Este trabalho foi preparatório às eleições presidenciais de 2006. Pretenderia fazer igual em 2010.
A política externa nas campanhas presidenciais:
antecipando o debate das eleições de 2006
Paulo Roberto de Almeida
Tendo acompanhado a temática da política externa nas campanhas presidenciais desde 1989, depois de já ter estudado durante anos a interação que o Congresso e os partidos políticos mantêm em relação aos temas de relações internacionais e de política exterior do Brasil, minha constatação é clara: a política externa entrou, definitivamente, nas campanhas eleitorais. Trata-se de realidade nova que cabe examinar, antes que os próprios candidatos façam sua aparição nas telas de televisão e também nas páginas do boletim ADB (ver a pequena bibliografia in fine).
Meus primeiros diagnósticos assumiam, invariavelmente, um tom pessimista: eu simplesmente constatava que a política externa era marginal do ponto de vista da atuação dos partidos políticos e que as questões de relações internacionais e de relacionamento externo do Brasil eram secundárias nas preocupações dos líderes políticos, quando não ficavam distantes de todo e qualquer discurso de campanha. Quanto os temas entravam em alguma campanha presidencial, era mais pelo lado prosaico ou negativo: lamentava um candidato as “perdas internacionais” que estavam sendo supostamente impostas ao País pelas empresas multinacionais, condenava, um outro, a dívida externa “extorsiva” e uma imaginária “submissão” ao FMI e insistia, um terceiro, na velha arenga da defesa das indústrias nacionais que estariam sendo “sucateadas” e entregues, de “mãos atadas”, aos interesses externos. Como regra geral, no Brasil, ninguém se elege tratando de política externa ou de temas diplomáticos e internacionais. Seria isso ainda verdade?
Esse cenário parece ter mudado substancialmente ao longo dos anos, por boas e más razões. Seja pelo crescimento da interface brasileira com o mundo, a começar pela própria região, seja pela internalização de problemas externos, extremamente facilitada pelas redes de comunicações, o fato é que, pela primeira vez em nossa história política, os temas de política exterior e de integração regional estarão no centro do debate da próxima campanha presidencial, também aqui por boas e más razões. Por um lado, o Brasil passou a estar bem mais vinculado aos movimentos da economia mundial, tanto nos aspectos propriamente econômicos como nos políticos – pela posição de liderança em negociações internacionais –, além de que a ação de grupos de interesse e de movimentos externos passa a influenciar diretamente o cenário interno, como se pode constatar mediante uma rápida consulta à agenda das principais autoridades governamentais.
Por outro lado, o Brasil também está “importando” parte do debate que se dá em cenários estrangeiros, regionais ou internacionais, com certo “contrabando” conceitual de idéias e propostas que não correspondem a uma agenda político-econômica propriamente interna, e sim responde a ações e posições de grupos, movimentos e partidos estrangeiros que tendem a refletir interesses que lhes são próprios. Apenas dois exemplos bastariam para ficar claro o que isto pode representar em termos de defesa dos interesses nacionais nos foros multilaterais: a velha questão do “dumping social”, travestida de “cláusula social”, que foi incorporada às demandas de certas centrais sindicais, bem como o apoio interno a posturas contrárias ao interesse nacional no terreno das negociações agrícolas internacionais, que resulta da importação acrítica de posições como as da ATTAC francesa por movimentos sociais brasileiros operando na órbita do Fórum Social Mundial. Não preciso sequer mencionar dois patéticos plebiscitos organizados em 2001 e 2002 pelos mesmos movimentos sociais, um sobre a dívida externa, o outro sobre a Alca, cujas maiorias “albanesas” contra o pagamento da primeira e a favor da rejeição da segunda dizem tudo sobre essa contaminação da agenda interna pela importação acrítica de posições simplistas ao extremo mas que representam interesses de determinados grupos sociais em outros países.
