Os jornais, todos os jornais, estão abordando com abundância de comentários, mais do que análises isentas, a questão da
Escolha dos caças para a Aeronáutica: decisão política ou técnica?
Eu não sou um especialista em questões estratégicas ou militares, menos ainda em aviões de guerra: nunca vi um de perto, apenas em fotos e nesses filmes de Hollywood.
Mas acho que tenho bom senso o suficiente para dar o meu modesto 'pitaco' num 'debate' (aliás, não acredito que haja um, sequer travestido) que está resvalando para a esquizofrenia e a insanidade pura e simples.
Depois da revelação (certamente indevida, mas bem vinda de um ponto de vista cidadão) do relatório da FAB sobre a escolha do caça sueco como o melhor para a FAB e para a defesa do Brasil (e portanto para o Brasil, também), pressurosos sabujos do presidente, desconfiados que o grande chefe já tinha se decidido pelo caça francês, sairam pela imprensa para dizer que a escolha do Brasil (sic) não seria técnica, mas política, ou que o que estava envolvido na questão era algo muito maior do que a simples escolha do melhor caça, mas uma "relação estratégica" com a França (seja lá o que isso queira dizer...). Essas pessoas abusam da nossa inteligência e algumas pensam mesmo que somos todos idiotas.
Alguns jornalistas (que só podem ser idiotas) não cansam de repetir que a escolha da FAB foi pelos caças suecos, mas que a escolha é do presidente, deixando portanto subentendido que este pode tudo, como numa monarquia absoluta.
Bem, volto a dizer que não sou especialista em nada disso, mas não deixo de ter cá comigo minhas "impressões" de leigo e elas são as seguintes:
Suponhamos que eu queira fazer a reforma da minha casa, mexendo em móveis e assoalhos, janelas e cortinas. Eu posso tomar uma decisão política de contratar uma grande firma de arquitetos e de decoração que faça absolutamente tudo, pagando um pacote global (vai sair caro, mas não terei de me ocupar de nada), ou posso tomar a decisão política de contratar diversos trabalhadores especializados nos serviços previstos -- marceneiro, pintor, decorador, etc -- e discutir com eles o que desejo, exatamente que se faça.
Trata-se de uma decisão política, exclusivamente minha, pois afinal o dinheiro é meu: ou pago e esqueço, para não me chatear com obras, ou me envolvo em cada detalhe, pagando mas escolhendo exatamente o que quero (e aprendendo no caminho).
Ainda que eu escolha esse segundo caminho -- que é, figuradamente, o que a FAB acaba de fazer, em 30 mil páginas, diga-se de passagem -- eu NÃO TENHO O DIREITO de dizer ao marceneiro que tipo de ferramenta ele vai usar para reformar os meus móveis: formão, entalhadeira, broca de furar, serrote, pregos ou parafusos...
Simplesmente não tenho o direito pois que NÃO SOU COMPETENTE para fazê-lo, ou porque, simplesmente, isso cabe a ele, pois é ele quem vai manipular essas ferramentas; ele sabe, muito melhor do que eu, quais as ferramentas de que necessita para fazer o seu trabalho especializado.
Pois bem: os aviões são as ferramentas dos militares, dos aeronautas de guerra, mais precisamente.
Acredito que nem eu, nem qualquer jornalista idiota, nem o presidente da República tem o direito de dizer aos militares da Força Aérea qual a melhor ferramenta de que eles necessitam para cumprir seu mandato constitucional de defender o Brasil.
O dinheiro é do Tesouro, eu sei, e portanto de todos nós (e não do governo, como se diz por aí), mas não temos o direito de dizer aos militares que eles precisam usar esta ferramenta, e não aquela, para atender nosso pedido de defesa nacional.
Essa missão cabe a eles, exclusivamente a eles, e nenhum sabujo do poder poderá desmentir esta realidade.
Esta é apenas uma opinião pessoal.
Paulo Roberto de Almeida (7.01.2010)
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
1648) Juíza de Santa Rita (PB) diz que juiz é um ser superior
Bem, talvez até alguns sejam superiores a outros, em tamanho, em conhecimento, mas certamente não no sentido que lhe quis emprestar essa juiza, e certamente não ela...
Um retrato de como anda (ou não) a nossa magistratura.
Paulo Roberto de Almeida
Juíza de Santa Rita-PB diz que juiz é um ser superior
Repercute nacionalmente a declaração da Juíza do Trabalho Adriana Sette da Rocha Raposo, para quem o juiz "é um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material".
Leia na íntegra:
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 13° REGIÃO
Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB
ATA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO
PROCESSO Nº 01718. 2007.027.13.00-6
Aos 21 dias do mês de SETEMBRO do ano dois mil e sete, às 09:39 horas, estando aberta a sessão da Única Vara do Trabalho de Santa Rita, na sua respectiva sede, na Rua Vírginio Veloso Borges, S/N, Alto da Cosibra, Santa Rita/PB, com a presença da Sra. Juíza do Trabalho Titular, ADRIANA SETTE DA ROCHA RAPOSO, foram apregoados os litigantes:
Reclamante: LUIZ FRANCISCO DA SILVA
Reclamado: USINA SÃO JOÃO
Instalada a audiência e relatado o processo, a Juíza Titular proferiu a seguinte sentença:
LUIZ FRANCISCO DA SILVA, qualificado nos autos, propõe ação trabalhista em face de USINA SÃO JOÃO, igualmente qualificado nos autos, afirmando ter trabalhado para o reclamado, postulando os títulos elencados às fls. 04/12.
Junta procuração e documentos. Notificado o reclamado, veio a juízo e não conciliou. Fixado valor ao feito. Defesa às fls. 23/27 contestando o postulado. Junta documentos. Houve os depoimentos do reclamante e da reclamada. Dispensada a produção de provas pelo Juiz. Encerrada a instrução. Os litigantes aduziram razões finais remissivas e não conciliaram. Eis o relato.
DECIDE-SE:
FUNDAMENTAÇÃO
1. DA LIBERDADE DE ENTENDIMENTO DO JUIZ
No vigente diploma processual civil, temos normas que atribui ao juiz amplo papel na condução e decisão, dispondo poder o julgador dirigir "o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas", "dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica" (art. 852-D) e adotar "em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum" (art. 852-I, §1º). Talvez o ponto mais delicado do tema esteja na avaliação da prova, o que envolve os princípios da unidade e persuasão racional e sua relação com o princípio protetivo. O princípio da unidade diz que, embora produzida através de diversos meios, a prova deve ser analisada como um todo e o princípio da persuasão racional relaciona se com a liberdade de convicção do Juiz, mas obriga-o a fundamentar a sua decisão.
A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material.
A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia.
Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores. Nenhuma coerção de fora pode alcançar sua interioridade com bastante força para violar esse reduto íntimo e inviolável que reside dentro dele. Destarte, com a liberdade e a proporcional responsabilidade que é conferida ao Magistrado pelo Direito posto, passa esse Juízo a fundamentar o seu julgado.
2. DA PRESCRIÇÃO
Em seu depoimento pessoal confessou o suplicante que pediu para sair do reclamado em 1982 e que depois não mais trabalhou porque ficou sem condições de labutar. A presente ação foi proposta em 22/08/2007. O art. 7o, inciso XXIX da nossa Carta Política prescreve:
Art. 7º - XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 28, de 25/05/2000) Por conseguinte, face à confissão do suplicante, depoimento pessoal, temos como verdade que a relação entre os litigantes foi rompida em 1982. Em conseqüência, considerando o lapso temporal superior a dois anos, entre o dito rompimento do contrato entre os litigantes e a propositura da presente ação, acolhemos a prescrição bienal aduzida pela defesa, para julgar improcedentes os pleitos de salário mensal, repouso semanal remunerado, domingos e feriados, registro/baixa da CTPS, aviso prévio, horas extras, diferenças salariais, salário família, salário in natura, saldo de salários, 13º salário, indenização acidentária, FGTS + 40%, FGTS e art 10, penalidades, descanso semanal remunerado sobre horas extras, PIS, INSS, imposto de renda, indenizações referidas às fls. 10 e multa do Art. 467 da CLT.
3. DA JUSTIÇA GRATUITA
No que pese o entendimento deste Juízo no tocante à Justiça Gratuita, publicado na Revista do Tribunal - Ano I, no. 03 - Biênio 94/95 - TRT - 13a. Região, fls. 43/45, face ao pronunciamento unânime do Egrégio Tribunal deste Regional, referente à matéria idêntica nos autos do Processo Nº AI-107/97, publicado no Diário da Justiça deste Estado em 27/11/97, adota-se o princípio da celeridade processual, para deferir a Justiça Gratuita postulada e consequentemente dispensar o demandante das custas processuais.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, resolve a Juíza Titular da Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB julgar IMPROCEDENTES os termos dos pedidos formulados por LUIZ FRANCISCO DA SILVA em face de USINA SÃO JOÃO Se a tabela acima não for publicada na internet, encontra-se disponível nos autos do respectivo processo.
Ciente os litigantes. Súmula 197 do TST. Encerrou-se a audiência. E, para constar, foi lavrada a presente ata que, na forma da lei, vai devidamente assinada:
Adriana Sette da Rocha Raposo
Juíza Titular
Um retrato de como anda (ou não) a nossa magistratura.
Paulo Roberto de Almeida
Juíza de Santa Rita-PB diz que juiz é um ser superior
Repercute nacionalmente a declaração da Juíza do Trabalho Adriana Sette da Rocha Raposo, para quem o juiz "é um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material".
Leia na íntegra:
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA DO TRABALHO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO - 13° REGIÃO
Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB
ATA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO
PROCESSO Nº 01718. 2007.027.13.00-6
Aos 21 dias do mês de SETEMBRO do ano dois mil e sete, às 09:39 horas, estando aberta a sessão da Única Vara do Trabalho de Santa Rita, na sua respectiva sede, na Rua Vírginio Veloso Borges, S/N, Alto da Cosibra, Santa Rita/PB, com a presença da Sra. Juíza do Trabalho Titular, ADRIANA SETTE DA ROCHA RAPOSO, foram apregoados os litigantes:
Reclamante: LUIZ FRANCISCO DA SILVA
Reclamado: USINA SÃO JOÃO
Instalada a audiência e relatado o processo, a Juíza Titular proferiu a seguinte sentença:
LUIZ FRANCISCO DA SILVA, qualificado nos autos, propõe ação trabalhista em face de USINA SÃO JOÃO, igualmente qualificado nos autos, afirmando ter trabalhado para o reclamado, postulando os títulos elencados às fls. 04/12.
