Este foi o primeiro trabalho que fiz, ao correr da pena, ou direto no teclado, sobre o Roberto Campos, preparatório a todos os demais trabalhos feitos em 2017, e que resultaram nas colaborações a dois livros, um que eu próprio organizei, este aqui:
Paulo Roberto de Almeida (org.), O Homem que Pensou o Brasil: trajetória
intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Editora Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0)
com dois capítulos, ademais de outros acréscimos editoriais:
“Roberto Campos: o homem que pensou o Brasil”
[Introdução], pp.
19-33
e “Roberto Campos: uma trajetória intelectual no século XX”, pp. 203-355
e este outro, com o qual colaborei nada menos do que três vezes, ou seja três capítulos distintos:
Ives Gandra da Silva Martins e Paulo Rabello de
Castro (orgs.), Lanterna na Proa: Roberto
Campos ano 100 (São Luís, MA: Resistência Cultural Editora, 2017, 344 p;
ISBN: 978-85-66418-13-2)
“Bretton Woods: o aprendizado da economia na
prática”,
pp. 52-56
“Fundando um banco de desenvolvimento: o BNDE”,
pp. 71-74
“Roberto Campos: receita para desenvolver um
país”,
p. 245-248
O trabalho foi feito sem consulta a fontes, apenas destacando o que eu mesmo conhecia das atividades de Roberto Campos, pela leitura anterior de suas Memórias, ou de outros textos. Eu ainda não tinha buscado todos os seus livros, os quais li, ou reli, nos dois primeiros meses de 2017.
Este aqui foi escrito improvisadamente em meados de novembro de 2016.
Paulo Roberto de Almeida
A importância da dimensão diplomática no pensamento
econômico e na atividade pública de Roberto Campos
[Notas preliminares]
Todos os homens públicos
chamados a exercer funções executivas pela via do mandato popular, e mesmo tecnocratas guindados
a posições de igual responsabilidade sem dispor necessariamente de um mandato político,
moldam suas ações e decisões por meio de uma combinação variável entre formação
teórica – geralmente de tipo acadêmico, mas também resultante de uma educação
qualquer – e experiência prática, ou seja, aquela que se adquire ao longo da
vida, no contato com a máquina pública ou com atividades no setor privado. Os
polos inevitáveis de qualquer ação governamental são justamente constituídos
pelo relacionamento complexo entre esses três fatores: uma formação teórica do indivíduo
chamado a desempenhar funções públicas, o peso das atividades produtivas, que
são majoritariamente dominadas, nas economias de mercado, por empresários privados,
e a própria atividade governamental, que é representada pelo ambiente
regulatório criado pelo Estado para enquadrar essas atividades privadas.
Roberto Campos não foi,
provavelmente, o primeiro, ou o único, membro do Serviço Exterior brasileiro
dotado de formação econômica que tivesse desempenhado funções importantes na
burocracia pública, ao longo da República de 1946 e, depois, durante o regime
militar, e mesmo mais além. Mas ele foi certamente um dos poucos, senão o único,
economista de formação que tenha se beneficiado de suas atividades enquanto
agente diplomático para moldar suas ações e decisões de cunho econômico
enquanto exercendo funções públicas de relevo, ao longo desses diferentes regimes
políticos, que se estendem de meados dos anoso 1940 até praticamente o final do
século 20. Essa rara combinação de sólida formação teórica, no campo da
economia, com a experiência prática adquirida na diplomacia, e seu envolvimento
em conferências diplomáticas em momentos decisivos da formulação e
implementação da ordem econômica mundial que, de certa forma, ainda é a nossa –
qual seja, o universo conceitual e organizacional de Bretton Woods e do sistema
multilateral de comércio – permitiu que Roberto Campos combinasse essa
expertise nascida do estudo da economia com a vivência real em instâncias
definidoras da estrutura contemporânea da economia mundial para exercer seus
talentos na burocracia pública o com brilho invulgar que sempre o caracterizou,
e que o marcaram como um dos homens públicos que mais influência exerceram
tanto sobre o ambiente regulatório brasileiro dessas décadas, quanto sobre o
próprio debate público na área econômica (e até política), ou seja, sobre o
pensamento econômico brasileiro da segunda metade do século 20 (e de certa
forma ainda hoje). Ele se coloca naquela categoria de pensadores levados
ocasionalmente a se desempenhar em funções públicas, capazes, assim, de exercer
tremendo impacto sobre as ações e as concepções de muitos outros homens
públicos, e mesmo sobre a sociedade em geral.
Numa comparação talvez exagerada,
Roberto Campos poderia ser equiparado a homens da estatura de George Kennan,
nos Estados Unidos, ou da de Raymond Aron, na França, ou seja, cidadãos dotados
dessa rara combinação de conhecimento derivado do estudo e de uma grande experiência
de vida obtida na convivência direta com momentos decisivos da história mundial
– as duas grandes guerras da primeira metade do século, a depressão econômica,
a emergência do socialismo como força mundial, a reconstrução econômica das
democracias de mercado, a Guerra Fria e a descolonização, a inserção dos países
em desenvolvimento na ordem mundial – e que puderam, a partir daí, influenciar
políticas públicas e o próprio debate de alta qualidade na sociedade de forma
geral, vindo a converterem-se em referências obrigatórias tanto na definição
prática dessas políticas, quanto no conteúdo e no estilo do pensamento político
e econômico, e diplomático também, que marcaram suas sociedades respectivas.