Independentemente desses exemplos canhestros de debate “enviesado”, o fato é que a política externa adentrou o terreno político nacional e deve figurar em posição central, ou pelo menos preeminente, nas eleições presidenciais de outubro de 2006. Independentemente também do fato de que a sociedade possa estar dividida na maior parte das escolhas efetuadas pelas autoridades responsáveis pela nossa política externa e pela condução da diplomacia, o fato é que essas autoridades foram em grande medida responsáveis pela “popularização” da política externa enquanto tema do cotidiano, e não mais sua entronização restrita, como uma espécie de agenda “bizarra”, restrita a uns quantos “especialistas”. Pela primeira vez em muitos anos, quiçá de forma inédita em nossa história, todos, ou quase todos, os temas da agenda diplomática brasileira foram “transferidos” para o cotidiano dos leitores de jornais, ouvintes de rádio e espectadores de jornais televisionados. A política externa do Brasil permeia os temas da agenda interna como nunca ocorreu no Brasil, e isso deverá igualmente refletir-se na próxima campanha presidencial.
Antes que as plataformas eleitorais nessa área adentrem, portanto, as páginas do boletim ADB, caberia balizar o debate entre os candidatos, cujo perfil definitivo só será de fato conhecido por ocasião das convenções partidárias do mês de junho. Pode-se antecipar, com pouca margem a dúvidas, que a maior parte parte dos debates eleitorais a partir de agosto de 2006, nos temas de relações internacionais e de política externa, será travada em torno das posições diplomáticas assumidas pelo governo Lula, o que nada mais é senão uma decorrência lógica da centralidade que ela veio a ter no conjunto das políticas governamentais.
Com efeito, sem entrar no mérito das avaliaçoes qualitativas ou de argumentos opinativos, a atual política externa reflete, com bastante coerência, as posições de política internacional exibidas pelo PT e pelo seu único candidato presidencial ao longo de sua trajetória em direção ao poder. Não deveria existir disputa em torno disso, pois trata-se apenas de uma constatação de fato. Em nenhuma outra área das políticas governamentais a identidade entre o partido e o governo é tão ampla e a interface tão colada ao “modelo original” quanto na política externa: inclinações, preferências, discursos, ações, tudo isso reflete, com razoável identidade de propósitos, aquilo que escreviam e argumentavam os líderes do PT quando se encontravam na oposição. Seria natural que, uma vez no poder, se dispusessem a colocar em prática suas idéias. É, aparentemente, o que está sendo feito, com algumas adaptações de estilo e de forma dadas pelo tratamento técnico que cada dossiê recebe dos profissionais da diplomacia.
O que poderá ser abordado, portanto, na campanha eleitoral, é se as posições do PT e do governo Lula, em matéria de política externa, terão ou não correspondido às percepções e necessidades do país, tal como percebido ou refletido pelos demais líderes políticos, pelos especialistas da área e pelos agentes que normalmente constituem grupos com interesse direto na “economia” da política externa, com destaque para os setores produtivos e exportadores. À diferença de tempos passados, as plataformas de governo de cada um dos candidatos, que deverão circular a partir de julho e agosto de 2006, tenderão a reservar espaço maior do que o normal aos principais itens da agenda internacional do Brasil. Nesses documentos, e nos debates que se seguirão, algumas simplificações serão inevitáveis, dada a natureza do debate eleitoral, mas é de se supor que os especialistas mais conhecidos nesta área – alguns dos quais figuram na literatura compilada a esse respeito, disponível no link bibliográfico, in fine) – saberão aprofundar as principais questões de interesse público, relevantes para um debate bem informado sobre essa problemática agora central na definição das políticas públicas do Brasil.
Para saber mais:
ADB - Associação dos Diplomatas Brasileiros. “A partir da hipótese de ser eleito Presidente da República, qual é a sua visão do que será o Brasil e sua inserção no mundo em dez anos?” (resposta do candidato Lula), boletim ADB. Brasília: ano II, n.11, março 1994, p. 8-9.