Junta procuração e documentos. Notificado o reclamado, veio a juízo e não conciliou. Fixado valor ao feito. Defesa às fls. 23/27 contestando o postulado. Junta documentos. Houve os depoimentos do reclamante e da reclamada. Dispensada a produção de provas pelo Juiz. Encerrada a instrução. Os litigantes aduziram razões finais remissivas e não conciliaram. Eis o relato.
DECIDE-SE:
FUNDAMENTAÇÃO
1. DA LIBERDADE DE ENTENDIMENTO DO JUIZ
No vigente diploma processual civil, temos normas que atribui ao juiz amplo papel na condução e decisão, dispondo poder o julgador dirigir "o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas", "dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica" (art. 852-D) e adotar "em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e as exigências do bem comum" (art. 852-I, §1º). Talvez o ponto mais delicado do tema esteja na avaliação da prova, o que envolve os princípios da unidade e persuasão racional e sua relação com o princípio protetivo. O princípio da unidade diz que, embora produzida através de diversos meios, a prova deve ser analisada como um todo e o princípio da persuasão racional relaciona se com a liberdade de convicção do Juiz, mas obriga-o a fundamentar a sua decisão.
A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material.
A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia.
Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores. Nenhuma coerção de fora pode alcançar sua interioridade com bastante força para violar esse reduto íntimo e inviolável que reside dentro dele. Destarte, com a liberdade e a proporcional responsabilidade que é conferida ao Magistrado pelo Direito posto, passa esse Juízo a fundamentar o seu julgado.
2. DA PRESCRIÇÃO
Em seu depoimento pessoal confessou o suplicante que pediu para sair do reclamado em 1982 e que depois não mais trabalhou porque ficou sem condições de labutar. A presente ação foi proposta em 22/08/2007. O art. 7o, inciso XXIX da nossa Carta Política prescreve:
Art. 7º - XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 28, de 25/05/2000) Por conseguinte, face à confissão do suplicante, depoimento pessoal, temos como verdade que a relação entre os litigantes foi rompida em 1982. Em conseqüência, considerando o lapso temporal superior a dois anos, entre o dito rompimento do contrato entre os litigantes e a propositura da presente ação, acolhemos a prescrição bienal aduzida pela defesa, para julgar improcedentes os pleitos de salário mensal, repouso semanal remunerado, domingos e feriados, registro/baixa da CTPS, aviso prévio, horas extras, diferenças salariais, salário família, salário in natura, saldo de salários, 13º salário, indenização acidentária, FGTS + 40%, FGTS e art 10, penalidades, descanso semanal remunerado sobre horas extras, PIS, INSS, imposto de renda, indenizações referidas às fls. 10 e multa do Art. 467 da CLT.
3. DA JUSTIÇA GRATUITA
No que pese o entendimento deste Juízo no tocante à Justiça Gratuita, publicado na Revista do Tribunal - Ano I, no. 03 - Biênio 94/95 - TRT - 13a. Região, fls. 43/45, face ao pronunciamento unânime do Egrégio Tribunal deste Regional, referente à matéria idêntica nos autos do Processo Nº AI-107/97, publicado no Diário da Justiça deste Estado em 27/11/97, adota-se o princípio da celeridade processual, para deferir a Justiça Gratuita postulada e consequentemente dispensar o demandante das custas processuais.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, resolve a Juíza Titular da Única Vara do Trabalho de Santa Rita-PB julgar IMPROCEDENTES os termos dos pedidos formulados por LUIZ FRANCISCO DA SILVA em face de USINA SÃO JOÃO Se a tabela acima não for publicada na internet, encontra-se disponível nos autos do respectivo processo.
Ciente os litigantes. Súmula 197 do TST. Encerrou-se a audiência. E, para constar, foi lavrada a presente ata que, na forma da lei, vai devidamente assinada:
Adriana Sette da Rocha Raposo
Juíza Titular
1647) Balanco da decada e previsoes imprevidentes
Agora o texto completo, publicado:
“A Primeira Década do Século 21: um retrospecto e algumas previsões imprevisíveis”
Revisão dos dez anos transcorridos desde 2000 e algumas questões pendentes para a próxima década.
Publicado Espaço Acadêmico (ano 9, n. 104, janeiro 2010, p. 27-37;
link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9117/5140).
“A Primeira Década do Século 21: um retrospecto e algumas previsões imprevisíveis”
Revisão dos dez anos transcorridos desde 2000 e algumas questões pendentes para a próxima década.
Publicado Espaço Acadêmico (ano 9, n. 104, janeiro 2010, p. 27-37;
link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9117/5140).
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
1646) Fórum Social Mundial: antecipando as conclusões
Fórum Social Mundial: antecipando as conclusões
Paulo Roberto de Almeida
Como acontece todo ano, os alternativos da antiglobalização estarão reunidos neste final do mês de janeiro para protestar contra a globalização assimétrica e proclamar que um “outro mundo é possível”. Eu também acho, mas a verdade é que eles nunca apresentam o roteiro detalhado desse outro mundo esperado, se contentando com slogans redutores – geralmente equivocados – contra a globalização, essa mesma força indomável que torna mais eficiente a interação entre essas tribos e permite que suas mensagens – equivocadas, como sempre – alcancem, em questão de minutos, todos os cantos do planeta. Em todo caso, eles já se consideram tão importantes que já nem mais se dão ao trabalho de protestar contra o outro Fórum Mundial, o capitalista de Davos, como ocorria todo ano naquela estação suíça de esqui: os capitalistas agradecem serem deixados em paz e prometem refletir sobre as propostas do fórum alternativo, se é que alguma será feita.
Como também acontece todo ano, eu fico esperando para ver se alguma ideia nova e interessante – Ok, ok, também podem ser ideias velhas e desinteressantes, mas que sejam pelo menos racionais e exequíveis – vai emergir desse jamboree anual de antiglobalizadores e iluminar as nossas políticas públicas tão carentes de racionalidade e sentido de justiça. Como não confio, porém, que algo de novo vá surgir de onde nunca veio nada de inteligente, resolvi não esperar pela conclusão do encontro de 2010, e me proponho, sem cobrar copyright dos antiglobalizadores, antecipar suas conclusões conclusivas (se é verdade que algo do gênero corre o risco de nos surpreender).
Pois, vejamos o que vai resultar de mais um animado encontro dos alternativos:
1) A globalização capitalista produz miséria, desemprego, desigualdade e retrocessos sociais no mundo, devendo ser substituída por globalização solidária, na qual a economia não vise unicamente o lucro dos grandes monopólios multinacionais, mas promova o bem-estar de todos os cidadãos;
2) A crise financeira é uma prova de que a economia capitalista só produz desastres, servindo para beneficiar um punhado de banqueiros gananciosos, que além de tudo se apropriam do dinheiro público para distribuir gordos bônus entre esses privilegiados;
3) As políticas econômicas promovidas pelo G7 – e agora pelo G20 também – não tem servido para recolocar a economia mundial no caminho do crescimento e da distribuição de riqueza, posto que elas se caracterizam por uma adesão acrítica e incondicional às políticas neoliberais e às famosas regras do “consenso de Washington”, que só aprofundam a crise e a miséria das massas trabalhadoras;
4) A despeito das promessas de mudança no país mais poderoso do planeta, as mesmas políticas imperialistas continuam a ser praticadas, e governos que tentam escapar do jugo do capitalismo monopolista vêm sendo sabotados em seus intuitos de mudar a orientação das políticas econômicas no sentido da distribuição e da igualdade;
5) As políticas liberais de livre comércio e de liberalização dos mercados de capitais, promovidas pela OMC, pelo FMI e pelo Banco Mundial, só beneficiam os mais ricos, ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades no planeta; os povos têm direito de lutar por uma agricultura sustentável, socialmente justa, que contemple os objetivos da segurança alimentar, contra as ameaças dos transgênicos e da agricultura capitalista;
6) Os grandes monopólios multinacionais se opõem à justiça ecológica, e pretendem continuar com plena liberdade para poluir a Terra e esgotar seus recursos naturais;
7) O racismo, a discriminação contra a mulher, a opressão dos povos periféricos, as violações dos direitos humanos e o próprio terrorismo fundamentalista são o resultado da globalização assimétrica e de um processo histórico marcado pela ocupação imperialista, que insiste em preservar a sua dominação, inclusive mediante o terrorismo de Estado;
8) Devemos lutar por um “outro mundo possível” e pela imposição de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais para apoiar projetos de desenvolvimento nos países mais pobres, em especial os da África.
Com algumas variantes, estas são as minhas apostas para as “conclusões” mais prováveis do próximo encontro do Fórum Social Mundial.
Alguém quer apostar comigo?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5.01.2010.
Paulo Roberto de Almeida
Como acontece todo ano, os alternativos da antiglobalização estarão reunidos neste final do mês de janeiro para protestar contra a globalização assimétrica e proclamar que um “outro mundo é possível”. Eu também acho, mas a verdade é que eles nunca apresentam o roteiro detalhado desse outro mundo esperado, se contentando com slogans redutores – geralmente equivocados – contra a globalização, essa mesma força indomável que torna mais eficiente a interação entre essas tribos e permite que suas mensagens – equivocadas, como sempre – alcancem, em questão de minutos, todos os cantos do planeta. Em todo caso, eles já se consideram tão importantes que já nem mais se dão ao trabalho de protestar contra o outro Fórum Mundial, o capitalista de Davos, como ocorria todo ano naquela estação suíça de esqui: os capitalistas agradecem serem deixados em paz e prometem refletir sobre as propostas do fórum alternativo, se é que alguma será feita.
Como também acontece todo ano, eu fico esperando para ver se alguma ideia nova e interessante – Ok, ok, também podem ser ideias velhas e desinteressantes, mas que sejam pelo menos racionais e exequíveis – vai emergir desse jamboree anual de antiglobalizadores e iluminar as nossas políticas públicas tão carentes de racionalidade e sentido de justiça. Como não confio, porém, que algo de novo vá surgir de onde nunca veio nada de inteligente, resolvi não esperar pela conclusão do encontro de 2010, e me proponho, sem cobrar copyright dos antiglobalizadores, antecipar suas conclusões conclusivas (se é verdade que algo do gênero corre o risco de nos surpreender).