Roberto Campos teve a
rara chance de, começando sua carreira diplomática pela embaixada em
Washington, integrar a delegação brasileira à conferência de Bretton Woods, em
julho de 1944 nos Estados Unidos (não propriamente como delegado, mas como
assessor diplomático da delegação), e de ter assim assistido ao momento
definidor da ordem econômica mundial do pós-guerra. Posteriormente, ele também
integrou, sempre como assessor e não delegado, a representação brasileira à
Conferência das Nações Unidas sobre comércio e emprego, realizada em Havana, de
novembro de 1947 a março de 1948, e que, na sequência das primeiras negociações
do Gatt, em Genebra, definiu algumas das grandes linhas do sistema multilateral
de comércio que, com as mudanças institucionais posteriores, ainda é o nosso.
Mesmo que a Organização Internacional do Comércio, aprovada pela Carta de
Havana, não tenha se materializado na prática, permanecendo o Gatt
provisoriamente em vigor durante aproximadamente meio século (até a
constituição da OMC, em 1994), foi ali que foram longamente discutidos todos os
temas que integram o debate econômico mundial das últimas seis décadas, e
praticamente até hoje. Como diria o ex-Secretário de Estado americano Dean
Acheson – bem mais a propósito da ONU do que das demais organizações do
multilateralismo contemporâneo – em suas memórias, Roberto Campos esteve
“presente na criação” das mais importantes organizações do multilateralismo
econômico, quando também se tratava de integrar as economias socialistas e as
em desenvolvimento numa ordem que, até a primeira metade do século 20, era
dominada exclusivamente por um pequeno número de potências econômicas e
militares do Atlântico norte, exercendo sua influência, ou controle direto
(pelo colonialismo europeu) sobre mais de dois terços da população mundial.
Pouco depois dessas duas
experiências decisivas em sua vida pessoal e enquanto agente diplomático, o
jovem Roberto Campos engajou-se num mestrado em economia na Universidade George
Washington, na capital americana. Sua dissertação defendida em 1948 se situa,
justamente, na confluência do pensamento econômico neoclássico – como aliás era
o de Keynes, em sua formação inicial – e das novas ideias que estavam emergindo
nessa mesma época a partir do mestre de Cambridge (e ex-funcionário do Tesouro
britânico na conferência de Paris ao final da Grande Guerra), com sua críticas
ao Tratado de Versalhes de 1919 (As
Consequências Econômicas da Paz) e às limitações da economia convencional
para tratar dos profundos desequilíbrios surgidos a partir daquela guerra
global, definida por George Kennan como o mais importante conflito seminal (isto
é, geradora de novos conflitos) do século 20. Entre a Economics de Marshall (mestre de Keynes) e a Macroeconomics do próprio Keynes, a ciência econômica conheceu
progressos teóricos relevantes, e aplicações práticas imediatas, influências
absorvidas pelo jovem diplomata economista na sua trajetória posterior como
homem público chamado a posições de relevo sem necessariamente dispor de
mandato popular durante a parte mais ativa de suas atividades governamentais.
Essa combinação de
sólida formação teórica e contato íntimo com os intensos debates práticos que
se travaram nas grandes conferências econômicas do pós-guerra, e imediatamente
depois do mestrado em Washington, uma nova experiência prática no âmbito da
Comissão Econômica Mista Brasil-Estados Unidos, entre o final do governo Dutra
e o início do mandato constitucional de Getúlio Vargas, no quadro da República
de 1946, permitiram a Roberto Campos usar tanto a Economics neoclássica, quanto a nova Macroeconomics, de inspiração keynesiana, para moldar o seu
pensamento e ação no curso das décadas seguintes de atividades governamentais e
diplomáticas. Elas foram basicamente duas: primeiro a de diretor do BNDE,
criado em 1953 sob recomendação direta do relatório da Comissão Mista
Brasil-EUA, e que teve papel importante na montagem do Plano de Metas de
Juscelino Kubitschek em meados dessa década; e a de embaixador do Brasil nos
Estados Unidos, nos governos Jânio Quadros e João Goulart, numa das mais
conjunturas mais dramáticas da história política, e econômica, do Brasil
moderno, quando processos inflacionários e estrangulamentos cambiais impactaram
tremendamente o debate político em curso no governo e na sociedade, culminando,
como se sabe, no golpe militar de 1964.
