segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

660) Brasil: encalhado no meio do caminho

Encalhado no meio do caminho
Eduardo Gianetti da Fonseca
Portal Exame, 15 dezembro 2006

Há no mundo um grupo de países que conseguiram, ao longo da história, acumular capital e educar a população. E há um conjunto de nações pobres que vêm encurtando a distância em relação aos ricos. O Brasil encontra-se estagnado entre esses dois blocos

Primeiro a foto: onde estamos? Do ponto de vista da produção média por habitante ou PIB per capita, os países do mundo podem ser classificados em três grandes grupos -- ricos, remediados e pobres. O Brasil representa um caso intermediário entre os pólos extremos representados pela Índia e pelo Canadá.

Com uma população 5,9 vezes maior que a brasileira, a Índia tem um PIB per capita (ajustado pelo poder de compra do rupee na própria Índia) de apenas 3 320 dólares anuais. Quer dizer: mesmo que a distribuição de renda na Índia fosse perfeitamente igualitária, isso só teria como resultado condenar toda a população do país à pobreza. A produção média por habitante na Índia é tão reduzida que não há cenário distributivo concebível que permita à massa da população sair de uma condição precária de vida.

No outro extremo está o Canadá. Com menos de um quinto da população brasileira, os canadenses têm um PIB per capita (ajustado) de 34 273 dólares anuais. Mesmo que a distribuição de renda no Canadá fosse tão desigual quanto ela é no Brasil, isso não condenaria a parte mais pobre de sua população a viver na miséria. Se os 50% mais pobres do Canadá recebessem a mesma fatia da renda nacional destinada à metade de baixo da pirâmide social brasileira (ou seja, cerca de 16% da renda do país), ainda assim esse grupo menos favorecido de canadenses teria uma renda média de 10 566 dólares ao ano -- número 23% superior à média dos brasileiros. O valor gerado a cada ano por um canadense é, em média, cerca de dez vezes maior que o gerado por um indiano e quatro vezes maior que o gerado por um brasileiro.

Até aqui a foto: o simples registro de uma situação de fato. O que mais importa, no entanto, é o filme -- o enredo que produziu esse instantâneo e que determinará a trajetória futura. Como explicar as enormes diferenças de PIB per capita observadas na economia mundial? Quais são os principais determinantes do crescimento, ou seja, das taxas de variação do PIB per capita em diferentes países? E o que as respostas a essas perguntas podem nos dizer sobre o fraco desempenho recente e as perspectivas de nossa economia nos próximos anos?

AS CAUSAS DOS ENORMES DIFERENCIAIS de produção média por habitante no mundo são fundamentalmente duas. A primeira é o estoque de capital físico e capital humano por trabalhador. A diferença de produtividade entre canadenses, brasileiros e indianos, para ficarmos nos termos do exemplo citado, decorre do fato de que os primeiros investiram na formação de um estoque de capital que permitiu trocar enxadas por tratores e o mundo do roçado pelo mundo da informática. Esse capital potencializa a produtividade da hora trabalhada. É a existência de uma enorme massa de trabalhadores sem qualificação, ocupando empregos de ínfima produtividade ou subempregados, que deprime o PIB per capita dos países de menor renda, como Índia e Brasil. A importância crescente do capital humano no mundo contemporâneo transparece na estimativa feita pelos economistas Robert Fogel e Gary Becker, da Universidade de Chicago, de que ele hoje representa cerca de dois terços do estoque total de capital na economia americana.

O segundo fator responsável pelas diferenças de PIB per capita é a eficiência alocativa do sistema. Não basta uma dotação adequada de capital. É igualmente fundamental que esses recursos estejam de fato empregados nos setores e ramos de atividade em que são mais rentáveis. Para isso, é necessário que o ambiente institucional e as regras do jogo econômico (direitos de propriedade, grau de abertura comercial, segurança jurídica etc.) promovam a eficiência alocativa, estimulando os indivíduos e as empresas a direcionar seus recursos e talentos para as atividades em que o seu potencial de geração de valor é maior. A diferença de PIB per capita entre as duas Alemanhas antes da queda do muro de Berlim torna patente o impacto da eficiência alocativa num contexto em que o capital humano per capita era basicamente uniforme nos dois países.

O estoque de capital físico e humano e a eficiência alocativa determinam o nível do PIB per capita: a disparidade entre um Canadá, um Brasil e uma Índia. Mas eles nada nos dizem sobre as variações do PIB per capita ao longo do tempo. Para isso é preciso avançar da radiografia para o enredo da trama do crescimento.

O PRIMEIRO PASSO É DISTINGUIR com clareza duas realidades distintas que se escondem -- e muitas vezes se confundem -- sob o termo crescimento: uma simples recuperação cíclica, de um lado, e o crescimento sustentado propriamente dito, fruto da formação de capital e de ganhos de eficiência alocativa, de outro. Aí reside o ponto crucial, creio eu, para uma correta compreensão das causas do baixo crescimento do PIB per capita brasileiro no período recente.

A recuperação cíclica é um movimento de curto prazo e tem fôlego curto. Ela consiste numa expansão da oferta agregada, mas dentro dos limites definidos pela capacidade de produção já instalada. Trata-se, portanto, de não mais que uma volta à normalidade após um período em que a economia vinha operando, por algum motivo, abaixo de seu pleno potencial. É o que ocorre após alguma melhoria das condições de demanda, que leva os empresários a expandir a oferta via redução da capacidade ociosa. A recuperação cíclica se desenrola num ritmo desigual entre os setores, alguns reagindo mais rapidamente que outros, mas tende a se difundir com o tempo pelo conjunto do sistema.