Pois, vejamos o que vai resultar de mais um animado encontro dos alternativos:
1) A globalização capitalista produz miséria, desemprego, desigualdade e retrocessos sociais no mundo, devendo ser substituída por globalização solidária, na qual a economia não vise unicamente o lucro dos grandes monopólios multinacionais, mas promova o bem-estar de todos os cidadãos;
2) A crise financeira é uma prova de que a economia capitalista só produz desastres, servindo para beneficiar um punhado de banqueiros gananciosos, que além de tudo se apropriam do dinheiro público para distribuir gordos bônus entre esses privilegiados;
3) As políticas econômicas promovidas pelo G7 – e agora pelo G20 também – não tem servido para recolocar a economia mundial no caminho do crescimento e da distribuição de riqueza, posto que elas se caracterizam por uma adesão acrítica e incondicional às políticas neoliberais e às famosas regras do “consenso de Washington”, que só aprofundam a crise e a miséria das massas trabalhadoras;
4) A despeito das promessas de mudança no país mais poderoso do planeta, as mesmas políticas imperialistas continuam a ser praticadas, e governos que tentam escapar do jugo do capitalismo monopolista vêm sendo sabotados em seus intuitos de mudar a orientação das políticas econômicas no sentido da distribuição e da igualdade;
5) As políticas liberais de livre comércio e de liberalização dos mercados de capitais, promovidas pela OMC, pelo FMI e pelo Banco Mundial, só beneficiam os mais ricos, ao mesmo tempo em que aprofunda as desigualdades no planeta; os povos têm direito de lutar por uma agricultura sustentável, socialmente justa, que contemple os objetivos da segurança alimentar, contra as ameaças dos transgênicos e da agricultura capitalista;
6) Os grandes monopólios multinacionais se opõem à justiça ecológica, e pretendem continuar com plena liberdade para poluir a Terra e esgotar seus recursos naturais;
7) O racismo, a discriminação contra a mulher, a opressão dos povos periféricos, as violações dos direitos humanos e o próprio terrorismo fundamentalista são o resultado da globalização assimétrica e de um processo histórico marcado pela ocupação imperialista, que insiste em preservar a sua dominação, inclusive mediante o terrorismo de Estado;
8) Devemos lutar por um “outro mundo possível” e pela imposição de uma taxa sobre as transações financeiras internacionais para apoiar projetos de desenvolvimento nos países mais pobres, em especial os da África.
Com algumas variantes, estas são as minhas apostas para as “conclusões” mais prováveis do próximo encontro do Fórum Social Mundial.
Alguém quer apostar comigo?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5.01.2010.
1645) Meu balanço da década que passou...
Balanço da primeira década do século 21: um retrospecto pessoal
Por Paulo Roberto de Almeida
Via Política, 2.01.2010
Uma avaliação livre e confessional do que foi mais importante nos últimos dez anos.
Introdução (que deveria ser breve) sobre métodos e intenções
Vamos aproveitar esta oportunidade da passagem de uma década completa para elaborar uma avaliação em torno do que de mais importante se passou nos primeiros dez anos do século 21, que também são os primeiros do novo milênio. Com efeito, períodos ‘redondos’ – e uma década tem essa característica – se prestam bastante bem a esse tipo de balanço retrospectivo, ou seja, uma avaliação do que ocorreu – ou do que fizemos no período transcorrido.
Dez anos permitem ultrapassar a brevidade relativa do calendário anual e são mais ‘administráveis’, na nossa perspectiva de vida, do que uma geração ou duas (25 ou 50 anos). Estes últimos dez anos oferecem inclusive a vantagem de serem os primeiros de um novo século, e este foi, justamente, o título de um dos meus livros: Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo Paz e Terra, 2002), uma releitura aroniana do cenário mundial no contexto da globalização. Eles constituem, assim, uma referência cronológica simbólica para avaliar (e especular sobre) a próxima centúria, com essa vantagem adicional, justamente, de terem iniciado um novo milênio.
Eis o que me proponho oferecer neste pequeno texto recapitulativo: um breve retrospecto do quê representaram os últimos dez anos para o Brasil e para o mundo. A seleção de fatos políticos, de eventos econômicos e de processos sociais aqui efetuada é puramente subjetiva, refletindo minhas escolhas pessoais quanto às situações de fato e aos cenários estratégicos já ocorridos nos últimos dez anos. No plano ‘confessional’ faço questão de registrar minha posição de cidadão livre de toda e qualquer afiliação política ou partidária (a distinção pode ser importante), de qualquer vinculação religiosa (aliás, sou completamente ‘irreligioso’) e, sobretudo, minha total independência em relação ao Estado, a despeito mesmo de minha condição de servidor federal de uma das carreiras supostamente mais reputadas por sua ‘servidão’ aos interesses do Estado: a diplomacia.
Na verdade, considero-me livre de qualquer tipo de obrigação adesista a qualquer governo que seja, sendo perfeitamente ‘anarquista’ no plano político-profissional e um promotor consciente dos direitos dos cidadãos contra os interesses do Estado, tanto no plano nacional (não sou, como se pode deduzir, um exemplo de ‘patriota’) como no internacional (gostaria de ser um cidadão do mundo, o que, helàs, ainda não é possível).
O bug que deveria ser um bang e um mini-crash financeiro
Começamos a década por um blefe, ou talvez uma paranóia, tão irracional quanto ridícula: a ameaça de colapso informático – e, por extensão, de diversos serviços públicos – por causa de um suposto “bug do milênio”, que teria a propriedade (segundo os catastrofistas de ocasião) de paralisar todos os sistemas eletrônicos a partir da incapacidade dos antigos programas operacionais de acomodar a passagem do calendário. Eu estava nos EUA quando o velho milênio chegava ao seu final e posso testemunhar como nunca antes naquele país – talvez desde as centúrias de Nostradamus – se assistiu a tamanha paranóia coletiva com relação ao colapso de about almost everything: colocados em dúvida pelos próprios meios de comunicação, os americanos começaram a estocar montanhas de alimentos, garrafões de água, lanternas e baterias, num ritmo jamais igualado desde a passagem do ano 1000 (quando provavelmente a maioria da população sequer tinha consciência de que o fim do mundo se aproximava).
Claro, os americanos foram poupados da catástrofe anunciada do bug do milênio – por lá chamado de Y2K – mas eles não conseguiram escapar da primeira crise econômica do século, a das empresas ‘ponto.com’, por incidir sobre as ações das novas companhias da sociedade da informação. Com efeito, os índices Dow (a 11.723 pontos) e Nasdaq (a 5.049, este medindo o desempenho de empresas de comunicação) tinham chegado a níveis inéditos de valorização: era a ‘exuberância irracional’ do guru do Federal Reserve, o inescrutável Alan Greenspan. Daí eles só poderiam cair, a despeito de que alguns economistas reputados afirmassem que a economia capitalista poderia ter chegado num estágio em que ela, finalmente, teria se tornado imune a ciclos e, portanto, às suas crises regulares.
Bastou a hipótese da estabilidade do capitalismo ser aventada para que a realidade de suas flutuações crônicas caísse na cabeça de seus promotores, com toda a sua carga de irracionalidade periódica: no espaço de uma semana, no final do ano, as ações das “.com” despencaram de alturas olímpicas para patamares mais terrestres (algumas foram direto para o primeiro círculo do inferno). Bilionários como Warren Buffet e Bill Gates ficaram, repentinamente, alguns bilhões de dólares mais pobres –nada de muito dramático para eles – mas, antes da queda fatal, especuladores sortudos e jovens investidores que tinha sido remunerados com stock options na constituição dessas ‘inexpressivas’ companhias (no começo dos anos 1990) já tinham encaixado suas fortunas a partir da venda de ações no auge da bolha acionária. Sempre é assim: os inexperientes e ambiciosos acabam fazendo a felicidade de alguns poucos espertos, em todo caso pessoas dotadas de faro apurado para saber sair da ciranda no timing exato da maior valorização, posto que bolhas são tão regulares quanto implacáveis.
No Brasil, nesse mesmo momento, o PSDB começou a perder a possibilidade de um terceiro mandato, a partir de crises especificamente brasileiras. Entre a desvalorização e a flutuação do real, em 1999, e o apagão elétrico de 2001, com racionamento, o ano 2000 foi relativamente ‘feliz’ do ponto de vista econômico: crescimento do PIB e pagamento antecipado do dinheiro colocado à disposição pelo FMI depois da crise de confiança de 1998. Mas logo em seguida começou a degringolada argentina: o regime de conversibilidade (de fato rigidez) cambial começou a fazer água no inicio de 2001, sem que se pudesse antecipar a derrocada espetacular no final desse ano, o que levou o Brasil a fazer o seu segundo pacote preventivo com o FMI, por um valor ‘modesto’ de US$ 15 bilhões (comparativamente aos US$ 41,5 bi de 1998 e aos US$ 30 bi de 2002).
O cowboy religioso e o sindicalista de esquerda
No final de 2000, um ‘perfeito idiota americano’ ganhava na Corte Suprema o direito de não serem recontados os votos das eleições fraudadas da Flórida e, com isso, acedia ao comando da mais poderosa nação do planeta (o que certamente não prenunciava nada de bom para a década que começava). Seu desempenho inicialmente medíocre e potencialmente controverso na liderança do Império foi, paradoxalmente, ‘salvo’ de um registro histórico inexpressivo pelos ataques terroristas a New York e a Washington, em setembro de 2001, o que lhe deu um realce nas relações internacionais que ele jamais teria por mérito próprio ou capacidade de liderança. De certa forma, ao atacar o coração do Império, Osama Bin Laden deu algum sentido ao governo de Bush, que de outra forma seria medíocre.
O ataque – devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU – ao quartel general da Al Qaeda, abrigado pelo governo talibã do Afeganistão – recebeu a aprovação quase unânime da comunidade internacional, da mesma ONU que não tinha conseguido impedir a destruição assassina das estátuas gigantes dos Budas de Bamian, um ano antes. Mas George W. conseguiu converter todo esse apoio em rejeição também quase unânime ao prolongar sua ofensiva contra o terrorismo internacional num ataque desautorizado pelo CSNU contra o regime – certamente celerado e criminoso – de Saddam Hussein, no Iraque, já no início de 2003, numa das iniciativas mais mal calculadas pelos ‘falcões’ do Pentágono.
