbrio.
São Paulo - Parece uma eternidade. Mas foi há menos de uma década. O circo estava pegando fogo e eu me sentei para escrever um texto1. Não era algo natural. A crise de 2002 estava instalada e, na diretoria do Banco Central (BC), nos ocupávamos do intenso dia a dia. O Brasil estava no meio do furacão e a comunidade internacional duvidava que a dívida pública brasileira seria paga. O texto argumentava que não havia razões econômicas para essa dúvida e que a trajetória da dívida futura era declinante (tinha projeções até o distante 2011!). Deve ter sido um dos textos mais contestados da minha carreira. O final, como sabemos, foi feliz. O Brasil teve uma década de sucesso e a dívida declinou de 63%, na época, para em torno de 40% do Produto Interno Bruto (PIB), hoje.
Mas nessa viagem ao passado, um fenômeno salta aos olhos. Na época, projetávamos manutenção dos superávits fiscais primários, crescimento razoável, câmbio mais apreciado (no auge da crise chegou a cerca de US$ 4 reais) e juros menores. Tudo mais ou menos em linha com o ocorrido. Mas os juros reais no Brasil permanecem acima do padrão internacional, mesmo de países de similar desenvolvimento.
Não quer dizer que os juros tenham permanecido nos mesmos patamares do passado. De fato, a economia brasileira tem experimentado uma tendência de queda dos juros reais nos últimos anos, principalmente após a adoção do regime de metas de inflação em 1999. As taxas de juros reais básicas no Brasil recuaram de 11,4% ao ano, em média, no período entre janeiro de 2000 e junho de 2004, para 9,7% entre julho de 2004 e dezembro de 2008, e para próximo de 7% mais recentemente. Mas esta ainda é uma taxa muita alta para uma economia estável e próspera como o Brasil nos últimos anos.
Como mostrado por Bacha2, há evidências empíricas de redução do juro real no Brasil em relação ao resto do mundo, e a diferença entre essas duas taxas diminuiu com a adoção do regime de metas de inflação. No entanto, controlando para os ciclos econômicos no Brasil e no resto do mundo, e para a inércia do ajustamento, a diferença entre as duas taxas permanece elevada.
"Redução do diferencial de juros exige ajuste fiscal que controle o crescimento dos gastos do governo"
Não considero que o alto nível da taxa de juros no Brasil seja um fenômeno permanente. Na sua travessia, o Brasil precisa gerar as condições para passar a ter uma taxa de juros baixa. É uma tarefa difícil, mas não intransponível. Há vários casos bem-sucedidos de redução de juros em países emergentes. A Turquia, no começo de 2003, amargava juros reais (acima da inflação) de 25% ao ano, e depois conseguiu que suas taxas convergissem para níveis de um dígito. A Polônia derrubou sua taxa de juros reais de 9% ao ano para 3%, a partir de 2001. Na América Latina, ocorreu o mesmo. No Chile, as taxas caíram de 8% para 3%, assim como houve quedas significativas no Peru.
A pergunta no Brasil é por que a transição para um patamar de juros reais tem sido tão lenta?
Tenho preferência pelas explicações fundamentais. Entendo a taxa de juro real de equilíbrio (ou neutro) como aquela que permite ao Brasil crescer no seu potencial, sem gerar pressões inflacionárias. Essa taxa depende das condições econômicas como a estabilidade, o risco percebido, a produtividade, a política fiscal (crescimento de gastos), assim como das distorções ainda existentes da economia brasileira. Depende também de quanto os brasileiros estão dispostos a poupar, em vez de consumir hoje. Quanto mais os indivíduos preferem o consumo no presente, maior é taxa de juro real de equilíbrio.
A alternativa de os juros altos serem resultado de equívocos de política monetária (mais altos que o necessário) não é compatível com os dados, pois teriam de ter durado por décadas e levariam a forças deflacionárias, com inflação sistematicamente abaixo das metas, o que não tem sido o caso.
O entendimento de por que os juros ainda são tão altos passa pela compreensão cuidadosa de seus determinantes. Na busca pelos determinantes é interessante distingui-los pela sua relevância temporal na taxa de juros de equilíbrio. Alguns podem impactar a taxa de equilíbrio apenas no curto prazo, enquanto outros mudam sua trajetória de longo prazo.
O juro real neutro de longo prazo depende dos fundamentos da economia, de fatores estruturais, alguns mencionados acima, como a produtividade, preferências intertemporais, prêmio de risco soberano, dívida pública, prêmio de risco de inflação, questões institucionais, etc. São fatores diretamente associados ao comportamento da poupança no longo prazo.
"O melhor a fazer é conduzir a política monetária de forma pragmática e avaliar continuamente o seu impacto"
O juro real de equilíbrio de curto prazo depende do juro real de longo prazo e de elementos conjunturais. Mudanças temporárias no ritmo de crescimento da economia global, assim como acelerações cíclicas no gasto do governo ou alterações na taxa de câmbio real afetam o juro real de equilíbrio no curto prazo.