Coisa muito distinta, entretanto, é o crescimento sustentado -- um enredo de crescimento baseado não na maior utilização dos recursos existentes, mas na criação de capital físico e humano por meio da transferência de recursos do presente para o futuro. Trata-se, no fundo, de uma troca intertemporal, por meio da qual a sociedade gera um excedente transferível e decide não consumir no desfrute imediato o equivalente pleno de seus esforços, ou seja, poupar e investir parte de sua renda em um futuro melhor.

O fato inescapável é que há um momento a partir do qual a recuperação cíclica se esgota, pois já não há mais capacidade ociosa disponível para acomodar no curto prazo o aumento da demanda. A expansão da oferta passa a depender do crescimento sustentado: a ampliação da capacidade de produção por meio de investimentos em formação de capital (infra-estrutura, máquinas, edificações, educação, treinamento, P&D etc.). Esse investimento, por sua vez, depende de duas coisas: a) financiamento adequado, ou seja, poupança a custos compatíveis com o retorno esperado dos projetos; e b) um ambiente institucional que promova a eficiência alocativa e estimule o investidor privado a empatar recursos em formação de capital específico.

POR QUE O BRASIL CRESCE TÃO POUCO? O cerne da resposta, creio, está na distinção entre recuperação cíclica e crescimento sustentado. Entre 1995 e 2005, o PIB real per capita brasileiro cresceu em média irrisório 0,9% ao ano. Em apenas três dos 11 anos transcorridos desde o Plano Real, a variação anual do PIB per capita ficou acima de 2,8%. Foram os anos em que a economia ensaiou uma retomada do crescimento, mas o movimento -- contrariando as expectativas de muitos dentro e fora do governo -- teve fôlego curto: 1995, 2000 e 2004. Esses três episódios de flerte com o crescimento foram movimentos clássicos de recuperação cíclica. A retração do crescimento em 2005, sem que houvesse qualquer tipo de choque externo ou doméstico, é sem dúvida aquela que melhor ilustra o padrão descrito. Bastaram quatro trimestres de expansão um pouco mais vigorosa do PIB para o surgimento de pressões inflacionárias que levaram o Banco Central a se ver compelido a apertar outra vez a política monetária e "retirar o barril de chope quando a festa começava a ficar animada".

A grande questão, portanto, é entender por que a economia brasileira tem flertado com o crescimento, mas não consegue firmar um casamento duradouro com ele. Os ciclos de redução do juro primário são perfeitamente capazes de promover uma recuperação cíclica, mas eles não têm condições de conduzir a economia ao crescimento sustentado. Não é porque os juros são altos que a recuperação cíclica não leva ao crescimento sustentado, mas é porque a recuperação cíclica não leva a uma retomada dos investimentos e ao crescimento sustentado que os juros precisam ser novamente elevados. Há boas razões para crer que o crescimento factível no Brasil esteja atualmente em patamar bastante modesto, ou seja, algo em torno de 3,5% ao ano ou 2% ao ano para o PIB per capita.

DOIS FATORES LIMITAM HOJE NOSSO CRESCIMENTO sustentado: 1) uma gigantesca drenagem de recursos do setor privado para financiar gastos correntes do setor público; e 2) as deficiências do arcabouço jurídico-institucional que definem as regras do jogo econômico e terminam distorcendo o funcionamento normal dos mercados, tolhendo o empreendedorismo e inibindo o investimento privado.

Qual a magnitude da drenagem fiscal para o setor público? A carga tributária bruta atinge hoje cerca de 38% do PIB (o padrão para países de renda média é 20% a 25% do PIB). Apesar disso, nosso setor público apresenta, em condições normais, um déficit nominal consolidado da ordem de 3% do PIB. Quer dizer: algo em torno de 41% da renda nacional brasileira é intermediado pelo Estado. O fato espantoso é que, não obstante essa extraordinária cifra, a capacidade de investimento do setor público seja irrisória: a infra-estrutura se deteriora a olhos vistos, a ameaça de "apagões" é constante e os alunos brasileiros ficam nas piores colocações sempre que enfrentam testes internacionais de aprendizado.

O mecanismo de drenagem fiscal se dá por três canais principais. O primeiro é a via da tributação: em 2004, por exemplo, embora o PIB nominal brasileiro tenha crescido 213 bilhões de reais, o governo se apropriou de 47% (cerca de 100 bilhões de reais) desse total graças ao aumento da carga tributária. O segundo canal é o mecanismo de preço: os juros primários extremamente elevados pagos pelo governo para garantir a rolagem da dívida pública, o que desloca parcela expressiva da poupança nacional para o financiamento dos gastos correntes do Estado em detrimento do crédito e de investimentos privados. E, por fim, a pletora de artifícios regulatórios visando criar "poupança compulsória" (como FGTS, FAT etc.) e a canaliza ção de recursos subsidiados (como no caso do BNDES) para usos e destinações que não refletem critérios alocativos de mercado, mas os interesses, os parceiros e a "visão estratégica" dos governantes.

Isso significa que uma parcela expressiva da poupança do setor privado -- recursos que poderiam estar financiando os gastos das famílias e das empresas em formação de capital físico e humano -- está sendo deslocada para cobrir os gastos correntes do "Leviatã anêmico" em que se tornou a federação brasileira (União, 27 estados e 5 563 municípios). Exemplo: os 3 milhões de aposentados do setor público geram um déficit previdenciário maior que o gasto total do governo com 37 milhões de crianças na rede pública de Ensino Fundamental. Não é apenas que "o Estado brasileiro não cabe no PIB brasileiro", como diz o economista Delfim Netto. É que ele está matando por asfixia o crescimento do PIB brasileiro.