Nessa altura, o Brasil já tinha passado pela mais importante mudança política desde o início da República, ao eleger um líder supostamente de esquerda e teoricamente representante da classe trabalhadora como seu presidente (na quarta tentativa). Não foi sem custos para o país, pelo menos durante o processo eleitoral: o risco Brasil subiu às alturas, junto com o dólar, ao mesmo tempo em que despencavam nos mercados financeiros globais os valores negociados dos títulos da dívida externa brasileira. Nem tudo foi apenas especulação dos garotos de Wall Street, embora algo possa ser creditado à ‘ação maldosa’ dos mercados financeiros, et pour cause: o PT – um típico partido esquerdista latino-americano – prometia em seu programa de ação calote nas dívidas externa e interna, rejeição dos acordos com o FMI e mudança completa nas regras do jogo, segundo uma política econômica claramente esquizofrênica.
Obviamente, as lideranças mais esclarecidas – ou mais oportunistas – do partido já tinham prometido, na ‘Carta ao Povo Brasileiro’ (junho de 2002), respeitar todos os contratos internacionais e as obrigações externas do Brasil, mudança bem recebida pelos banqueiros e burgueses em geral (que apoiaram entusiasticamente o novo aliado do capital). Eu já tinha incorporado essa vitória em vários capítulos pré-eleitorais de meu livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Codex, 2003), no qual eu anunciava a conversão não reconhecida, de fato clandestina, do nouveau régime ao neoliberalismo.
“Nunca antes neste país”: refazendo a história com a herança alheia...
O resto, pode-se dizer que é História: o presidente eleito e empossado teve o bom senso de preservar em sua integridade todos os elementos da política econômica anterior – metas de inflação, flutuação cambial, superávits primários – e de acolher nos gabinetes ministeriais vários quadros técnicos comprometidos com o que os petistas chamavam desdenhosamente de “neoliberalismo”, rejeitando, em conseqüência, a esquizofrenia econômica contida nas recomendações dos seus próprios ‘economistas’. Foi a coisa mais sensata que poderia ter acontecido ao Brasil: mesmo sem acreditar muito na política econômica ‘neoliberal’, o presidente garantiu as bases de seu sucesso político ulterior, junto com a preservação da estabilidade econômica. Bem, isso se chama, simplesmente, instinto de sobrevivência, ou seja, sensibilidade política e bom senso econômico. Ele deve ter desconfiado que a aplicação das receitas econômicas surrealistas dos seus conselheiros petistas ameaçaria diretamente suas chances eleitorais ou simplesmente não seria economicamente sustentável, e agiu em conseqüência.
Claro, houve tropeços políticos e muitos, alguns deles desastrosos, que quase precipitaram um final precoce do nouveau régime: alguns deles começaram ainda cedo, com as patifarias e negociatas promovidas por lugares tenentes dos novos chefes do poder, o que foi desastroso para a imagem pública do partido que estava comemorando 25 aninhos de vida. Um erro de cálculo quanto à extensão da base de apoio do governo no Congresso conduziu ao uso mal administrado do recurso mais habitual dos responsáveis do Executivo que se julgam onipotentes: a compra, no varejo e no atacado, de parlamentares, e até de bancadas inteiras, negociados como se fossem escravos em hasta pública (mas num leilão a portas fechadas). Deu no que deu: o Richelieu todo poderoso que se julgava ao abrigo de retaliações comezinhas, arrogante como um candidato a Stalin tropical (ainda bem que sem Gulag), foi posto a nu por um desses trânsfugas de negociatas mal conduzidas, decerto descontente com o preço pago ou contrariado em seu amor próprio de chefe de bancada). Não só caiu toda a cúpula bichada do partido hegemônico, mas também houve ameaças ao próprio chefe da tribo, que salvou-se por incompetência da oposição ou por ter alegado uma inocência tão canhestra que nem seus mais próximos acreditavam.
Mas, o chamado ‘escândalo do mensalão petista’ foi apenas o primeiro de uma sucessão de episódios lamentáveis envolvendo a reputação de um Congresso cada vez mais emporcalhado pelo desfilar contínuo de comportamentos escabrosos no plano da moralidade pública, e totalmente irresponsável quanto ao bom uso dos recursos públicos, estes, aliás, devidamente saqueados pela sanha arrivista de legiões de militantes do partido no poder. No início ainda existia alguma tentativa de justificar as patifarias cometidas, a pretexto da inacreditável alegação de que “sempre se fez assim” ou, então, na base do “sou, mas quem não é?”. No acumular de episódios cada vez mais constrangedores para a reputação do partido outrora ‘ético’ – apenas para fins de imagem externa, obviamente – foram se esvaindo as justificativas mais esfarrapadas, ao ponto de sequer haver a tentativa ulterior de aparentar inocência, impondo-se apenas a atitude generalizada de obstruir no plano executivo e bloquear no âmbito congressual qualquer investigação mais séria. Como já se tinha disseminado o habito de comprar a preço de ouro bancadas inteiras, nunca faltou maioria para votar o que fosse conveniente, mesmo com o apoio incômodo de antigos representantes reacionários e corruptos.
A situação do Congresso brasileiro, e das instituições públicas em geral, se deteriorou tanto que não cabe aqui fazer qualquer balanço valorativo, valendo apenas aplicar-se a frase conhecida: “não há qualquer risco de melhorar” (pelo menos nos próximos dez anos, inclusive com base numa justiça leniente ou talvez até corrupta). Em outros países, a representação parlamentar não é certamente isenta de sua cota de medíocres, aventureiros e corruptos, mas é certo que, em países mais sérios, os maiores desviantes acabam sendo levados às barras dos tribunais e às grades das cadeias por um tempo razoável, o que parece jamais ter ocorrido no Brasil.
O Brasil surfando na onda do crescimento mundial
Qualquer que tenha sido o grau de moralidade dos sistemas políticos around the world, o fato é que o mundo embarcou, desde 2002, numa das fases de mais intenso crescimento econômico já registradas na história contemporânea, com valorização inédita de todas as matérias primas, forte expansão do comércio internacional e intensa especulação com todos os tipos de instrumentos financeiros, processo que cobraria o seu preço no final da década. O Brasil surfou alegremente nessa onda de crescimento econômico global, com expansão das exportações (mais pelo lado dos preços do que dos volumes), estímulo à demanda interna (com crescimento da oferta de crédito) e aumento da massa salarial e das rendas de transferência (pensões e assistência social).
O governo não contrariou em demasia as regras dos mercados – tampouco as do setor financeiro ou o regime cambial – o que deve ter descontentado sobremaneira seus velhos aliados e apoiadores, promotores da antiga política econômica esquizofrênica. Esta, que tinha (ainda tem) muitos defensores no governo pretendia controlar os fluxos de capitais, efetuar manipulações cambiais, reduzir substancialmente o superávit primário e lograr mais flexibilidade creditícia (mesmo sob risco de atiçar a inflação). Nem tudo foi perfeito, porém: a irresponsabilidade econômica do governo – alinhando-se com isso aos que propugnavam a expansão supostamente keynesiana dos gastos públicos – consistiu essencialmente em permitir, e promover ativamente, o crescimento desmesurado da carga fiscal, da qual apenas uma pequena parte foi dedicada a gastos sociais, a maior parte indo para banqueiros amigos do poder e para industriais amigos dos subsídios públicos dispensados pelos bancos do poder. Antecipando sobre minhas previsões, pode-se dizer que esta será a herança maldita a ser deixada pelo atual governo a seu sucessor, qualquer que seja ele: uma bomba-relógio fiscal a ser penosamente desativada, sob risco de explodir.
Os grandes temas dos anos 2000, no plano mundial, foram essencialmente estes: o recrudescimento e ampliação dos ataques terroristas – em países tão diferentes quanto EUA, Inglaterra, Espanha, Paquistão, Indonésia, Rússia, Jordânia, Filipinas, Turquia, Índia e, obviamente, Israel – fenômeno equiparado por alguns analistas a uma “quarta guerra mundial” (sendo que a terceira teria sido a Guerra Fria, vencida pelo capitalismo de mercado); a ascensão irresistível da China enquanto grande economia manufatureira e, potencialmente, grande potência mundial; a proliferação nuclear, com alguns casos intratáveis como os da Coréia do Norte e do Irã; a disseminação extraordinária da internet e dos meios de comunicação de massa, com fenômenos comerciais de sucesso como o iPod e o iPhone e alguns exemplos de “almoços grátis” no capitalismo, como os blogs e outros canais instantâneos de comunicação; o aquecimento global, que pode ser considerado uma nova modalidade de “malthusianismo” da nossa era, substituindo-se a antiga preocupação com o crescimento geométrico da população – processo ainda em curso em certas regiões e países – pela ameaça da destruição irremediável do nosso estilo de vida em função da alegada ação humana deletéria sobre o meio ambiente.
A década termina por onde começou: com crise financeira e guerra...
Para os Estados Unidos, a década foi dominada pela infeliz decisão bushiana de invasão do Iraque, a pretexto de que o afastamento do ditador abriria uma era de democratização regional e de eliminação das fontes de terrorismo mundial (já que a alegação de posse de armas de destruição em massa nunca foi acolhida pelos órgãos da ONU). A ilusão da onipotência militar, e o esquecimento das lições do Vietnã, levaram a situações de nítido constrangimento imperial – como o tratamento duro reservado aos prisioneiros em Abu Ghraib ou Guantánamo – e a impasses persistentes no terreno, o que inclui a missão ainda não terminada no Afeganistão, um atoleiro literal. A despeito da continuidade dessas aventuras militares, o presidente Obama foi contemplado com o prêmio Nobel da Paz em 2009, provavelmente em função de suas promessas de operar a retração do unilateralismo arrogante do presidente anterior e de recolocar a ação securitária dos EUA nos quadros do multilateralismo onusiano.
A década terminou com uma repetição da crise de 1929, desta vez a partir de uma bolha imobiliária convertida em implosão financeira, permitida pela suspensão, nos anos 1990, das restrições financeiras criadas nos anos 1930 para evitar o excesso de alavancagem. O fato é que a crise econômica iniciada na sequência da quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008, inverteu os anos de crescimento inédito do PIB mundial – em níveis nunca antes alcançados – e a valorização extraordinária dos preços de todas as commodities (o que beneficiou amplamente a economia brasileira), mas fez avançar também as bases institucionais da coordenação econômica mundial, com uma quase eclipse do G7 e a emergência do G20, um grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento representando quase 85% do PIB mundial.