Introduzo aqui já a minha preferência pela explicação da insuficiência de poupança doméstica, como já introduzido por André Lara Resende3 neste espaço, como explicação para a manutenção dos juros altos nessa transição para a normalidade. Os juros servem para inibir o consumo privado e estimular a poupança, na ausência de poupança pública suficiente para financiar os necessários investimentos.
Estimativas de um estudo recente com Aurelio Bicalho4 identificam que a redução do diferencial de juros em relação a outras economias exige um ajuste fiscal que controle o crescimento dos gastos do governo.
Os resultados também revelam que o prêmio de risco-país, a dívida pública em proporção do PIB e o crédito em proporção do PIB, todos com defasagens, afetam o nível da taxa de juro real e explicam a trajetória de queda observada nos últimos anos. Mostram também que a taxa de juros real de equilíbrio de longo prazo tem se reduzido nos últimos anos, mas o nível estimado continua bastante elevado quando comparado a outras economias emergentes.
O impacto do prêmio de risco e da dívida pública na taxa de juro real é coerente com outros resultados encontrados na literatura. As estimativas mostram também que o aumento do crédito em proporção do PIB contribui, com longas defasagens, para a redução do juro real de equilíbrio de longo prazo. Essa relação pode ser reflexo do impacto de avanços na estrutura institucional do mercado financeiro, que estaria sendo captada pela variável crédito. Uma melhora na estrutura dos mercados poderia, por exemplo, ampliar as opções de ativos em termos de retorno, risco e liquidez disponíveis para os poupadores. Isso funcionaria como um estímulo à poupança, o que diminuiria a taxa de juro real de equilíbrio. O aumento do crédito na economia pode estar relacionado a esse avanço nas estruturas dos mercados, com o desenvolvimento de novos produtos, o que tenderia a reduzir a taxa de juros. Mas para que o crédito contribua para a redução da taxa de juro real de equilíbrio de longo prazo, é necessário que sua expansão seja determinada por fatores estruturais, como a redução da assimetria de informação, avanço institucional que acelere a recuperação do colateral e desenvolvimento de novas estruturas financeiras (caso contrário, o efeito no curto prazo pode ser o inverso).
Mas há outras explicações na literatura para a taxa de juros elevada. Uma delas é a existência de incerteza jurisdicional e ausência de conversibilidade da moeda desenvolvida por Persio Arida, Edmar Bacha e Andre Lara Resende5. A incerteza jurisdicional afeta a poupança e evita o desenvolvimento de um mercado de crédito de longo prazo. A ausência da conversibilidade da moeda pressiona as taxas de juros de curto prazo, pois os poupadores exigem uma taxa maior para alocar seus recursos no mercado de dívida local. Esses fatores institucionais afetam a curva de poupança doméstica e o fluxo de capitais, influenciando a taxa de juro real de equilíbrio.
Considerando dados de diversos países, os estudos mostram que o efeito da dolarização (ou a falta de conversibilidade da moeda) é significativo6, embora pequeno, em explicar o nível mais alto da taxa de juro real no Brasil. Os resultados também evidenciam a importância do risco de crédito soberano em explicar o nível da taxa de juro real. Países de classificação de risco grau de investimento possuem taxas de juros reais de cerca de 2 pontos percentuais mais baixas do que países com classificação de risco pior. No longo prazo, essa diferença pode chegar a 4 pontos percentuais.
A trajetória recente dos juros parece confirmar os resultados do estudo com Aurelio Bicalho. Esse identifica que a recente crise internacional reduziu temporariamente a taxa de juro de equilíbrio de curto prazo, mas o mesmo não parece ter ocorrido com a taxa de equilíbrio de longo prazo. A queda da atividade econômica global reduziu o crescimento do país, permitindo que a taxa de juro real ficasse abaixo da taxa neutra de longo prazo para equilibrar a economia através dos estímulos ao consumo e ao investimento. Notamos, também, que a incerteza sobre o nível do juro real de equilíbrio de curto prazo aumentou substancialmente durante a crise internacional. Essa incerteza refletiu, em grande medida, a intensidade do impacto do crescimento mundial na economia doméstica, além da intensidade dos impactos das medidas anticíclicas adotadas durante a crise.
O impacto da crise no juro de equilíbrio de curto prazo teve consequências na condução da política econômica naquele momento. No auge da crise, o Banco Central reduziu a taxa de juros para estimular o crescimento. Ao mesmo tempo, o governo adotou uma política fiscal expansionista via aumento de gastos e redução de impostos. Além disso, utilizou o canal de crédito como instrumento para incentivar a atividade econômica. A partir do momento em que essas medidas começaram a atuar na economia e o mundo voltou a crescer, a taxa de juro real de equilíbrio de curto prazo inverteu a sua trajetória de queda e passou a subir em direção à taxa neutra de longo prazo.