As falhas do arcabouço jurídico-institucional se somam a esse quadro. O investimento privado e a eficiência alocativa dependem de incen tivos adequados (mercado competitivo regido pelo sistema de preços) e de regras claras e confiáveis para as decisões econômicas. Embora dotado de vigorosa vocação empreendedora, o Brasil é hoje um dos países mais complicados do mundo para se abrir, gerir e fechar empresas. O tempo para iniciar um novo negócio (formal) no Brasil, segundo estudo recente do Banco Mundial, anda em torno de 152 dias; no Canadá, são necessários três dias. Uma vez criadas, contudo, nossas empresas ganham o dom da imortalidade -- as pendências tributárias e trabalhistas tornam praticamente impossível fechá-las legalmente.

As distorções do sistema tributário e do mercado de trabalho estão empurrando parcelas crescentes da força de trabalho e do setor empresarial para a selva da informalidade: cada um por si e todos (ou quase) na lona. Isso condena milhões de brasileiros a uma existência precária, faz cair a produtividade e mina a motivação de investidores nacionais e estrangeiros para criar novos negócios ou expandir os existentes. A "classe média" das empresas é uma categoria em extinção: o equivalente brasileiro de uma Microsoft dificilmente teria conseguido sair da garagem onde nasceu. Paralelamente, a ausência de um marco regulatório confiável e de agências reguladoras livres da intromissão dos governos inibe os investimentos privados em infra-estrutura e nos setores que dela dependem para crescer. Embora as instituições não tenham o dom de garantir sozinhas a prosperidade de todos, elas seguramente têm o poder de condenar uma nação à frustração de seu potencial empreendedor.

O PIB PER CAPITA É DETERMINADO pelo estoque de capital e pela eficiência alocativa. O aumento continuado do PIB per capita resulta de um fluxo adequado de formação de capital (poupança e investimento) e da melhoria do ambiente de negócios (reformas microeconômicas). O Canadá dispõe de um elevado estoque de capital e de instituições que garantem alta eficiência alocativa: é um país rico. A Índia, por seu turno, parte de um baixo PIB per capita, mas vem fazendo espetacular avanço graças a um enorme esforço de formação de capital (físico e humano) e de reformas pró-mercado: o PIB per capita indiano tem crescido 4,3% ao ano desde 1995.

Uns têm estoque (Canadá), outros têm fluxo (Índia). O Brasil encalhou a meio caminho entre os dois: estoque medíocre, fluxo anêmico. Em 2006, o crescimento do PIB deve ficar abaixo de 3%, ante uma taxa projetada de 7,3% para os países emergentes e de 5,1% para o mundo. Medido pela paridade do poder de compra, o PIB brasileiro encolheu de 3,9% para 2,7% do PIB mundial nos últimos 25 anos. Até quando?

domingo, 17 de dezembro de 2006

659) Um tratado inedito para os padroes internacionais

Brasil e EUA selam acordo pró-etanol
Agnaldo Brito
O Estado de S. Paulo, 17 de dezembro de 2006

Brasil e Estados Unidos vão assinar amanhã, em Miami, Flórida, o primeiro acordo bilateral pró-etanol. O negócio, que terá gestão privada, é patrocinado pelo governador da Flórida, John Ellis 'Jeb' Bush (irmão de George W. Bush), pelo ex-ministro da Agricultura e atual presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp, Roberto Rodrigues, e pelo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luis Alberto Moreno. Os três criarão a Comissão Interamericana do Etanol, que tem a pretensão de dar um novo status ao tema da agroenergia em âmbito continental.

O tratado é o primeiro a contemplar a construção de estratégias de médio longo prazos para o desenvolvimento do mercado, da pesquisa e das relações comerciais no campo da agroenergia. Brasil e EUA são hoje os maiores produtores mundiais de etanol, o combustível líquido renovável de maior sucesso no mundo. Juntos, os dois países produzem cerca de 34 bilhões de litros por ano e se preparam para mais que dobrar a produção em uma década.

Combustível líquido de fonte renovável é, apontam especialistas em energia, a alternativa mais efetiva para substituição do petróleo. 'Caminhamos para o fim da era do petróleo e outra civilização começou a emergir, mais justa, mais democrática, ambientalmente mais correta. E isso será construído com o suporte da agroenergia', disse Rodrigues, em entrevista exclusiva ao Estado.

Além de Rodrigues, mais 14 representantes de setores ligados à pesquisa e produção agrícola e industrial do País embarcam hoje para Miami para o evento que cria a Comissão Interamericana do Etanol. A seguir, Roberto Rodrigues, agora fora do governo, explica como a idéia surgiu e como esse passo inédito no agronegócio brasileiro pode mudar o perfil do setor no continente.

Quando surgiu a idéia de criar um acordo binacional Brasil-Estados Unidos de gestão privada para desenvolvimento do etanol?
Em novembro de 2005, mas a idéia inicial não era privada, era pública. Quando o presidente Bush esteve no Brasil, tive a oportunidade de dizer a ele que era preciso buscar uma alternativa de combustível baseada na agroenergia. Depois, ele fez um discurso que repercutiu muito na abertura dos trabalhos do parlamento dos EUA em que dizia ser necessário os Estados Unidos deixarem a dependência do petróleo e buscar alternativas de energia renovável. O plano, lá, é ambicioso. A meta é produzir quase 50 bilhões de litros até 2015. Hoje, eles produzem o que nós produzimos, 16 bilhões de litros.