As hostes keynesianas e regulacionistas usaram a crise como uma evidência contundente do mau funcionamento dos mercados financeiros deixados livres e soltos, mas o fato é que foram as ações dos governos – inclusive a longa e inacreditável permissividade do Federal Reserve, ao manter os juros artificialmente baixos em 2% entre 2002 e 2005 – que permitiram as oportunidades para o setor privado explorar os nichos de crescimento para o financiamento privado, que por sua vez criaram as bolhas que começaram a se desfazer ainda em 2007. O Brasil também usou e abusou de medidas anticíclicas de estímulo fiscal, num keynesianismo de fachada que entusiasmou seus apoiadores em certos setores do governo, mas este – sobretudo do lado do Banco Central – não foi tão longe a ponto de abolir o sistema de flutuação cambial ou de impor restrições indevidas aos fluxos de capitais, a não ser a imposição inócua de uma taxa de 2% sobre capitais estrangeiros aplicados em instrumentos financeiros (os especuladores nacionais ficaram, no entanto, livres de fazê-lo).
[vôo Beijing-Paris: 6.12.2009; vôo Paris-São Paulo: 9.12.2009; Brasília: 19.12.2009]
2/1/2010
Fonte: ViaPolítica/O autor
http://diplomatizzando.blogspot.com/
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e diplomata de carreira.
Mais sobre Paulo Roberto de Almeida
Por Paulo Roberto de Almeida
Via Política, 2.01.2010
Uma avaliação livre e confessional do que foi mais importante nos últimos dez anos.
Introdução (que deveria ser breve) sobre métodos e intenções
Vamos aproveitar esta oportunidade da passagem de uma década completa para elaborar uma avaliação em torno do que de mais importante se passou nos primeiros dez anos do século 21, que também são os primeiros do novo milênio. Com efeito, períodos ‘redondos’ – e uma década tem essa característica – se prestam bastante bem a esse tipo de balanço retrospectivo, ou seja, uma avaliação do que ocorreu – ou do que fizemos no período transcorrido.
Dez anos permitem ultrapassar a brevidade relativa do calendário anual e são mais ‘administráveis’, na nossa perspectiva de vida, do que uma geração ou duas (25 ou 50 anos). Estes últimos dez anos oferecem inclusive a vantagem de serem os primeiros de um novo século, e este foi, justamente, o título de um dos meus livros: Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo Paz e Terra, 2002), uma releitura aroniana do cenário mundial no contexto da globalização. Eles constituem, assim, uma referência cronológica simbólica para avaliar (e especular sobre) a próxima centúria, com essa vantagem adicional, justamente, de terem iniciado um novo milênio.
Eis o que me proponho oferecer neste pequeno texto recapitulativo: um breve retrospecto do quê representaram os últimos dez anos para o Brasil e para o mundo. A seleção de fatos políticos, de eventos econômicos e de processos sociais aqui efetuada é puramente subjetiva, refletindo minhas escolhas pessoais quanto às situações de fato e aos cenários estratégicos já ocorridos nos últimos dez anos. No plano ‘confessional’ faço questão de registrar minha posição de cidadão livre de toda e qualquer afiliação política ou partidária (a distinção pode ser importante), de qualquer vinculação religiosa (aliás, sou completamente ‘irreligioso’) e, sobretudo, minha total independência em relação ao Estado, a despeito mesmo de minha condição de servidor federal de uma das carreiras supostamente mais reputadas por sua ‘servidão’ aos interesses do Estado: a diplomacia.
Na verdade, considero-me livre de qualquer tipo de obrigação adesista a qualquer governo que seja, sendo perfeitamente ‘anarquista’ no plano político-profissional e um promotor consciente dos direitos dos cidadãos contra os interesses do Estado, tanto no plano nacional (não sou, como se pode deduzir, um exemplo de ‘patriota’) como no internacional (gostaria de ser um cidadão do mundo, o que, helàs, ainda não é possível).
O bug que deveria ser um bang e um mini-crash financeiro
Começamos a década por um blefe, ou talvez uma paranóia, tão irracional quanto ridícula: a ameaça de colapso informático – e, por extensão, de diversos serviços públicos – por causa de um suposto “bug do milênio”, que teria a propriedade (segundo os catastrofistas de ocasião) de paralisar todos os sistemas eletrônicos a partir da incapacidade dos antigos programas operacionais de acomodar a passagem do calendário. Eu estava nos EUA quando o velho milênio chegava ao seu final e posso testemunhar como nunca antes naquele país – talvez desde as centúrias de Nostradamus – se assistiu a tamanha paranóia coletiva com relação ao colapso de about almost everything: colocados em dúvida pelos próprios meios de comunicação, os americanos começaram a estocar montanhas de alimentos, garrafões de água, lanternas e baterias, num ritmo jamais igualado desde a passagem do ano 1000 (quando provavelmente a maioria da população sequer tinha consciência de que o fim do mundo se aproximava).
Claro, os americanos foram poupados da catástrofe anunciada do bug do milênio – por lá chamado de Y2K – mas eles não conseguiram escapar da primeira crise econômica do século, a das empresas ‘ponto.com’, por incidir sobre as ações das novas companhias da sociedade da informação. Com efeito, os índices Dow (a 11.723 pontos) e Nasdaq (a 5.049, este medindo o desempenho de empresas de comunicação) tinham chegado a níveis inéditos de valorização: era a ‘exuberância irracional’ do guru do Federal Reserve, o inescrutável Alan Greenspan. Daí eles só poderiam cair, a despeito de que alguns economistas reputados afirmassem que a economia capitalista poderia ter chegado num estágio em que ela, finalmente, teria se tornado imune a ciclos e, portanto, às suas crises regulares.
Bastou a hipótese da estabilidade do capitalismo ser aventada para que a realidade de suas flutuações crônicas caísse na cabeça de seus promotores, com toda a sua carga de irracionalidade periódica: no espaço de uma semana, no final do ano, as ações das “.com” despencaram de alturas olímpicas para patamares mais terrestres (algumas foram direto para o primeiro círculo do inferno). Bilionários como Warren Buffet e Bill Gates ficaram, repentinamente, alguns bilhões de dólares mais pobres –nada de muito dramático para eles – mas, antes da queda fatal, especuladores sortudos e jovens investidores que tinha sido remunerados com stock options na constituição dessas ‘inexpressivas’ companhias (no começo dos anos 1990) já tinham encaixado suas fortunas a partir da venda de ações no auge da bolha acionária. Sempre é assim: os inexperientes e ambiciosos acabam fazendo a felicidade de alguns poucos espertos, em todo caso pessoas dotadas de faro apurado para saber sair da ciranda no timing exato da maior valorização, posto que bolhas são tão regulares quanto implacáveis.
No Brasil, nesse mesmo momento, o PSDB começou a perder a possibilidade de um terceiro mandato, a partir de crises especificamente brasileiras. Entre a desvalorização e a flutuação do real, em 1999, e o apagão elétrico de 2001, com racionamento, o ano 2000 foi relativamente ‘feliz’ do ponto de vista econômico: crescimento do PIB e pagamento antecipado do dinheiro colocado à disposição pelo FMI depois da crise de confiança de 1998. Mas logo em seguida começou a degringolada argentina: o regime de conversibilidade (de fato rigidez) cambial começou a fazer água no inicio de 2001, sem que se pudesse antecipar a derrocada espetacular no final desse ano, o que levou o Brasil a fazer o seu segundo pacote preventivo com o FMI, por um valor ‘modesto’ de US$ 15 bilhões (comparativamente aos US$ 41,5 bi de 1998 e aos US$ 30 bi de 2002).
O cowboy religioso e o sindicalista de esquerda
No final de 2000, um ‘perfeito idiota americano’ ganhava na Corte Suprema o direito de não serem recontados os votos das eleições fraudadas da Flórida e, com isso, acedia ao comando da mais poderosa nação do planeta (o que certamente não prenunciava nada de bom para a década que começava). Seu desempenho inicialmente medíocre e potencialmente controverso na liderança do Império foi, paradoxalmente, ‘salvo’ de um registro histórico inexpressivo pelos ataques terroristas a New York e a Washington, em setembro de 2001, o que lhe deu um realce nas relações internacionais que ele jamais teria por mérito próprio ou capacidade de liderança. De certa forma, ao atacar o coração do Império, Osama Bin Laden deu algum sentido ao governo de Bush, que de outra forma seria medíocre.
O ataque – devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU – ao quartel general da Al Qaeda, abrigado pelo governo talibã do Afeganistão – recebeu a aprovação quase unânime da comunidade internacional, da mesma ONU que não tinha conseguido impedir a destruição assassina das estátuas gigantes dos Budas de Bamian, um ano antes. Mas George W. conseguiu converter todo esse apoio em rejeição também quase unânime ao prolongar sua ofensiva contra o terrorismo internacional num ataque desautorizado pelo CSNU contra o regime – certamente celerado e criminoso – de Saddam Hussein, no Iraque, já no início de 2003, numa das iniciativas mais mal calculadas pelos ‘falcões’ do Pentágono.
Nessa altura, o Brasil já tinha passado pela mais importante mudança política desde o início da República, ao eleger um líder supostamente de esquerda e teoricamente representante da classe trabalhadora como seu presidente (na quarta tentativa). Não foi sem custos para o país, pelo menos durante o processo eleitoral: o risco Brasil subiu às alturas, junto com o dólar, ao mesmo tempo em que despencavam nos mercados financeiros globais os valores negociados dos títulos da dívida externa brasileira. Nem tudo foi apenas especulação dos garotos de Wall Street, embora algo possa ser creditado à ‘ação maldosa’ dos mercados financeiros, et pour cause: o PT – um típico partido esquerdista latino-americano – prometia em seu programa de ação calote nas dívidas externa e interna, rejeição dos acordos com o FMI e mudança completa nas regras do jogo, segundo uma política econômica claramente esquizofrênica.
Obviamente, as lideranças mais esclarecidas – ou mais oportunistas – do partido já tinham prometido, na ‘Carta ao Povo Brasileiro’ (junho de 2002), respeitar todos os contratos internacionais e as obrigações externas do Brasil, mudança bem recebida pelos banqueiros e burgueses em geral (que apoiaram entusiasticamente o novo aliado do capital). Eu já tinha incorporado essa vitória em vários capítulos pré-eleitorais de meu livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Codex, 2003), no qual eu anunciava a conversão não reconhecida, de fato clandestina, do nouveau régime ao neoliberalismo.