-------- . “Uma política externa para o fim do século” (resposta do candidato Fernando Henrique Cardoso), boletim ADB, ano II, n. 14, junho 1994, p. 14-16.
-------- . “A inserção do Brasil na economia internacional” (resposta do candidato Leonel Brizola), boletim ADB, ano II, n. 14, junho 1994, p. 20-21.
-------- . “A inserção do Brasil na comunidade internacional” (resposta do candidato Orestes Quércia), boletim ADB, ano II, n. 15, julho de 1994, p. 8-9.
-------- . “Os candidatos a presidente da República e a política externa”, ADB, ano X, n. 41, julho-setembro 2002, p. 18-23.
Almeida, Paulo Roberto de: “A política externa nas campanhas presidenciais, de 1989 a 2002, e a diplomacia do governo Lula”, in Relações internacionais e Política externa do Brasil. 2ª ed.; Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 255-308.
-------- . “A política externa nas campanhas eleitorais brasileiras: a experiência dos escrutínios presidenciais de 1989, de 1994 e de 1998”, Revista Internacional de Estudos Políticos, Rio de Janeiro: UERJ, v. 1, n. 2, agosto 1999, p. 253-286.
-------- . “A Política da Política Externa: os partidos políticos nas relações internacionais do Brasil, 1930-1990”, in José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990), IV vol.: Prioridades, Atores e Políticas. São Paulo: Annablume-Nupri/USP, 2000, p. 381-447.
-------.“Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: IBRI, ano 47, nº 1, 2004, p. 162-184; disponível no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1260PExtLula.pdf.
-------. “Diplomacia presidencial: cronologia de viagens e visitas, 2002-2006”, disponível em formato html no link: http://textospra.blogspot.com/2006/04/68-diplomacia-presidencia-viagens-e.html#links e, em formato pdf, no link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1584ViagVisitLula02a06.pdf.
-------. “Uma bibliografia preliminar sobre a diplomacia do Governo Lula: uma classificação tentativa com base na literatura disponível”, disponível no link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1587BiblioDiploGovLula.pdf.
Paulo Roberto de Almeida, Brasília, 24 de abril de 2006
pralmeida@mac.com - www.pralmeida.org
http://diplomatizando.blogspot.com/
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
sexta-feira, 9 de julho de 2010
Politica Externa Brasileira: um outro questionario de 2004 (OMC, etc)
Mais um questionário de estudante...
Política Externa no Governo Lula
Paulo Roberto de Almeida
1. Qual sua visão sobre a OMC de 2000 até os dias atuais?
Em 2000, a OMC, que já tinha completado cinco anos de existência, tinha sofrido um revés, com o fracasso da conferência ministerial de Seattle, nos EUA, em novembro de 1999. Esse fracasso, assim como outros percalços que ela possa ter tido nesse periodo de dez anos desde sua inauguração, não se deve propriamente à OMC, e sim ao aspecto político do comportamento dos países membros. Com efeito, a organização não pode, ela mesma, determinar suas orientações e ênfases em matéria de liberalização do comércio internacional e de criação, consolidação e respeito das normas relativas ao sistema multilateral de comércio, como é o seu mandato constitutivo. Para isso, ela depende da cooperação e da colaboração dos próprios países membros, que têm a faculdade de fazer avançar ou deixar paralisados os trabalhos que a OMC conduz, seja na administração dos acordos existentes, seja na negociação e implementação de novos acordos. Se os países membros são pouco cooperativos, seu trabalho ficará ipso facto paralisado. Se eles decidem avançar, ela consegue, então cumprir seu mandato e seus ideais.
Em todo caso, minha visão sobre a OMC é eminentemente positiva, pois ela consegue, ainda que a duras penas, fazer avançar, mesmo modesta e lentamente, a causa da liberalização do comércio internacional. Já em novembro de 2001, por exemplo, ela conseguir fazer aprovar na ministerial de Doha, um mandato para a atual rodada de negociações, que incluia a discussão sobre alguns dos temas mais importantes, e difíceis, do sistema multilateral de comércio, como podem ser os das práticas de subvenção à produção e exportação de produtos agrícolas, ademais da continuidade do trabalho em matéria de serviços, anti-dumping, investimentos e outros mais.