Quem arquitetou essa Comissão Interamericana do Etanol?
Jeb Bush, governador da Flórida, teve a idéia de montarmos uma instituição para promoção do etanol em todo o hemisfério. Depois que saí do governo, fui procurado pela equipe dele com a idéia. Como o governador da Flórida vai deixar o governo em janeiro, o plano foi o de criar uma comissão binacional, de abrangência continental, na esfera privada, fora do governo. Concordei com o plano, mas sugeri que o BID fosse informado sobre a nova proposição. O BID concordou e aceitou integrar a comissão.

O que irá fazer essa comissão?
O trabalho da Comissão, em primeiro lugar, será o de conhecer a demanda potencial de etanol no mercado mundial, a capacidade de produção dos países, quais políticas podem contribuir com a pesquisa de novas fontes de matéria-prima, como transformar o etanol em commodity para negociação internacional e como deve ser a relação comercial para exportação desse produto.

A discussão da agroenergia tem força para envolver a discussão comercial sobre agricultura?
Esse é um ponto importante. Essa comissão que será criada amanhã em Miami tem uma importância histórica, já que não existe nada semelhante no mundo. É o primeiro tratado internacional com envolvimento do setor privado de ambos os países e de um organismo multilateral, como o Banco Mundial, com objetivo de desenvolver a bioenergia. Vou dizer algo perigoso. Mas veja: quando esse tema ganhar a dimensão que acho que ganhará, isso pode ser, na verdade, a alavanca para mudança dos acordos agrícolas na Organização Mundial do Comércio (OMC). É tamanha a envergadura desse projeto que a OMC pode se mover contra os subsídios agrícolas tendo como base a discussão da agroenergia.

Mas a discussão na OMC hoje está travada exatamente por causa da agricultura.
Se eu fosse Pascal Lamy (diretor-geral da OMC), travaria por mais tempo a discussão agrícola, como aliás já está travada para ver o seguinte: para onde caminha a discussão sobre agroenergia. Vamos ver como vai caminhar esse negócio, depois a gente vê como fica na OMC. Isso porque a agroenergia é o novo paradigma agrícola do mundo e ela está fora das discussões da organização. Acho que lá na frente, o governo vai ampliar essa discussão na OMC e retomar a visão agrícola sob o conceito da agroenergia.

A Comissão binacional para agroenergia hemisférica tem potencial de destravar a Alca?
Esse era o projeto de Jeb Bush. Na cabeça da assessoria dele, essa comissão poderia destravar a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) . Eu disse, olha não acho que seja o caso de usar isso para fazer a Alca voltar a andar. Tirei esse tema da agenda da comissão, mas estava na idéia deles. Nas primeiras conversas que tive com Jeb, ele dizia que esse é um mecanismo para retomar a Alca. Insisti: não é.

Do ponto de vista comercial, esse tratado privado orientado para a discussão da agroenergia pode beneficiar de que forma o setor no Brasil?
Temos de assumir a liderança desse novo negócio. Acho que não precisamos exportar só etanol, podemos exportar inteligência, uma usina completa, a gestão da usina de açúcar e de álcool. Quero exportar a gestão de logística. Quero exportar carro flex-fuel. É uma ação que pretende agregar valor às exportações brasileiras. Vou levar muita gente do setor para assinarmos esse acordo que cria essa comissão. O grupo que vai a Miami tem gente de todos os setores, exatamente para envolvê-los num plano mais amplo.

Essa iniciativa pode derrubar a sobretaxa que o álcool brasileiro é obrigado a pagar para entrar nos Estados Unidos?
Pode, mas não no curto prazo. O governador Jeb Bush já tinha pedido ao Congresso americano que reconsiderasse e retirasse a taxa de US$ 0,54 por galão. Hoje, essa taxa representa um custo de 35% acima do preço cobrado na usina, o que inviabiliza a exportação direta. O Congresso ratificou a tarifa por mais dois anos. Sinceramente, não acho que essa tarifa seja um problema sério. Pior do que isso é a indicação. É um sinal, mais um, de que os Estados Unidos dão na OMC. Esse é o ponto negativo, não acho que tenha grandes efeitos comerciais.

Qual será o papel do governo brasileiro?
Hoje, acho que temos um problema de ordem governamental. Existem oito ministérios no Brasil trabalhando no tema da agroenergia. Agricultura, Desenvolvimento Agrário, Minas e Energia, Ciência e Tecnologia, Indústria e Comércio Exterior, Itamaraty, Meio Ambiente e Casa Civil, que coordena uma comissão interministerial, uma tentativa de criar uma política que fale uma coisa só. Ainda não está pronto, mas há uma comissão criada para isso. A primeira missão é harmonizar as políticas públicas. A segunda é harmonizar o tema no setor privado e, por fim, harmonizar o tema no ponto de ligação entre os setores público e privado, como por exemplo estocagem.

O sr. fala em iniciativa histórica. Por quê?
Precisamos perceber o momento que vivemos. A civilização está mudando. Caminhamos para o fim da era do petróleo e outra civilização começou a emergir, mais justa, mais democrática, ambientalmente mais correta. E isso será construído com o suporte da agroenergia. A minha ambição, e tratei isso no governo, enquanto estava lá, é a de que o Brasil pode ser líder nessa mudança mundial.

