Socialismo para os incautos
Paulo Roberto de
Almeida
Quem diria?!: o socialismo, temporariamente aposentado e relegado a um
esquecido e remoto depósito de alternativas credíveis ao velho e duro
capitalismo, parece estar voltando novamente à cena, agora travestido em sua
nova roupagem “do século XXI”. Ele passou a ser oferecido, sobretudo, na
América Latina, terra de todos os milenarismos.
Com efeito, depois de seu brilhante fracasso no final dos anos 1980, o
socialismo tinha ido fazer companhia à roca de fiar e ao machado de bronze, no
museu das antiguidades, como pretendia Engels em relação ao Estado.
Surpreendentemente, ele parece ensaiar um retorno triunfal nos remakes que vem sendo servidos em tom
triunfalista – e a grandes doses de subsídios petrolíferos – por alguns
personagens diretamente retirados dos livros de história, ainda que de épocas
que se imaginavam enterradas e esquecidas.
Seu retorno em grande estilo se deve, ao que parece, aos fracassos
igualmente rotundos do “neoliberalismo” na região, no decorrer das duas décadas
seguintes ao desmantelamento do socialismo real na Europa do leste (e um pouco
em todas as outras partes do mundo). O fato é que o velho capitalismo
continuava a ser, de
fato, um sistema injusto e desigual, mas ele se impunha quase que naturalmente
como forma de organização econômica e social, uma vez que não tinha sobrado
quase nada de alternativo, e que fosse factível, nas reduzidas prateleiras do
supermercado da história. Tivemos passar a consumir capitalismo, em doses
maciças, de forma praticamente obrigatória.
Para alguns, a experiência
de ter de aceitar compulsoriamente o capitalismo deve ter sido traumática. Os
órfãos do velho socialismo – tão mais numerosos quando nunca tiveram de viver a
experiência do “socialismo real” – devem estar novamente esperançosos, ao
assistir os anúncios triunfalistas que são atualmente feitos em nome do novo
socialismo, cujos contornos são ainda em grande parte indefinidos, mas que
envolvem as fórmulas habituais de estatização e os cacoetes culturais
conhecidos em torno da criação do “homem novo”, como convém aos sistemas
deliberadamente messiânicos e salvacionistas. Aos velhos socialistas se
juntaram vários grupos de jovens idealistas, comumente referidos como
antiglobalizadores ou altermundialistas, que acreditam, em grande medida
sinceramente, que o capitalismo representa, de fato, a maior soma de iniqüidades
possíveis de todas as formas conhecidas de organização econômica e social,
entre elas as comunidades primitivas e o feudalismo medieval.
Contemplo essa “nova marcha
para a frente”, no sentido da “redenção da humanidade”, com o olhar cético de
quem já assistiu a esse filme antes, inclusive por ter me engajado, em outras
eras, na luta contras as iniqüidades do capitalismo latino-americano e sua
submissão aos ditames do imperialismo colonizador e de ter tido, na seqüência,
a oportunidade de conhecer os diversos socialismos reais disponíveis nas lojas
de departamento da história, a maior parte nos países do leste europeu, do
início até quase o final dos anos 1970. Estou portanto habilitado a
pronunciar-me por experiência própria quanto às esperanças de se ter um “novo socialismo”,
desta vez sem as habituais bulas marxianas ou leninistas, apenas com roupagens
e cenários que me lembram, vagamente, as fórmulas mussolinianas.
Se isto pode servir de
consolo aos jovens idealistas da antiglobalização – uma vez que eu considero os
“velhos órfãos” do socialismo “irreformáveis” e “intransformáveis” –, eu diria
o seguinte: aqueles que hoje condenam o capitalismo por todas as suas iniqüidades,
provavelmente nunca conheceram suas alternativas “reais”, que eram as do
socialismo de tipo soviético e suas diversas variantes, algumas delas
sobrevivendo ainda numa pequena ilha do Caribe e num canto remoto da Ásia.
Apenas a falta de informação e uma irracional recusa em se informar, a despeito
da massa de conhecimento acumulada a respeito das experiências do socialismo
real podem explicar essa demanda, atualmente crescente, por um “socialismo do
século XXI”.
Eu, por ter conhecido
pessoalmente, se ouso dizer, todos os socialismos reais e o seu modo de
funcionamento interno, posso assegurar, com toda a candura de uma alma
reconciliada com as supostas iniqüidades do capitalismo, que não há maior
miséria moral, maiores atentados à dignidade humana, do que os regimes
socialistas que existiram na face da terra até bem pouco. Posso parafrasear o
que disse o poeta e revolucionário cubano José Marti dos Estados Unidos, país
no qual ele se exilou temporariamente, para escapar dos opressores coloniais de
sua pátria: “eu conheci as entranhas do monstro”. De fato, pude conhecer o
interior da “baleia socialista” e o que vi não era nada bonito, muito pelo
contrário.
O mais chocante, justamente,
não eram apenas as pequenas misérias materiais, o aspecto deteriorado dos
equipamentos públicos, a falta habitual de produtos de primeira necessidade, as
estantes sempre vazias nos comércios, a rudeza de apresentação e o caráter
tosco da maior parte dos bens e serviços oferecidos nos “mercados” socialistas,
tudo isso era habitual e esperado e não me surpreendeu mais do que a decepção
dos primeiros contatos. O que estava por trás de tudo aquilo era muito mais
importante, pois tinha a ver, não com a simples miséria material, mas com os
comportamentos sociais, com o olhar furtivo das pessoas, com a contenção da
linguagem, com a retenção do pensamento, com o permanente estado de vigilância
policial, em uma palavra, com a miséria moral que só os verdadeiros regimes
socialistas são capazes de exibir.
Não estou me referindo aqui
ao Estado policial em estado quimicamente puro, se ouso dizer, uma amostra do
qual pode ser conferido na grande “biografia” do Gulag da historiadora Anne
Applebaum. Não tem a ver com a repressão direta, estilo Gestapo ou NKVD, apenas
com a vida cotidiana num país socialista “normal” do Leste europeu em meados
dos anos 1970. Aquilo deve ter me vacinado de maneira eficaz contra minha
anterior inclinação revolucionária a querer implantar o socialismo a golpes de
martelo, como pretendíamos na nossa juventude de opositores do regime militar
brasileiro.
Por isso, quando ouço
novamente os novos cantos de sereia sobre o “socialismo do século XXI”,
permito-me retrucar modestamente: vamos ficar com as modestas iniqüidades
materiais do capitalismo – que permitem, ainda assim, o progresso individual
baseado no mérito individual e no esforço próprio – e deixar de lado as tentações
totalitárias de pretender implantar a igualdade na base do autoritarismo, o que
só pode conduzir às grandes iniqüidades morais do socialismo.
Não existem
grandes virtudes no socialismo, apenas “heróis” do povo, devidamente fabricados
por ditadores pouco esclarecidos que implantam regimes muito parecidos com os
sistemas fascistas existentes na Europa do entre-guerras. Por experiência
própria, eu constatei que a ditadura dos medíocres – que caracteriza quase
sempre os regimes socialistas – é uma coisa terrível, e a miséria daí derivada
é muito superior à eventual miséria material do capitalismo...
Brasília, 1733, 18
março 2007