A ministerial de Cancun, no México, em setembro de 2003, foi um fracasso relativo, nãoa tanto devido ao capítulo agrícola – no qual o Brasil atuou de modo inteligente, ao constituir o atual G-20, de países que se opõem ao protecionismo e ao subvencionismo agrícolas –, mas mais devido a problemas em outras áreas, como os chamados novos temas, ou a agenda de Cingapura (investimentos, propriedade intelectual etc).
Nos próximos meses, isto é, no que resta de 2005 até a conferência ministerial de Hong-Kong, em novembro, a OMC tem pela frente o desafio de fazer avançar as negociações para completar a rodada Doha. Não acredito que haverá tempo hábil para finalizar todos os capitulos da negociação, e como sempre ocorrerá um mini-drama, nas vésperas da cúpula, e provavelmente durante a própria, alguns progressos serão feitos, a duras penas, mas o exercício não estará obviamente concluído. Provavelmente se chegará, em meados de 2006 ou mais provavelmente ao início de 2007, a algum resultado sob a forma de acordos complementares de liberalização em algumas áreas (como agricultura, mas ainda assim parcial e insatisfatório do nosso ponto de vista), e de estabelecimento de normas tentativas em outras áreas. Os países não mudarão muito o seu comportamento obstrucionista, o que é obviamente uma pena, mas é compreensível do ponto de vista político, tendo em vista o quadro habitual nesse gênero de diplomacia.
2. Qual sua opinião sobre a renovação do acordo brasileiro com o FMI e quais as conseqüências que este acordo poderia trazer para o Brasil?
O governo brasileiro, justamente, depois de quatro acordos sucessivos, em 1998, 2001, 2002 e 2003, decidiu, em março de 2005, não renovar, ou não negociar um novo acordo com o FMI, ficando portanto livre das condicionalidades associadas aos acordos precedentes (geralmente relativas ao atingimento de metas fiscais, como o superávit primário no orçamento). Não tenho certeza se teria sido melhor renovar o acordo existente, ou se, como decidido, não extendê-lo ou negociar um novo. Ambas as soluções têm suas vantagens e desvantagens. No caso da existência de acordo, trata-se de uma garantia de linha de crédito em caso de necessidade, como uma nova crise financeira internacional ou uma deterioração sensível das contas externas que colocasse em risco nossa capacidade de pagamento das obrigações externas (juros da dívida, amortização dos empréstimos contraídos, transferências de divisas por pagamento de fatores e outras saídas de capitais).
Por outro lado, as contas externas do Brasil estão relativamente em ordem atualmente, com superávit comercial amplo, o que permite cobrir o déficit crônico dos serviços (e portanto das transações correntes) e outras saídas de capital. Os investimentos diretos estrangeiros também estão sendo retomados, o que é uma garantia adicional. Não havia, assim, necessidade, stricto sensu, de renovação do acordo. Mas, o Brasil ainda possui algumas fragilidades, internas e externas, como a grande dívida pública e a existência de déficit nominal no orçamento, mesmo com acúmulo de superávits primários (que não chegam, entretanto, a cobrir os pagamentos de juros da dívida pública).
Em síntese, um acordo com o FMI pode representar a garantia de saldo disponível, em caso de necessidade, e sobretudo um aval sobre a qualidade das políticas econômicas, mas ele também representa uma espécie de sinal de alerta sobre a fragilidade de nossas contas externas. Em última instância, nós mesmos é que devemos realizar esforços para colocar as contas públicas, sobretudo as internas, em condições de sustentabilidade.