“Nunca antes neste país”: refazendo a história com a herança alheia...
O resto, pode-se dizer que é História: o presidente eleito e empossado teve o bom senso de preservar em sua integridade todos os elementos da política econômica anterior – metas de inflação, flutuação cambial, superávits primários – e de acolher nos gabinetes ministeriais vários quadros técnicos comprometidos com o que os petistas chamavam desdenhosamente de “neoliberalismo”, rejeitando, em conseqüência, a esquizofrenia econômica contida nas recomendações dos seus próprios ‘economistas’. Foi a coisa mais sensata que poderia ter acontecido ao Brasil: mesmo sem acreditar muito na política econômica ‘neoliberal’, o presidente garantiu as bases de seu sucesso político ulterior, junto com a preservação da estabilidade econômica. Bem, isso se chama, simplesmente, instinto de sobrevivência, ou seja, sensibilidade política e bom senso econômico. Ele deve ter desconfiado que a aplicação das receitas econômicas surrealistas dos seus conselheiros petistas ameaçaria diretamente suas chances eleitorais ou simplesmente não seria economicamente sustentável, e agiu em conseqüência.
Claro, houve tropeços políticos e muitos, alguns deles desastrosos, que quase precipitaram um final precoce do nouveau régime: alguns deles começaram ainda cedo, com as patifarias e negociatas promovidas por lugares tenentes dos novos chefes do poder, o que foi desastroso para a imagem pública do partido que estava comemorando 25 aninhos de vida. Um erro de cálculo quanto à extensão da base de apoio do governo no Congresso conduziu ao uso mal administrado do recurso mais habitual dos responsáveis do Executivo que se julgam onipotentes: a compra, no varejo e no atacado, de parlamentares, e até de bancadas inteiras, negociados como se fossem escravos em hasta pública (mas num leilão a portas fechadas). Deu no que deu: o Richelieu todo poderoso que se julgava ao abrigo de retaliações comezinhas, arrogante como um candidato a Stalin tropical (ainda bem que sem Gulag), foi posto a nu por um desses trânsfugas de negociatas mal conduzidas, decerto descontente com o preço pago ou contrariado em seu amor próprio de chefe de bancada). Não só caiu toda a cúpula bichada do partido hegemônico, mas também houve ameaças ao próprio chefe da tribo, que salvou-se por incompetência da oposição ou por ter alegado uma inocência tão canhestra que nem seus mais próximos acreditavam.
Mas, o chamado ‘escândalo do mensalão petista’ foi apenas o primeiro de uma sucessão de episódios lamentáveis envolvendo a reputação de um Congresso cada vez mais emporcalhado pelo desfilar contínuo de comportamentos escabrosos no plano da moralidade pública, e totalmente irresponsável quanto ao bom uso dos recursos públicos, estes, aliás, devidamente saqueados pela sanha arrivista de legiões de militantes do partido no poder. No início ainda existia alguma tentativa de justificar as patifarias cometidas, a pretexto da inacreditável alegação de que “sempre se fez assim” ou, então, na base do “sou, mas quem não é?”. No acumular de episódios cada vez mais constrangedores para a reputação do partido outrora ‘ético’ – apenas para fins de imagem externa, obviamente – foram se esvaindo as justificativas mais esfarrapadas, ao ponto de sequer haver a tentativa ulterior de aparentar inocência, impondo-se apenas a atitude generalizada de obstruir no plano executivo e bloquear no âmbito congressual qualquer investigação mais séria. Como já se tinha disseminado o habito de comprar a preço de ouro bancadas inteiras, nunca faltou maioria para votar o que fosse conveniente, mesmo com o apoio incômodo de antigos representantes reacionários e corruptos.
A situação do Congresso brasileiro, e das instituições públicas em geral, se deteriorou tanto que não cabe aqui fazer qualquer balanço valorativo, valendo apenas aplicar-se a frase conhecida: “não há qualquer risco de melhorar” (pelo menos nos próximos dez anos, inclusive com base numa justiça leniente ou talvez até corrupta). Em outros países, a representação parlamentar não é certamente isenta de sua cota de medíocres, aventureiros e corruptos, mas é certo que, em países mais sérios, os maiores desviantes acabam sendo levados às barras dos tribunais e às grades das cadeias por um tempo razoável, o que parece jamais ter ocorrido no Brasil.
O Brasil surfando na onda do crescimento mundial
Qualquer que tenha sido o grau de moralidade dos sistemas políticos around the world, o fato é que o mundo embarcou, desde 2002, numa das fases de mais intenso crescimento econômico já registradas na história contemporânea, com valorização inédita de todas as matérias primas, forte expansão do comércio internacional e intensa especulação com todos os tipos de instrumentos financeiros, processo que cobraria o seu preço no final da década. O Brasil surfou alegremente nessa onda de crescimento econômico global, com expansão das exportações (mais pelo lado dos preços do que dos volumes), estímulo à demanda interna (com crescimento da oferta de crédito) e aumento da massa salarial e das rendas de transferência (pensões e assistência social).
O governo não contrariou em demasia as regras dos mercados – tampouco as do setor financeiro ou o regime cambial – o que deve ter descontentado sobremaneira seus velhos aliados e apoiadores, promotores da antiga política econômica esquizofrênica. Esta, que tinha (ainda tem) muitos defensores no governo pretendia controlar os fluxos de capitais, efetuar manipulações cambiais, reduzir substancialmente o superávit primário e lograr mais flexibilidade creditícia (mesmo sob risco de atiçar a inflação). Nem tudo foi perfeito, porém: a irresponsabilidade econômica do governo – alinhando-se com isso aos que propugnavam a expansão supostamente keynesiana dos gastos públicos – consistiu essencialmente em permitir, e promover ativamente, o crescimento desmesurado da carga fiscal, da qual apenas uma pequena parte foi dedicada a gastos sociais, a maior parte indo para banqueiros amigos do poder e para industriais amigos dos subsídios públicos dispensados pelos bancos do poder. Antecipando sobre minhas previsões, pode-se dizer que esta será a herança maldita a ser deixada pelo atual governo a seu sucessor, qualquer que seja ele: uma bomba-relógio fiscal a ser penosamente desativada, sob risco de explodir.
Os grandes temas dos anos 2000, no plano mundial, foram essencialmente estes: o recrudescimento e ampliação dos ataques terroristas – em países tão diferentes quanto EUA, Inglaterra, Espanha, Paquistão, Indonésia, Rússia, Jordânia, Filipinas, Turquia, Índia e, obviamente, Israel – fenômeno equiparado por alguns analistas a uma “quarta guerra mundial” (sendo que a terceira teria sido a Guerra Fria, vencida pelo capitalismo de mercado); a ascensão irresistível da China enquanto grande economia manufatureira e, potencialmente, grande potência mundial; a proliferação nuclear, com alguns casos intratáveis como os da Coréia do Norte e do Irã; a disseminação extraordinária da internet e dos meios de comunicação de massa, com fenômenos comerciais de sucesso como o iPod e o iPhone e alguns exemplos de “almoços grátis” no capitalismo, como os blogs e outros canais instantâneos de comunicação; o aquecimento global, que pode ser considerado uma nova modalidade de “malthusianismo” da nossa era, substituindo-se a antiga preocupação com o crescimento geométrico da população – processo ainda em curso em certas regiões e países – pela ameaça da destruição irremediável do nosso estilo de vida em função da alegada ação humana deletéria sobre o meio ambiente.
A década termina por onde começou: com crise financeira e guerra...
Para os Estados Unidos, a década foi dominada pela infeliz decisão bushiana de invasão do Iraque, a pretexto de que o afastamento do ditador abriria uma era de democratização regional e de eliminação das fontes de terrorismo mundial (já que a alegação de posse de armas de destruição em massa nunca foi acolhida pelos órgãos da ONU). A ilusão da onipotência militar, e o esquecimento das lições do Vietnã, levaram a situações de nítido constrangimento imperial – como o tratamento duro reservado aos prisioneiros em Abu Ghraib ou Guantánamo – e a impasses persistentes no terreno, o que inclui a missão ainda não terminada no Afeganistão, um atoleiro literal. A despeito da continuidade dessas aventuras militares, o presidente Obama foi contemplado com o prêmio Nobel da Paz em 2009, provavelmente em função de suas promessas de operar a retração do unilateralismo arrogante do presidente anterior e de recolocar a ação securitária dos EUA nos quadros do multilateralismo onusiano.
A década terminou com uma repetição da crise de 1929, desta vez a partir de uma bolha imobiliária convertida em implosão financeira, permitida pela suspensão, nos anos 1990, das restrições financeiras criadas nos anos 1930 para evitar o excesso de alavancagem. O fato é que a crise econômica iniciada na sequência da quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008, inverteu os anos de crescimento inédito do PIB mundial – em níveis nunca antes alcançados – e a valorização extraordinária dos preços de todas as commodities (o que beneficiou amplamente a economia brasileira), mas fez avançar também as bases institucionais da coordenação econômica mundial, com uma quase eclipse do G7 e a emergência do G20, um grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento representando quase 85% do PIB mundial.
As hostes keynesianas e regulacionistas usaram a crise como uma evidência contundente do mau funcionamento dos mercados financeiros deixados livres e soltos, mas o fato é que foram as ações dos governos – inclusive a longa e inacreditável permissividade do Federal Reserve, ao manter os juros artificialmente baixos em 2% entre 2002 e 2005 – que permitiram as oportunidades para o setor privado explorar os nichos de crescimento para o financiamento privado, que por sua vez criaram as bolhas que começaram a se desfazer ainda em 2007. O Brasil também usou e abusou de medidas anticíclicas de estímulo fiscal, num keynesianismo de fachada que entusiasmou seus apoiadores em certos setores do governo, mas este – sobretudo do lado do Banco Central – não foi tão longe a ponto de abolir o sistema de flutuação cambial ou de impor restrições indevidas aos fluxos de capitais, a não ser a imposição inócua de uma taxa de 2% sobre capitais estrangeiros aplicados em instrumentos financeiros (os especuladores nacionais ficaram, no entanto, livres de fazê-lo).