O Brasil parece ter apetite. Esse avanço da cana não compromete outras culturas?
De forma nenhuma. Hoje, no País, existem 62 milhões de hectares agricultados. Desses, apenas 6 milhões tem cana, 3 milhões para produção de açúcar e 3 milhões para produção de etanol. Temos 220 milhões de hectares de pastagens, 90 milhões são aptos para a agricultura, dos quais 22 milhões são bons para a cana. Só em pastagem, não é Mata Atlântica, Floresta Amazônica, ou qualquer outro bioma. Os 3 milhões de hectares produzem 16 bilhões de litros de álcool. O crescimento de 12 bilhões de litros nos próximos anos pode ser obtido com apenas mais 1,8 milhão de hectares. Isso para os padrões tecnológicos atuais. Não há, portanto, nenhum risco de a cana atrapalhar a produção de alimentos. Aliás, a cana poderá aumentar a produção de grãos, com a rotação de cultura.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

658) Movimentos sociais contra a integracao fisica da America do Sul

AMÉRICA DEL SUR: Dos Cumbres, dos rumbos de integración
Por Carlos Tautz

COCHABAMBA, Bolivia, 9 dic 2006 (IPS) - Las dos Cumbres sudamericanas que concluyeron este sábado en esta central ciudad boliviana plantearon rumbos distintos de integración. Mientras el encuentro social puso por delante los derechos de los pueblos, los presidentes se concentraron en impulsar obras de infraestructura.

Al encuentro oficial, la II Cumbre de la Comunidad Sudamericana de Naciones (CSN) asistieron ocho presidentes. Al tope de la agenda en esta reunión estuvo la interconexión física entre los 12 países del bloque.

Los mandatarios aprobaron la idea de instalar una secretaría general temporal de la CSN por un año en Río de Janeiro, destinada a elaborar estudios sobre la formalización y consolidación de la comunidad. Se trata de un plan de profundización de las relaciones, según dijo el presidente boliviano Evo Morales

Pero el trabajo de la secretaría no será fácil.

Según representantes de varios gobiernos e instituciones financieras presentes en Cochabamba, ese plan de profundización incluye la integración de los gasoductos, las plantas hidroeléctricas y las carreteras, a pesar de la franca oposición de la mayoría de las organizaciones que participaron de la Cumbre Social por la Integración de los Pueblos, que también se celebró en esta ciudad.

"Estamos dispuestos a escuchar a los movimientos sociales como los que están aquí para superar eventuales desconfianzas en la relación a este u otro proyecto", dijo el vicepresidente de infraestructura de la Corporación Andina de Fomento (CAF), Antonio Juan Sosa, en un debate durante la Cumbre Social.

Las organizaciones sociales que participaron de este encuentro, y que elaboraron una declaración con sugerencias que entregaron a los jefes de Estado sudamericanos, consideran equivocada la prioridad que le dan los gobiernos a las obras públicas y subrayan la importancia del desarrollo social.

Para ellos, las grandes centrales hidroeléctricas, los gasoductos y las autopistas entrañan impactos sociales y ambientales que no contribuyen a la integración de los pueblos.

La CSN "no debe ser una prolongación del modelo de libre mercado, basado en la exportación de productos básicos y bienes naturales, fundamentada en el endeudamiento y en la distribución desigual de la riqueza", señala el texto final de la Cumbre Social, que congregó a casi 4.500 personas, en su gran mayoría indígenas.

Pero, carentes de recursos fiscales, los presidentes prefieren ser pragmáticos y aprovechar la buena oferta de créditos en el mercado internacional. En su declaración final, los mandatarios no incluyeron ninguna de las sugerencias hechas en la Cumbre Social.

La CAF, el Banco Interamericano de Desarrollo (BID) y el Banco Nacional de Desarrollo Económico y Social de Brasil disponen juntos de 30.000 millones de dólares en 2006 para préstamos en proyectos.

Esas instituciones están particularmente interesadas en colocar esos recursos en las obras de la Iniciativa de Integración de Infraestructura de la Región de América del Sur (IIRSA), coordinada por el BID.

Casi todos los gobiernos expresaron en la Cumbre de la CSN su respaldo a la IIRSA, y tres de ellos pasaron de la crítica abierta a un apoyo condicionado.

El presidente venezolano Hugo Chávez calificó de "economicista" a la iniciativa, y leyó ante los demás mandatarios un documento en el que los movimientos populares acusan a la IIRSA de ser un instrumento de las empresas multinacionales para exportar recursos naturales sudamericanos a los países ricos.

Chávez también criticó la sucesión de reuniones presidenciales y sugirió la institucionalización de la CSN. "Vamos de cumbre en cumbre, y el pueblo va de abismo en abismo", afirmó.

"Necesitamos (crear) el Banco del Sur, un sistema de salud, universidades y otras instituciones que ayuden a nuestros pueblos a salir de la condición en que se encuentran", añadió.

Mientras, el presidente brasileño Luiz Inácio Lula da Silva, principal defensor de la IIRSA, propuso que un futuro parlamento de la CSN tenga como sede esta ciudad boliviana.

"No tenemos derecho a fallarle al pueblo de este continente. No nos llevará 50 años integrarnos, como le llevó a Europa. El siglo XXI, que no será un siglo perdido como el XX, será el siglo de América del Sur", dijo Lula.

El presidente electo de Ecuador, Rafael Correa, que asistió a la Cumbre de la CSN como invitado, sostuvo que la mayoría de los 31 proyectos de la IIRSA deben ser revisados.

No obstante, dio su respaldo a algunos planes, como la construcción de autopistas y puertos para la exportación de bienes brasileños al Pacífico a través de Ecuador.

En una carta abierta a los movimientos de la Cumbre Social, Morales también mostró cierta reticencia sobre la IIRSA.

Sin embargo, su viceministro de Electricidad, Jerjes Mercado, dijo a IPS que Bolivia quiere participar del primero y hasta ahora más polémico proyecto de la iniciativa: la construcción de dos usinas eléctricas en el río Madeira, en Brasil.

Ambientalistas alertan que esto podría provocar inundaciones que afecten parte del territorio boliviano.