3. Qual o seu posicionamento a respeito da política Externa do Brasil com o atual Presidente?
Trata-se, como o próprio governo proclama, de uma política ativa, de uma diplomacia altiva. Apenas não tenho certeza de que todo esse ativismo se dirige para o lado correto, pois que existe, em substituição à antiga “diplomacia presidencial” do período FHC, uma espécie de “diplomacia partidária”, que mobiliza todas as crenças, valores e princípios de política externa do PT, que não necessariamente tem o melhor julgamento da realidade ou que não necessariamente pratica a melhor política externa de que o Brasil precisa.
Essa política externa “partidária” é feita de um anti-imperialismo instintivo, como corresponde a um partido esquerdista e ainda teoricamente socialista como o PT, de um preconceito contra a globalização e o capitalismo financeiro – como se o PT e mesmo o Brasil tivesse o poder de mudar certos processos existentes no mundo atual – e feita de muitas ilusões quanto à liderança, pelo Brasil, de outros países em desenvolvimento, sobretudo na região mas também no chamado Terceiro Mundo, objetivando mudar o mundo, a região e o próprio Brasil.
O PT e este governo mantêm certas ilusões quanto à mudança no “eixo do poder mundial” e na “geografia comercial do mundo”, como várias vezes proclamado. Para isso, o governo colocou dificuldades em algumas negociações comerciais, sob o pretexto de preservar “espaços nacionais para políticas de desenvolvimento”, que não se sabe bem quais sejam (mas que representam a continuidade do velho estatismo econômico, que já conhecemos tão bem). Não tenho certeza de que essa política feita de ativismo no mundo em desenvolvimento possa representar adequadamente os interesses de uma economia avançada e diversificada como é hoje a brasileira.
4.Comparando a política e o andamento do Brasil com FHC e agora, com Lula, o que o senhor acha que se está levando mais em consideração? Prevalece ainda o pensamento de esquerda e de direita?
Certamente, prevalece, infelizmente, esse maniqueismo de esquerda e direita, o que diga-se de passagem nunca existiu muito dentro do Itamaraty. Pode-se dizer que, em certo sentido, esse pensamento foi introduzido agora, a partir de fora, com a assunção do PT a uma posição predominante na determinação das principais linhas da política externa, o que realmente é uma pena, pois diplomacia ideológica nunca combina bem com o interesse nacional.
No mais, creio a que a diplomacia brasileira tem mais traços de continuidade do que de ruptura, que se exerce mais no estilo do que na substância. Elaborei um trabalho no qual faço uma comparação das duas diplomacias, justamente, cuja referência é: “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, publicado na revista Achegas (Rio de Janeiro: nº 17, 12 de maio de 2004; ISSN 1677-8855; link: http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm), depois expandido para “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI, ano 47, nº 1, 2004, ISSN: 0034-7329; pp. 162-184).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, em 7 de maio de 2005
Política Externa no Governo Lula
Paulo Roberto de Almeida
1. Qual sua visão sobre a OMC de 2000 até os dias atuais?
Em 2000, a OMC, que já tinha completado cinco anos de existência, tinha sofrido um revés, com o fracasso da conferência ministerial de Seattle, nos EUA, em novembro de 1999. Esse fracasso, assim como outros percalços que ela possa ter tido nesse periodo de dez anos desde sua inauguração, não se deve propriamente à OMC, e sim ao aspecto político do comportamento dos países membros. Com efeito, a organização não pode, ela mesma, determinar suas orientações e ênfases em matéria de liberalização do comércio internacional e de criação, consolidação e respeito das normas relativas ao sistema multilateral de comércio, como é o seu mandato constitutivo. Para isso, ela depende da cooperação e da colaboração dos próprios países membros, que têm a faculdade de fazer avançar ou deixar paralisados os trabalhos que a OMC conduz, seja na administração dos acordos existentes, seja na negociação e implementação de novos acordos. Se os países membros são pouco cooperativos, seu trabalho ficará ipso facto paralisado. Se eles decidem avançar, ela consegue, então cumprir seu mandato e seus ideais.