[vôo Beijing-Paris: 6.12.2009; vôo Paris-São Paulo: 9.12.2009; Brasília: 19.12.2009]
2/1/2010
Fonte: ViaPolítica/O autor
http://diplomatizzando.blogspot.com/
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e diplomata de carreira.
Mais sobre Paulo Roberto de Almeida
1644) Um balanço otimista dos ultimos dez anos....
Economic View
Fruitful Decade for Many in the World
TYLER COWEN
The New York Times, January 2, 2010
IT may not feel that way right now, but the last 10 years may go down in world history as a big success. That idea may be hard to accept in the United States. After all, it was the decade of 9/11, the wars in Iraq and Afghanistan, and the financial crisis, all dramatic and painful events. But in economic terms, at least, the decade was a remarkably good one for many people around the globe.
The raging economic growth rates of China and India are well known, though their rise is part of a broader trend in the economic development of poorer countries. Ideals of prosperity, freedom and the rule of law have probably never been more resonant globally than they’ve been over the last 10 years, even if practice often falls short. And for all of the anticapitalistic rhetoric that has emerged from the financial crisis, national leaders around the world are embracing the commercialization of their economies.
Putting aside the United States, which ranks third, the four most populous countries are China, India, Indonesia and Brazil, accounting for more than 40 percent of the world’s people. And all four have made great strides. Indonesia had solid economic growth during the entire decade, mostly in the 5 to 6 percent annual range. That came after its very turbulent 1990s, marked by a disastrous financial crisis and plummeting standards of living.
Brazil also had a consistently good decade, with growth at times exceeding 5 percent a year. There is lots of talk that the country has finally turned the corner, and, within its borders, there is major worry that its currency is too strong — a problem that many other countries would envy.
Elsewhere in South America, Colombia and Peru have made enormous progress and Chile is on the verge of becoming a “developed” country; it will soon be joining the Organization for Economic Cooperation and Development.
To be sure, in Africa, there is still enormous misery. Nonetheless, overall standards of living rose in a wide variety of countries there, with economic growth for the continent as a whole at more than 5 percent in most years. Many basic essentials, like water, sanitation, electricity and especially telephones, are more commonly available.
One lesson from all of this is that steady economic growth is an underreported news story — and to our own detriment. As human beings, we are prone to focus on very dramatic, visible events, such as confrontations with political enemies or the personal qualities of leaders, whether good or bad. We turn information about politics and economics into stories of good guys versus bad guys and identify progress with the triumph of the good guys. In the process, it’s easy to neglect the underlying forces that improve life in small, hard-to-observe ways, culminating in important changes.
In a given year, an extra percentage point of economic growth may not seem to matter much. But, over time, the difference between annual growth of 1 percent and 2 percent determines whether you can double your standard of living every 35 years or every 70 years. At 5 percent annual economic growth, living standards double about every 14 years.
Nonetheless, despite the positive news in much of the world, it’s questionable whether the decade as a whole has been good for Americans, economically speaking. Median wages have not risen much, if at all, and the costs of the financial crisis and irresponsible fiscal policies have become increasingly obvious. Those facts support a pessimistic interpretation.
Still, most economic models suggest that the fundamental source of growth is new ideas, which enable us to produce more from a given set of resources. To the extent that the rest of the world becomes wealthier, there’s more innovation, as my colleague and co-blogger Alex Tabarrok, professor of economics at George Mason University, argued recently. China, for instance, is moving toward the research frontier in areas such as solar power, scientific instruments, engineering and nanoscience, all of which can benefit the United States. Unlike the situation of just a few decades ago, a genius born in Mumbai now stands a good chance of becoming a notable scientist, whether at home or abroad.
It might be pleasant to boast that America is — or should be — a world leader in every area, but the practical reality is that if some other country solves the problem of green energy, so much the better for us.
The subtler point is that a wealthier China, India, Brazil and Indonesia will lead to more customers for new innovations, thereby producing greater rewards for successful entrepreneurs, no matter where they live. There are so many improvements in cellphones these days because there are so many cellphone customers in so many countries.
TO put it bluntly, if the United States takes one step back and the rest of the world takes two steps forward, even in purely selfish terms we should consider accepting the trade-off, if only for the longer run. Most of us gain from the wealth and creativity of other countries, even if we can’t always feel like the top dog.
When asked what he thought of the French Revolution, Zhou Enlai, the premier of China from 1949 until his death in 1976, reportedly replied, “It is too soon to tell.”
That is also a fair response to the last 10 years, and it will be for some time to come. The point remains that if we look beneath the surface just a bit, the picture is a good deal rosier than we might otherwise think.
Tyler Cowen is a professor of economics at George Mason University
Fruitful Decade for Many in the World
TYLER COWEN
The New York Times, January 2, 2010
IT may not feel that way right now, but the last 10 years may go down in world history as a big success. That idea may be hard to accept in the United States. After all, it was the decade of 9/11, the wars in Iraq and Afghanistan, and the financial crisis, all dramatic and painful events. But in economic terms, at least, the decade was a remarkably good one for many people around the globe.
The raging economic growth rates of China and India are well known, though their rise is part of a broader trend in the economic development of poorer countries. Ideals of prosperity, freedom and the rule of law have probably never been more resonant globally than they’ve been over the last 10 years, even if practice often falls short. And for all of the anticapitalistic rhetoric that has emerged from the financial crisis, national leaders around the world are embracing the commercialization of their economies.
Putting aside the United States, which ranks third, the four most populous countries are China, India, Indonesia and Brazil, accounting for more than 40 percent of the world’s people. And all four have made great strides. Indonesia had solid economic growth during the entire decade, mostly in the 5 to 6 percent annual range. That came after its very turbulent 1990s, marked by a disastrous financial crisis and plummeting standards of living.
Brazil also had a consistently good decade, with growth at times exceeding 5 percent a year. There is lots of talk that the country has finally turned the corner, and, within its borders, there is major worry that its currency is too strong — a problem that many other countries would envy.
Elsewhere in South America, Colombia and Peru have made enormous progress and Chile is on the verge of becoming a “developed” country; it will soon be joining the Organization for Economic Cooperation and Development.
To be sure, in Africa, there is still enormous misery. Nonetheless, overall standards of living rose in a wide variety of countries there, with economic growth for the continent as a whole at more than 5 percent in most years. Many basic essentials, like water, sanitation, electricity and especially telephones, are more commonly available.
One lesson from all of this is that steady economic growth is an underreported news story — and to our own detriment. As human beings, we are prone to focus on very dramatic, visible events, such as confrontations with political enemies or the personal qualities of leaders, whether good or bad. We turn information about politics and economics into stories of good guys versus bad guys and identify progress with the triumph of the good guys. In the process, it’s easy to neglect the underlying forces that improve life in small, hard-to-observe ways, culminating in important changes.
In a given year, an extra percentage point of economic growth may not seem to matter much. But, over time, the difference between annual growth of 1 percent and 2 percent determines whether you can double your standard of living every 35 years or every 70 years. At 5 percent annual economic growth, living standards double about every 14 years.
Nonetheless, despite the positive news in much of the world, it’s questionable whether the decade as a whole has been good for Americans, economically speaking. Median wages have not risen much, if at all, and the costs of the financial crisis and irresponsible fiscal policies have become increasingly obvious. Those facts support a pessimistic interpretation.
Still, most economic models suggest that the fundamental source of growth is new ideas, which enable us to produce more from a given set of resources. To the extent that the rest of the world becomes wealthier, there’s more innovation, as my colleague and co-blogger Alex Tabarrok, professor of economics at George Mason University, argued recently. China, for instance, is moving toward the research frontier in areas such as solar power, scientific instruments, engineering and nanoscience, all of which can benefit the United States. Unlike the situation of just a few decades ago, a genius born in Mumbai now stands a good chance of becoming a notable scientist, whether at home or abroad.
It might be pleasant to boast that America is — or should be — a world leader in every area, but the practical reality is that if some other country solves the problem of green energy, so much the better for us.
The subtler point is that a wealthier China, India, Brazil and Indonesia will lead to more customers for new innovations, thereby producing greater rewards for successful entrepreneurs, no matter where they live. There are so many improvements in cellphones these days because there are so many cellphone customers in so many countries.
TO put it bluntly, if the United States takes one step back and the rest of the world takes two steps forward, even in purely selfish terms we should consider accepting the trade-off, if only for the longer run. Most of us gain from the wealth and creativity of other countries, even if we can’t always feel like the top dog.
When asked what he thought of the French Revolution, Zhou Enlai, the premier of China from 1949 until his death in 1976, reportedly replied, “It is too soon to tell.”
That is also a fair response to the last 10 years, and it will be for some time to come. The point remains that if we look beneath the surface just a bit, the picture is a good deal rosier than we might otherwise think.
Tyler Cowen is a professor of economics at George Mason University
1643) Política externa brasileira: uma matéria a favor (2)
Este post pode ser lido em conexão com o meu post 1585, que já trazia uma outra matéria do mesmo jornalista, também a favor da atual política externa.
Diga-se de passagem, que a maior parte das críticas consideram que o alegado anti-americanismo da diplomacia brasileira atual é o aspecto menos importante do problema.
Só para contrariar II
Brasil - Sergio Leo
Valor Econômico, 04/01/2010
Em um dos encontros reservados entre autoridades brasileiras e americanas no ano passado, o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, tentou explicar ao secretário de Estado Adjunto dos EUA para o Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, a razão da abstenção do Brasil nas votações das Nações Unidas que condenaram o Irã por seus esquivos movimentos na área nuclear e pelo desrespeito aos direitos humanos. O Brasil não apoiou o Irã, absteve-se, para não brecar a aproximação com o país e para reforçar as pressões em favor dos direitos humanos e contra o uso bélico da energia nuclear, argumentou o brasileiro.
Valenzuela, segundo relato levado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, comentou não ter pensado nessa justificativa para o comportamento do Brasil nas Nações Unidas, que intrigou parceiros internacionais do Brasil. Poucas semanas antes, o presidente dos EUA havia se dado ao trabalho de, em uma carta a Lula, explicar as razões pelas quais os EUA não consideram conveniente a aproximação com o Irã, entre outras divergências com o governo brasileiro. Garcia havia falado em "frustração" com Obama, mas, em seguida, o governo brasileiro mudou de tom, e o próprio Garcia adotou tom otimista
Também em encontro recente, o presidente Lula deu explicações parecidas ao presidente francês, Nicholas Sarkozy, argumentando estar se esforçando para trazer o Irã às boas práticas da comunidade internacional. Sarkozy agradeceu a explicação e comentou que a França já teve essa ilusão, desfeita pelos próprios iranianos.