En el campo político, los encuentros en Cochabamba dejaron en claro que, para que la CSN pueda seguir adelante, es necesario unificar los dos bloques de integración: la Comunidad Andina de Naciones (CAN) y el Mercado Común del Sur (Mercosur)

Analistas consideran posible que la elección del izquierdista Rafael Correa en Ecuador ayude a la región a caminar en ese sentido.

"Si él confirma la adhesión al Mercosur, romperá con el eje neoliberal andino de Perú y Colombia, que firmaron tratados de libre comercio con Estados Unidos", señaló el sociólogo Edgardo Lander, de la Universidad Central de Venezuela y uno de los principales teóricos de la Alianza Social Continental, red de organizaciones sociales que participó de la Cumbre paralela.

Lander abandonó Cochabamba con cierto optimismo, a pesar de alertar en varias oportunidades que la CSN necesita tomar decisiones concretas y salir de los "bellos discursos diplomáticos".

A este respecto, Lander puede quedarse tranquilo. Correa confirmó a IPS que este miércoles viajará a Argentina para discutir con el presidente Néstor Kirchner la promoción de Ecuador como nuevo miembro asociado del Mercosur.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

657) Os objetivos de Hugo Chavez

Segundo informações vindas de Caracas, os elementos centrais da doutrina chavista para o "socialismo do século XXI" seriam os seguintes:

1) a nova ética bolivariana socialista;
2) um modelo produtivo socialista, a economia socialista;
3) uma democracia protagônica revolucionária, na qual o povo detenha o máximo poder da República;
4) a suprema felicidade social;
5) uma nova geografia nacional, por meio da distribuição do desenvolvimento endógeno do país;
6) uma nova geopolítica internacional, com um mundo pluripolar;
7) a Venezuela como potência energética mundial.

Não disponho de maiores elementos de informação sobre cada um desses elementos revolucionários, mas o ponto 4), por exemplo, me relembra imediatamente os princípios revolucionários termidorianos, com jacobinos e outros idealistas desejando criar um regime de felicidade sobre a terra, ou ao menos na França...

656) Instituto Millenium: enfim um foro inteligente para o debate de ideias

Os estudiosos, estudantes ou simples curiosos estão convidados a visitar o site do Instituto Millenium, uma entidade dedicada ao debate de idéias, o que é raro no Brasil.

Apresento abaixo, em ordem cronológica decrescente, uma lista de artigos que ofereci em colaboração ao Instituto Millenium.

18) O Bric é só um exercício intelectual, em 6 de dezembro de 2006.

17) Milton Friedman meets Bob Fields: O reencontro de dois grandes economistas, em 24 de novembro de 2006.

16) Sugestões para uma administração sintonizada com os novos tempos, em 08.11.2006.

15) Colapso!: a decadência econômica do Brasil, em 18.08.2006.

14) Fidel e o Brasil: uma reflexão pessoal, em 13 de agosto de 2006.

13) Teoria da jabuticaba, II: estudos de casos, em 5 de julho de 2006.

12) Idéias fora do lugar, 5, em 26 de junho de 2006.
Já que dispomos de baixo poder de barganha no plano mundial, a defesa mais consistente de nossas posições nos foros multilaterais tem necessariamente de passar por uma ação concertada, através de grupos como o G-77, o Mercosul e o G-20?

11) Idéias fora do lugar, 4, em 8 de junho de 2006
Se o Brasil não consegue exportar devido ao protecionismo dos países ricos, que protegem seus setores estratégicos ou sensíveis, deveríamos, em retaliação, fazer o mesmo?”, 1616.

10) Idéias fora do lugar, 3, em 1º de junho de 2006.
Você acha que a dominação econômica das empresas multinacionais atua como obstáculo para nossa independência tecnológica e se reflete em relações desiguais na balança tecnológica?

9) Idéias fora do lugar, 2, em 26 de maio de 2006
Você acha que o Brasil, por estar situado na periferia, só pode ser dependente de nações poderosas?

8) Os milionários do Rio de Janeiro e o ‘ótimo’ paretiano, em 16.05.2006.

7) Idéias fora do lugar, 1, 09.05.2006.
Você acha que o mundo é injusto, desigual, arbitrário e violento?

6) Uma proposta modesta: a reforma do Brasil”, em 26.04.2006.

5) Sorry, antiglobalizadores: a pobreza mundial tem declinado, ponto!, em 12.04.2006.

4) O Mercosul aos 15 anos, em 29 março 2006

3) A decadência econômica brasileira: uma inevitável tendência pelos próximos vinte anos?, em 08.03.06

2) A insustentável rigidez das sociedades islâmicas, em 2 de março de 2006.