Em todo caso, minha visão sobre a OMC é eminentemente positiva, pois ela consegue, ainda que a duras penas, fazer avançar, mesmo modesta e lentamente, a causa da liberalização do comércio internacional. Já em novembro de 2001, por exemplo, ela conseguir fazer aprovar na ministerial de Doha, um mandato para a atual rodada de negociações, que incluia a discussão sobre alguns dos temas mais importantes, e difíceis, do sistema multilateral de comércio, como podem ser os das práticas de subvenção à produção e exportação de produtos agrícolas, ademais da continuidade do trabalho em matéria de serviços, anti-dumping, investimentos e outros mais.
A ministerial de Cancun, no México, em setembro de 2003, foi um fracasso relativo, nãoa tanto devido ao capítulo agrícola – no qual o Brasil atuou de modo inteligente, ao constituir o atual G-20, de países que se opõem ao protecionismo e ao subvencionismo agrícolas –, mas mais devido a problemas em outras áreas, como os chamados novos temas, ou a agenda de Cingapura (investimentos, propriedade intelectual etc).
Nos próximos meses, isto é, no que resta de 2005 até a conferência ministerial de Hong-Kong, em novembro, a OMC tem pela frente o desafio de fazer avançar as negociações para completar a rodada Doha. Não acredito que haverá tempo hábil para finalizar todos os capitulos da negociação, e como sempre ocorrerá um mini-drama, nas vésperas da cúpula, e provavelmente durante a própria, alguns progressos serão feitos, a duras penas, mas o exercício não estará obviamente concluído. Provavelmente se chegará, em meados de 2006 ou mais provavelmente ao início de 2007, a algum resultado sob a forma de acordos complementares de liberalização em algumas áreas (como agricultura, mas ainda assim parcial e insatisfatório do nosso ponto de vista), e de estabelecimento de normas tentativas em outras áreas. Os países não mudarão muito o seu comportamento obstrucionista, o que é obviamente uma pena, mas é compreensível do ponto de vista político, tendo em vista o quadro habitual nesse gênero de diplomacia.
2. Qual sua opinião sobre a renovação do acordo brasileiro com o FMI e quais as conseqüências que este acordo poderia trazer para o Brasil?
O governo brasileiro, justamente, depois de quatro acordos sucessivos, em 1998, 2001, 2002 e 2003, decidiu, em março de 2005, não renovar, ou não negociar um novo acordo com o FMI, ficando portanto livre das condicionalidades associadas aos acordos precedentes (geralmente relativas ao atingimento de metas fiscais, como o superávit primário no orçamento). Não tenho certeza se teria sido melhor renovar o acordo existente, ou se, como decidido, não extendê-lo ou negociar um novo. Ambas as soluções têm suas vantagens e desvantagens. No caso da existência de acordo, trata-se de uma garantia de linha de crédito em caso de necessidade, como uma nova crise financeira internacional ou uma deterioração sensível das contas externas que colocasse em risco nossa capacidade de pagamento das obrigações externas (juros da dívida, amortização dos empréstimos contraídos, transferências de divisas por pagamento de fatores e outras saídas de capitais).
Por outro lado, as contas externas do Brasil estão relativamente em ordem atualmente, com superávit comercial amplo, o que permite cobrir o déficit crônico dos serviços (e portanto das transações correntes) e outras saídas de capital. Os investimentos diretos estrangeiros também estão sendo retomados, o que é uma garantia adicional. Não havia, assim, necessidade, stricto sensu, de renovação do acordo. Mas, o Brasil ainda possui algumas fragilidades, internas e externas, como a grande dívida pública e a existência de déficit nominal no orçamento, mesmo com acúmulo de superávits primários (que não chegam, entretanto, a cobrir os pagamentos de juros da dívida pública).
Em síntese, um acordo com o FMI pode representar a garantia de saldo disponível, em caso de necessidade, e sobretudo um aval sobre a qualidade das políticas econômicas, mas ele também representa uma espécie de sinal de alerta sobre a fragilidade de nossas contas externas. Em última instância, nós mesmos é que devemos realizar esforços para colocar as contas públicas, sobretudo as internas, em condições de sustentabilidade.