No início de 2010, as estimativas mostravam que a taxa de equilíbrio de curto prazo estava próxima da neutra de longo prazo. Logo, os estímulos monetários e fiscais deveriam ser retirados, pois o risco era um aquecimento exagerado da atividade econômica, com elevação das pressões inflacionárias. No final de 2010 e início de 2011, esses estímulos começaram a ser retirados.
A dinâmica da taxa de juros real de equilíbrio é de suma relevância para a condução da política monetária. É através dos desvios entre a taxa de juros efetiva, que é afetada pelas decisões do Banco Central, e a taxa de juro de equilíbrio de longo prazo que a autoridade monetária estimula ou contrai a demanda agregada com o intuito de alcançar seu objetivo final, que é o de manter a inflação na meta.
É importante reconhecer que há um alto grau de incerteza nas estimativas das taxas de juros de equilíbrio. As evidências internacionais mostram que é bastante incerta a estimativa da taxa de juro real de equilíbrio em diferentes países, mesmo para aqueles com taxas muito inferiores e com menor volatilidade do que a taxa do Brasil. De fato, os intervalos das estimativas para a taxa de juro real de equilíbrio em diversos países revelam o grau de incerteza que cerca essas variáveis. É comum um intervalo de 1 ponto nessas estimativas, mesmo para economias com níveis baixos de taxas de juros. No Brasil, onde a taxa de juros tem tido uma tendência de queda, como evidenciam os dados e as nossas estimativas, e o nível da taxa ainda é bastante elevado, quando comparado aos padrões internacionais, é provável que o grau de incerteza seja ainda mais alto.
Dadas as elevadas incertezas associadas às medidas das taxas de equilíbrio, acreditamos que o melhor que a autoridade monetária possa fazer é conduzir a política monetária de forma pragmática, avaliando continuamente o impacto de suas ações sobre a economia. Deste modo, a política monetária deve continuar baseando-se nos sinais advindos da inflação, da atividade e de outras variáveis macroeconômicas, permitindo que mudanças estruturais sejam percebidas sem mais demoras.
As evidências acima sugerem que a opção da sociedade por gastos públicos crescentes (vários destes legítimos) tem contribuído para retardar o processo de convergência da taxa de juro real de equilíbrio para níveis internacionais tanto no curto prazo quanto no longo prazo. A redução do crescimento dos gastos correntes, tudo o mais constante, aumentaria a poupança da economia e reduziria o juro real de equilíbrio. Uma queda consistente dos juros possibilitaria um conjunto de desenvolvimentos que não são viabilizados com juros altos, como o alongamento dos horizontes dos poupadores e dos investidores, fundamental ao financiamento do investimento no Brasil.
A estabilidade macroeconômica e a credibilidade da autoridade monetária têm exercido papel fundamental na redução dos prêmios de risco, permitindo a queda da taxa de juros real de equilíbrio de longo prazo. Aliado a isso, uma política fiscal voltada para a redução dos gastos públicos contribuiria para acelerar esse processo e fazer com que no futuro o Brasil tenha taxas de juros reais mais próximas dos padrões internacionais.
Notas:
1 Goldfajn, I. Há razões para duvidar de que a dívida publica é sustentável? Nota Técnica do Banco Central do Brasil número 25, Julho 2002.
2 Bacha, E. Além da Tríade: Como Reduzir os Juros? Novos Dilemas da Política Econômica - Ensaios em Homenagem a Dionísio Dias Carneiro, Eds: Bacha, E. e De Bolle, M., LTC, 335p, 2011
3 Lara Resende, A. Juros: Equívoco ou jabuticaba, Valor 16/06
4 Goldfajn, I. e Bicalho, A. A Longa Travessia para a Normalidade: Os Juros Reais no Brasil. Novos Dilemas da Política Econômica - Ensaios em Homenagem a Dionísio Dias Carneiro, Eds: Bacha, E. e De Bolle, M., LTC, 335p, 2011
5 Arida, P., Bacha, E., e Lara-Resende, A. Credit, Interest, and Jurisdictional Uncertainty: Conjectures on the Case of Brazil. IEPE/CdG, 1-25, 2004.
6 Bacha, E., Holland, M. e Gonçalves, F. A Panel-Data Analysis of Interest Rates and Dollarization in Brazil. Revista Brasileira de Economia. 63, n.4, 341-360, 2009
Agradeço a Aurelio Bicalho pela contribuição a este artigo.
Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco e sócio do Itaú BBA.
Este é o nono de uma série de artigos sobre a conjuntura econômica atual, com foco maior nos problemas de câmbio, juros e inflação, feitos por renomados economistas a pedido do 'Valor'. Amanhã publicaremos o artigo de Márcio Holland.