1) América Latina: novo rumo na direção da esquerda?, em 22 fevereiro 2006

domingo, 10 de dezembro de 2006

655) Pequeno balanço das postagens: furtivas visitas

Em meados de junho de 2006, no dia 17, mais exatamente, dei partida a este novo blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/). Eu havia acumulado até então a marca de 9.133 hits no blog anterior, Diplomatizando.
Este blog alcança, no momento em que escrevo (14hs do dia 9/12/2006), a marca de 24.821 hits, o que dá a base de partida para os cálculos relativos às visitas recebidas (ou hits).
Obviamente, deve-se descontar meus próprios hits de verificação, que não sei se são computados ou não pelo sistema (preferia que não fossem, mas não sei dizer, e agradeceria se alguém mais versado do que eu nos blogs do Google pudesse me informar se as "visitas" do proprietário são computadas como quaisquer outras visitas externas, ou de terceiros).
De junho até aqui diminuiu muito meu ritmo de novas inserções, tanto por causa da preparação e lanamento de meu mais recente livro (O Estudo das Relações internacionais do Brasil), como em virtude do trabalho profissional e acadêmico.
Considerando-se a passagem de mais ou menos 143 dias desde sua inauguração, poder-se-ia afirmar que o Blog recebeu cerca de 110 visitas por dia (24.821 menos 9.133, igual a 15.688, dividido por 143).
Considerando-se que mesmo computados meus próprios hits, que raramente foram superiores a 3 ou 4 por semana, o volume total alcança tal cifra, pode-se dizer que mais de cem pessoas por dia acessaram o meu Blog.
Tenho notícias de poucos visitantes, e muito poucos comentários a respeito dos posts, o que enquadra a maior parte dos visitadores na categoria dos anônimos, dos desconhecidos, dos interessados furtivos.
Qualquer que seja a hipótese mais provável, trata-se de um público interessado, o que certamente aumenta minhas responsabilidades em termos de informação fiável, atualizada, interessante e diferente.
Boa sorte, a mim mesmo, no caminho ulterior...

654) Sobre colegas, livros e leituras...

(uma crônica dos costumes correntes)

Paulo Roberto de Almeida

Como sabem todos os que me conhecem pessoalmente, ou que pelo menos acompanham os meus escritos – e eles são muitos, exageradamente numerosos, confesso –, eu mantenho uma dupla atividade, duas carreiras, quase, que não necessariamente se confundem (mas que podem se completar ou, por vezes, se “atrapalhar” mutuamente): sou diplomata, no plano profissional, e, ao lado disso, exerço lides acadêmicas, em caráter complementar e acessório. Em ambas atividades, tenho por hábito sintetizar minhas leituras, fazer pesquisas, buscar informações, refletir sobre o que leio ou assisto em encontros e reuniões de que participo e, depois, na labuta solitária das noites de computador, tento colocar meus resumos, resenhas, notas e elaborações no papel (ou melhor, em arquivos eletrônicos, como costuma ser mais freqüente hoje em dia).
Dessa múltipla atividade de leitor, observador, sintetizador e escrevinhador resultam, como seria de se esperar, artigos, notas, resenhas de livros, ensaios mais ou menos alentados e, de vez em quando, algum livro destinado ao público universitário. Entendo que essa produção possa ser útil a todos aqueles que estudam ou trabalham os mesmos temas que eu, ainda que seja para que alguns possam oferecer contestação e interpretações divergentes sobre esses temas. Eles costumam ser os de economia internacional e brasileira, desenvolvimento econômico comparado, problemas de integração, relações internacionais, em especial na vertente econômica, história e atualidade diplomática, com maior ênfase na política externa brasileira, e outros campos afins.
Prezo muito o debate intelectual, o confronto de idéias, o exame sério e responsável de argumentos bem informados e embasados empiricamente em todos esses campos citados, com vistas ao enriquecimento de minhas próprias reflexões, ao esclarecimento daqueles mais jovens, à busca, enfim, das melhores soluções possíveis aos problemas de desenvolvimento do Brasil e de outros países em condições similares (que não são, obviamente, as do melhor desenvolvimento humano possível). Entendo que o debate de idéias contribui para a elevação dos argumentos e para a maior racionalidade dessas soluções, inclusive como forma de enfocar questões objetivas vinculadas às dificuldades de desenvolvimento da maior parte dos países de baixo IDH. Não é preciso dizer que lamento muito que no Brasil se pratique tão pouco, e por vezes de forma tão canhestra, o debate de idéias, se é que ele existe, de verdade.