3. Qual o seu posicionamento a respeito da política Externa do Brasil com o atual Presidente?
Trata-se, como o próprio governo proclama, de uma política ativa, de uma diplomacia altiva. Apenas não tenho certeza de que todo esse ativismo se dirige para o lado correto, pois que existe, em substituição à antiga “diplomacia presidencial” do período FHC, uma espécie de “diplomacia partidária”, que mobiliza todas as crenças, valores e princípios de política externa do PT, que não necessariamente tem o melhor julgamento da realidade ou que não necessariamente pratica a melhor política externa de que o Brasil precisa.
Essa política externa “partidária” é feita de um anti-imperialismo instintivo, como corresponde a um partido esquerdista e ainda teoricamente socialista como o PT, de um preconceito contra a globalização e o capitalismo financeiro – como se o PT e mesmo o Brasil tivesse o poder de mudar certos processos existentes no mundo atual – e feita de muitas ilusões quanto à liderança, pelo Brasil, de outros países em desenvolvimento, sobretudo na região mas também no chamado Terceiro Mundo, objetivando mudar o mundo, a região e o próprio Brasil.
O PT e este governo mantêm certas ilusões quanto à mudança no “eixo do poder mundial” e na “geografia comercial do mundo”, como várias vezes proclamado. Para isso, o governo colocou dificuldades em algumas negociações comerciais, sob o pretexto de preservar “espaços nacionais para políticas de desenvolvimento”, que não se sabe bem quais sejam (mas que representam a continuidade do velho estatismo econômico, que já conhecemos tão bem). Não tenho certeza de que essa política feita de ativismo no mundo em desenvolvimento possa representar adequadamente os interesses de uma economia avançada e diversificada como é hoje a brasileira.
4.Comparando a política e o andamento do Brasil com FHC e agora, com Lula, o que o senhor acha que se está levando mais em consideração? Prevalece ainda o pensamento de esquerda e de direita?
Certamente, prevalece, infelizmente, esse maniqueismo de esquerda e direita, o que diga-se de passagem nunca existiu muito dentro do Itamaraty. Pode-se dizer que, em certo sentido, esse pensamento foi introduzido agora, a partir de fora, com a assunção do PT a uma posição predominante na determinação das principais linhas da política externa, o que realmente é uma pena, pois diplomacia ideológica nunca combina bem com o interesse nacional.
No mais, creio a que a diplomacia brasileira tem mais traços de continuidade do que de ruptura, que se exerce mais no estilo do que na substância. Elaborei um trabalho no qual faço uma comparação das duas diplomacias, justamente, cuja referência é: “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, publicado na revista Achegas (Rio de Janeiro: nº 17, 12 de maio de 2004; ISSN 1677-8855; link: http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm), depois expandido para “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI, ano 47, nº 1, 2004, ISSN: 0034-7329; pp. 162-184).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, em 7 de maio de 2005
Politica Externa Brasileira: um questionario de maio de 2004
Respondendo a questões de um universitário (respostas nunca divulgadas, desde 2004_
Política externa e Interesse Nacional
Questionário (20 de maio de 2004)
1- Qual é o interesse nacional do Brasil hoje? Há um consenso?
PRA: Não há consenso real sobre o interesse nacional do Brasil, hoje, no passado e provavelmente no futuro, a não ser num nível muito alto de generalidade, em torno dos seguintes elementos possíveis: bem estar da população, com menor desigualdade na distribuição de renda, desenvolvimento sócio-econômico da Nação, segurança e saúde para o maior número possível, capacitação tecnológica do País, inserção econômica internacional, participação nos processos decisórios no plano mundial.