Os episódios com Valenzuela e Sarkozy podem servir de exemplo de ingenuidade e megalomania da política externa brasileira, ao sonhar com sucesso onde grandes potências, com muito mais recursos de poder, só tiveram frustrações. As duas conversas podem servir para outra constatação, porém. A de que os movimentos diplomáticos de Lula e seus assessores na área (Marco Aurélio Garcia e o embaixador Celso Amorim) têm razões muito mais complexas e merecedoras de debate do que a classificação rasteira de "antiamericanismo" , aposta por alguns críticos ideológicos da política externa gestada em Brasília. Aliás, também servem para mostrar a inutilidade, para fins práticos, do rótulo de "ideológica" costumeiramente aplicado sobre a mesma política externa.
Que há ideologia na política exterior, não há dúvida, sempre houve e haverá. Como o nome diz, é uma política, não uma técnica, como querem fazer crer alguns críticos e políticos. Já a etiqueta de "antiamericana" parece colar com dificuldade em uma prática diplomática que exibe com orgulho os laços firmados com os mandatários dos Estados Unidos, que preza a troca constante de impressões com a Casa Branca e o Departamento de Estado, e que mantém um relacionamento cada vez mais intenso em áreas como diplomacia, comércio e defesa.
Quem quer saber o que, de fato, é política externa condicionada por um tom antiamericano e uma agressiva postura ideológica, deveria imaginar se, entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as autoridades dos EUA poderia haver diálogo como o travado entre Brasília e Washington. Claro, Brasil e EUA têm divergências - e o próprio Valenzuela, em sua passagem pelo Brasil, esforçou-se heroicamente para minimizá-las, lembrando até que os EUA também se veem de vez em quando às turras com o Canadá.
Evidentemente, uma conversa com autoridades encarregadas da política externa sobre os EUA tem chances consideráveis de incluir referências críticas à ação dos EUA no continente. Mas não é uma invenção brasileira a agressiva ação americana de apoio a regimes antidemocráticos no passado recente da região. E foi o próprio Obama, não algum ideólogo do Planalto, quem, em discurso de campanha para a comunidade cubana em Miami, em 2008, questionou os Estados Unidos pelos anos de "políticas fracassadas" e pressões "por reformas de cima para baixo" na América Latina.
O marco da impressão de antiamericanismo colada à política externa foi a atuação do Itamaraty nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas. Na discussão da Alca, na prática, a visão estratégica do governo Lula se assemelhava à do governo Fernando Henrique Cardoso, contrária às exigências americanas em matéria de patentes, investimentos e serviços, e cética em relação a ganhos substanciais na redução das barreiras comerciais importantes, ao aço, ao etanol, ao suco de laranja brasileiros.
Os dois governos diferenciaram- se em relação à tática. Com FHC havia a ideia de seguir com as negociações e recusar o acordo se não conviesse ao Brasil. Com Lula, o ministro Celso Amorim (que chegou a ser cogitado para chanceler pelo candidato derrotado, José Serra), calejado pela experiência como negociador da Rodada Uruguai na Organização Mundial do Comércio, impôs de cara uma definição imediata sobre temas espinhosos - e a negociação naufragou. É bem verdade que os negociadores escalados por Amorim já apontavam para o naufrágio.
Há, hoje, um esforço genuíno em Brasília de aproximação com os EUA. Além do diálogo político, como resultado do fórum de altos empresários (criado ainda no governo Bush e de parcos resultados até agora), já se admite no governo brasileiro avançar na negociação de um acordo contra a bitributação, velha reivindicação empresarial. A ameaça de retaliar os EUA contra os subsídios americanos ilegais ao algodão tem sido administrada com moderação, sem arroubos retóricos. Abriram-se importantes centros de distribuição da Agência de Promoção de Exportações para colocação de produtos brasileiros no mercado - já que, mais que tratados de livre comércio, o que faz falta para ingressar no mercado americano é de ações de promoção de exportação.
Há erros e fiascos na política externa brasileira. Mas o saldo geral é claramente positivo, embora essa avaliação possa ser posta em questão, desde que em um debate sério, sem as mistificações sustentadas por argumentos simplórios como os do "antiamericanismo do Itamaraty" e o da "ideologização da política externa". Que este ano eleitoral permita esse debate sério é um desejo da coluna para 2010.
Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras
Diga-se de passagem, que a maior parte das críticas consideram que o alegado anti-americanismo da diplomacia brasileira atual é o aspecto menos importante do problema.
Só para contrariar II
Brasil - Sergio Leo
Valor Econômico, 04/01/2010
Em um dos encontros reservados entre autoridades brasileiras e americanas no ano passado, o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, tentou explicar ao secretário de Estado Adjunto dos EUA para o Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, a razão da abstenção do Brasil nas votações das Nações Unidas que condenaram o Irã por seus esquivos movimentos na área nuclear e pelo desrespeito aos direitos humanos. O Brasil não apoiou o Irã, absteve-se, para não brecar a aproximação com o país e para reforçar as pressões em favor dos direitos humanos e contra o uso bélico da energia nuclear, argumentou o brasileiro.
Valenzuela, segundo relato levado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, comentou não ter pensado nessa justificativa para o comportamento do Brasil nas Nações Unidas, que intrigou parceiros internacionais do Brasil. Poucas semanas antes, o presidente dos EUA havia se dado ao trabalho de, em uma carta a Lula, explicar as razões pelas quais os EUA não consideram conveniente a aproximação com o Irã, entre outras divergências com o governo brasileiro. Garcia havia falado em "frustração" com Obama, mas, em seguida, o governo brasileiro mudou de tom, e o próprio Garcia adotou tom otimista
Também em encontro recente, o presidente Lula deu explicações parecidas ao presidente francês, Nicholas Sarkozy, argumentando estar se esforçando para trazer o Irã às boas práticas da comunidade internacional. Sarkozy agradeceu a explicação e comentou que a França já teve essa ilusão, desfeita pelos próprios iranianos.
Os episódios com Valenzuela e Sarkozy podem servir de exemplo de ingenuidade e megalomania da política externa brasileira, ao sonhar com sucesso onde grandes potências, com muito mais recursos de poder, só tiveram frustrações. As duas conversas podem servir para outra constatação, porém. A de que os movimentos diplomáticos de Lula e seus assessores na área (Marco Aurélio Garcia e o embaixador Celso Amorim) têm razões muito mais complexas e merecedoras de debate do que a classificação rasteira de "antiamericanismo" , aposta por alguns críticos ideológicos da política externa gestada em Brasília. Aliás, também servem para mostrar a inutilidade, para fins práticos, do rótulo de "ideológica" costumeiramente aplicado sobre a mesma política externa.
Que há ideologia na política exterior, não há dúvida, sempre houve e haverá. Como o nome diz, é uma política, não uma técnica, como querem fazer crer alguns críticos e políticos. Já a etiqueta de "antiamericana" parece colar com dificuldade em uma prática diplomática que exibe com orgulho os laços firmados com os mandatários dos Estados Unidos, que preza a troca constante de impressões com a Casa Branca e o Departamento de Estado, e que mantém um relacionamento cada vez mais intenso em áreas como diplomacia, comércio e defesa.
Quem quer saber o que, de fato, é política externa condicionada por um tom antiamericano e uma agressiva postura ideológica, deveria imaginar se, entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e as autoridades dos EUA poderia haver diálogo como o travado entre Brasília e Washington. Claro, Brasil e EUA têm divergências - e o próprio Valenzuela, em sua passagem pelo Brasil, esforçou-se heroicamente para minimizá-las, lembrando até que os EUA também se veem de vez em quando às turras com o Canadá.
Evidentemente, uma conversa com autoridades encarregadas da política externa sobre os EUA tem chances consideráveis de incluir referências críticas à ação dos EUA no continente. Mas não é uma invenção brasileira a agressiva ação americana de apoio a regimes antidemocráticos no passado recente da região. E foi o próprio Obama, não algum ideólogo do Planalto, quem, em discurso de campanha para a comunidade cubana em Miami, em 2008, questionou os Estados Unidos pelos anos de "políticas fracassadas" e pressões "por reformas de cima para baixo" na América Latina.
O marco da impressão de antiamericanismo colada à política externa foi a atuação do Itamaraty nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas. Na discussão da Alca, na prática, a visão estratégica do governo Lula se assemelhava à do governo Fernando Henrique Cardoso, contrária às exigências americanas em matéria de patentes, investimentos e serviços, e cética em relação a ganhos substanciais na redução das barreiras comerciais importantes, ao aço, ao etanol, ao suco de laranja brasileiros.
Os dois governos diferenciaram- se em relação à tática. Com FHC havia a ideia de seguir com as negociações e recusar o acordo se não conviesse ao Brasil. Com Lula, o ministro Celso Amorim (que chegou a ser cogitado para chanceler pelo candidato derrotado, José Serra), calejado pela experiência como negociador da Rodada Uruguai na Organização Mundial do Comércio, impôs de cara uma definição imediata sobre temas espinhosos - e a negociação naufragou. É bem verdade que os negociadores escalados por Amorim já apontavam para o naufrágio.
Há, hoje, um esforço genuíno em Brasília de aproximação com os EUA. Além do diálogo político, como resultado do fórum de altos empresários (criado ainda no governo Bush e de parcos resultados até agora), já se admite no governo brasileiro avançar na negociação de um acordo contra a bitributação, velha reivindicação empresarial. A ameaça de retaliar os EUA contra os subsídios americanos ilegais ao algodão tem sido administrada com moderação, sem arroubos retóricos. Abriram-se importantes centros de distribuição da Agência de Promoção de Exportações para colocação de produtos brasileiros no mercado - já que, mais que tratados de livre comércio, o que faz falta para ingressar no mercado americano é de ações de promoção de exportação.
Há erros e fiascos na política externa brasileira. Mas o saldo geral é claramente positivo, embora essa avaliação possa ser posta em questão, desde que em um debate sério, sem as mistificações sustentadas por argumentos simplórios como os do "antiamericanismo do Itamaraty" e o da "ideologização da política externa". Que este ano eleitoral permita esse debate sério é um desejo da coluna para 2010.
Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras
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