Pois bem, a propósito do quê, exatamente, estou escrevendo estas notas, um pouco egocêntricas, é verdade, em torno dessas minhas características de leitor e de escrevinhador?
Confesso que me senti motivado a fazer estas novas reflexões em vista dos comentários indiretos de um colega – que não revelarei agora se ele, ou ela, é da carreira diplomática ou da academia – que pretendeu fazer troça comigo nesta semana que se passou (4 a 8 de dezembro de 2006). Sem se referir ao meu nome, mas deixando claro sobre quem falava de modo irônico, este distinto colega mencionou que havia “um colega que escreveu muitos livros, que eu não li nenhum”. Não estava presente à cena – e creio que ele não teria feito esse tipo de comentário desairoso em minha presença, mas é possível que sim – e não sei descrever o que se passou em seguida, mas imagino que todos riram, alguns zombeteiramente, outros com sorriso amarelo, para satisfação e deleite do autor da frase, que pretendia, obviamente, ser ferino.
O que poderia ser dito de tal comentário? Em primeiro lugar, que de modo algum ele me diminui. Creio mesmo que o mesmo tipo de sentimento deva ser partilhado por todos aqueles que o ouviram, pois eu não entenderia pessoas normais cultivando o dom da ignorância, ou do desconhecimento voluntário e deliberado. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma típica frase de um despeitado, dessas que pertencem à família do “não li e não gostei”. Ela tem a intenção de demonstrar que o seu autor não atribui nenhuma importância aos escritos de um colega, mas que ele não é néscio ao ponto de ignorar os seus, os meus, escritos (pois do contrário nem saberia que esse colega é autor de “muitos livros”).
Não sendo néscio, o autor da frase apenas quer declarar, de público, que é um oponente ideológico – no sentido de detentor de outras idéias – dos argumentos do autor desses “muitos livros”. Algo como: “não li nenhum porque não concordo com as idéias do autor”. É seu direito, claro, mas ele seria mais claro se dissesse em que, e por que, não concorda com essas idéias, sob risco de ficar realmente aparentado ao grupo daqueles que não lêem, mas que não gostam do que não leram. Contraditório, não é mesmo? Patético, aliás.
Em segundo lugar, pode-se dizer que o colega em questão pratica a singular e bizarra arte da ignorância, e não se peja de o declarar de maneira aberta e zombeteira. Surpreende-me, assim, que essa arte encontre adeptos entre membros desta nobre profissão, qualquer que seja ela. O que se deveria presumir é que pessoas engajadas nesse tipo de atividade – acadêmica ou diplomática, pouco importa – cultivem o hábito da leitura e da reflexão pausada, antes de emitir qualquer conceito que possa revelar, não conhecimento, mas de fato ignorância, e o que é pior, deliberada, declarada e voluntária. Patético, mais uma vez, não é mesmo?
Não creio que o colega em questão – da academia ou da diplomacia, não importa aqui – pratique normalmente esse culto à ignorância, tal como demonstrado de maneira pública. Ao contrário. Ele deve ser daqueles que lêem regularmente, jornais, revistas e até mesmo livros, mas que selecionam cuidadosamente aquilo que lêem. No seu rol de leituras só devem entrar aqueles materiais que presumivelmente estejam em pleno acordo com suas próprias idéias. Ou se não for assim, ele pode até, de forma condescendente, se dignar a ler os escritos de algum oponente ideólogico para depois castigá-lo de forma apropriada, através de escritos outros ou declarações públicas que tenham algum embasamento melhor do que o argumento do “não li e não gostei”.
Não me consta, porém, que o colega em questão seja um autor muito prolífico. Da sua produção própria descobri pouca coisa. Seu nome não figura no Google Scholar, que parece ser o padrão da produção acadêmica “citável” (apenas a título de comparação, sob o meu nome, por exemplo, existiam mais de uma centena de entradas em 9.12.2006, mas eu não pretendo humilhar esse meu colega com esse tipo de comparação descabida). No Google normal, aparecem muitas entradas sob o seu nome, mas elas se referem, no mais da vezes, a notícias de imprensa ou a citações indiretas, a propósito de atividades profissionais. Da sua bibliografia própria, conheço uma tese publicada e dois ou três artigos em revistas da área. Pas mal, diriam alguns. Mas, parece que alguns desses artigos foram feitos em colaboração com outros colegas, alguns subordinados, e fica difícil separar agora o que realmente é de Cesar. Mais passons.
Entendo que o colega em questão seja uma pessoa bastante ocupada e que ele certamente teria publicado mais, se suas muitas atividades de caráter profissional não o tivessem impedido. Isso não constitui motivo, porém, para fazer comentários que se pretendem jocosos em relação a um colega, eu, que de resto nunca o confrontou, direta ou indiretamente, por escritos ou palavras, e talvez nem tivesse por que fazê-lo, em vista da pouca visibilidade – com minhas desculpas sinceras – de seus próprios escritos. Na verdade, entendo que provavelmente ele leu, sim, alguns dos meus escritos, e não gostou do que leu. Se não leu algum livro meu – no que acredito que ele é absolutamente sincero –, ele deve, pelo menos, ter lido alguma entrevista minha, sobre algum problema qualquer de relações internacionais, e não deve ter gostado nada do que leu.
Concedo-lhe o direito de se considerar meu opositor ideológico e, se ele aceitasse, eu até o convidaria para um entrevero de plumas, uma espécie de combate de idéias, sobre os temas que ele julga estarem em contradição com o que ele mesmo pensa. Aliás, isso é tudo o que peço dos que não concordam com as minhas idéias: que eles exponham claramente os seus argumentos e que possamos, na saudável exposição e confrontação de idéias, conceitos, fatos e opiniões, chegar a alguma posição comum que possa contribuir para a solução dos muitos problemas que devem preocupar a ambos, como brasileiros que somos e engajados na melhoria intelectual e material de nosso país e dos seus cidadãos desfavorecidos.
Não creio, contudo, que ele venha a fazer isto. Uma pessoa com tal postura moral – isto é, que se permite fazer troça contra um suposto “inimigo intelectual”, ausente do local, aliás – não costuma normalmente se expor ao debate de idéias. Um colega de tal estatura moral costuma fazer isso mesmo que ele fez: fazer troça dos que lhe parecem arrogantes, vaidosos ou exagerados (sim, pois o fato de escrever “muitos livros” deve constituir algum defeito de caráter, que não consigo perceber exatamente qual seja). Ao ostentar essa opinião de maneira aberta, o colega em questão pretende, de fato, diminuir o colega que sou eu, que mesmo tendo escrito “muitos livros” não merece que eles sejam lidos, sobretudo por ele mesmo. É seu direito, certamente.
Lamento, não por mim, mas pelo mau exemplo dado aos colegas mais jovens, que espero não sintam obrigados a seguir esse meu colega em seu culto à ignorância.
Não sei por que, mas me veio agora à mente aquela famosa frase de um general fascista, franquista mais bem dito, Millan Astray, que respondeu assim a um famoso intelectual espanhol, Miguel de Unamuno, que tentava defender a Universidade de Salamanca das agruras da guerra civil: “Viva la muerte. Abajo la inteligencia.” Não quero exagerar, mas creio que a frase ferina do meu colega pertence a um ramo distante da mesma família. Esperemos que ela não se dissemine em seu meio.

PS.: Como estou colocando esta nota em um dos meus blogs, convido este meu colega, se ele desejar, é claro, a se pronunciar a respeito – em caráter anônimo, obviamente – na seção de comentários que está democraticamente à disposição de amigos e inimigos de minha produção intelectual. Não precisa sequer fazer comentários muito elaborados ou argumentos específicos. Pode xingar à vontade. Eu entenderei...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de dezembro de 2006
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
No blog Diplomatizzando, número 654

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