Roberto Campos já se
tinha afastado de suas funções diplomáticas à frente da embaixada em Washington
quando o golpe ocorreu, e não o fez porque participasse de qualquer conspiração
contra o governo em vigor, mas porque estava em desacordo com várias das
medidas adotadas de modo intempestivo por Goulart, sob a recomendação de
conselheiros basicamente ignorantes em matéria econômica, mas que comprometiam
profundamente a credibilidade do Brasil junto aos países credores,
essencialmente os próprios Estados Unidos. Era natural, assim, que, dotado de
capacidade intelectual e de experiência prática no terreno das relações
econômicas internacionais, ele fosse chamado a colaborar com o novo regime, o
que ele fez na posição de ministro do Planejamento, convertido em órgão
permanente da administração pública. Tratou-se, sem qualquer exagero, do mais
profundo e do mais impactante processo de reformas econômicas e administrativas
de que se tem notícia em qualquer fase da vida política da nação, caracterizado
por mudanças que exerceram influência sobre as décadas seguintes, de certa até
a atualidade.
Interessante considerar
que, contrariamente às suas inclinações perfeitamente liberais da última fase
da sua vida, a atividade pública de Roberto Campos nos anos 1950 e 60 estiveram
inseridas num molde conceitual e operacional que privilegiava a ação do Estado
na definição das grandes linhas da construção de uma moderna economia de
mercado no Brasil, país marcado pela insuficiência de poupança privada, de
competências técnicas na própria sociedade e de um empresariado ainda tateante
em face das novas características da economia mundial, o que fazia com que o
governo fosse chamado a atuar na ausência de mercado de capitais próprios e de
capital humano para impulsionar a atividade produtiva a partir unicamente da
iniciativa privada. Roberto Campos participou, e comandou, ativamente, desse
processo de Nation building e de economic construction, que em grande
medida foi feito “pelo alto”, como nas experiências precedentes da Alemanha, ou
do Japão, que supriram pela ação do Estado as deficiências do setor privado que
tinham sido determinantes no caso da primeira revolução industrial, a da
trajetória britânica de desenvolvimento original.
Esse “estatismo” de
Roberto Campos, do qual ele viria parcialmente a se arrepender em fases
posteriores de sua vida – quando condenava o “dinossauro” da Petrobras e o
gigantismo de todo o aparato estatal na vida econômica da nação –, não o
impediu de reconhecer a validade da ação pública na definição das grandes
linhas de políticas públicas na área econômica e da formulação de projetos de
desenvolvimento nos mais variados setores da atividade produtiva. Ele apenas
pretendia limitar a ação do Estado ao mínimo indispensável para garantir a
solidez da iniciativa privada, nacional ou estrangeira – uma vez que ele era
totalmente aberto aos investimentos diretos estrangeiros em várias, senão
todas, áreas da economia nacional – com aquele sentido de planejamento que ele
tinha conhecido nos primórdios de sua vida ativa entre o final dos anos 1940 e
meados dos 50: Plano Salte, do governo Dutra, criação de várias estatais no
segundo governo Vargas, inclusive o BNDE ao qual esteve ligado desde o início,
Plano de Metas na campanha de JK à presidência e diversas outras iniciativas de
que participou na passagem para a década seguinte, como as negociações em torno
da dívida pública externa brasileira, junto a credores bilaterais e
internacionais.
Em todas essas etapas de
sua vida pessoal e nas atividades públicas que foi chamado a exercer, as
experiências obtidas e consolidadas por Roberto Campos no decorrer de sua vida
diplomática inicial foram essenciais, senão decisivas e mesmo indispensáveis
para a formação e a formulação de um pensamento econômico eclético, aberto às
mais diferentes influências de escolas econômicas e, sobretudo, marcadas pela
observação e participação direta em momentos decisivos do ordenamento econômico
mundial em curso no imediato pós-Segunda Guerra, quando ele ainda era um
simples assessor das delegações brasileiras. Seu senso prático, sua
flexibilidade de ação, e o seu vasto conhecimento (e até erudição) com respeito
ao debate econômico em curso no mundo praticamente não conhecem equivalente em
quaisquer outros representantes da vida pública nacional nessas cinco décadas a
partir da República de 1946 e durante todo o regime militar e mais além.
Praticamente, Roberto
Campos ainda é influente no debate público de qualidade, tendo sido pioneiro, e
até premonitório, na formulação de políticas públicas que seriam adotadas
apenas posteriormente, como as privatizações, um necessário rigor no trato do
orçamento público e na definição das mais importantes políticas setoriais (a
comercial e a industrial, por exemplo, mas também na tributação e nos mercados
de capitais). Como Raymond Aron, ele teve razão antes do seu tempo, e por isso
foi, em grande medida, denegrido por contemporâneos – chamado, por exemplo, de
Bob Fields pela esquerda e até por colegas diplomatas, por se posicionar
claramente em favor da participação do capital estrangeiro na economia nacional
– e condenado por supostos nacionalistas antigos e estatizantes de sempre, por
sua postura essencialmente liberal e esclarecida no trato das políticas
econômicas. Ele foi certamente único entre os diplomatas, mas também original
entre os economistas, e a combinação entre essas duas qualidades é que fizeram
dele o grande estadista que foi na história contemporânea do Brasil.
[19/11/2016]