A partir daí, não há mais entendimento possível entre as diversas forças políticas e sociais sobre os meios e formas de como alcançar aquelas metas desejáveis para o país e para o seu povo. Eu colocaria o interesse nacional brasileiro sobretudo na educação de qualidade para o maior número possível de cidadãos, pois entendo tratar-se do problema básico que torna a solução de todos os outos mais difícil.
2- Qual a importância das relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos?
PRA: Fundamental, sem dúvida, como tem sido desde um século aproximadamente, muito embora o Brasil tenha interesse em desenvolver o mais possível suas relações econômicas e comerciais com o maior número de países. Como primeira potência comercial, tecnológica e financeira, os EUA ainda são, e continuarão a ser pelo futuro previsível, a principal fonte de recursos financeiros, de inovações tecnológicas e o maior provedor de oportunidades de mercado para a economia brasileira.
3- Quais são os temas sensíveis do Brasil com relação aos Estados Unidos no âmbito do comércio?
PRA: Do lado americano, o protecionismo setorial (suco de laranja, siderúrgicos, produtos agrícolas, por exemplo), as medidas abusivas de defesa comercial e sobretudo práticas deletérias de subvencionismo agrícola (medidas de apoio interno e subvenções às exportações) e de retorsão comercial. Do lado brasileiro, um protecionismo ainda mais extenso, uma timidez na abertura aos capitais de risco americanos e uma atitude em geral pouco amistosa que se traduz no cerceamento americano a certas necessidades brasileiras em tecnologias sensíveis (sobretudo na área nuclear).
4- Quais são os elementos que interferem no comportamento do Brasil com relação aos Estados Unidos no que diz respeito ao comércio?
5- Nos dias atuais, os Estados Unidos continuam sendo uma parceria estratégica importante para a política externa brasileira?
PRA: Sem dúvida, mas a definição de estratégica tende a variar de acordo com o governo, aqui e nos EUA, alguns mais abertos e reciptivos, outros mais fechados. Por outro lado, cada um dos países ocupa uma posição específica no contexto regional e mundial, do que derivam percepções diferentes sobre a realidade internacional, sobre as necessidades prioritárias de cada um (para o Brasil, desenvolvimento, por exemplo, para os EUA, segurança) e sobre o papel que cada um deve desempenhar nas instâncias multilaterais e regionais.
6- Como é o Brasil hoje sem ALCA?
PRA: Um país com um baixo coeficiente de abertura externa, isto é, pequena participação do comércio exterior na formação do PIB, relativaente protecionista e relutante em acolher investimentos estrangeiros, com temor que isso afete sua soberania ou desnacionalize a sua economia. Sobretudo introvertido e incapaz de resolver graves problemas de ordem macro ou microeconômica (insuficiências na infra-estrutura, por exemplo, ou ainda um sistema tributário pouco propenso a ganhos de produtividade e de competitividade para as empresas, que são penalizadas por deficiências regulatórias e sobretudo pesada carga fiscal), sem um desafio externo que o conduza a empreender essas reformas necessárias, o que poderia ser representado pela Alca.
7- O que mudaria no país, caso a ALCA acontecesse?
PRA: Muita coisa mudaria, algumas positivas absolutamente (como a maior abertura comercial e maior inserção no mundo), outras representando desafios a vencer, como o baixo nível de capitalização das empresas, o chamado “custo Brasil” e outros problemas que poderiam ser potencializados pela Alca.
As maiores mudanças seriam contudo sobretudo de ordem mental, já que o Brasil e os brasileiros continuam a olhar os Estados Unidos com desconfiança, pensando em “hegemonia” quando os americanos pensam essencialmente em negócios.
8- O que significa a ALCA para o Brasil e o que significa para os Estados Unidos?
PRA: Para nós um grande desafio, para eles apenas mais uma conquista comercial no sentido da abertura de outros países aos investimentos de suas empresas. A Alca pode representar metade da nossa interface econômica externa, para os EUA menos do que 10% (embora importante pois se trata de uma das poucas áreas no mundo onde eles fariam saldos superavitários na relação comercial).
9- Quais seriam as modificações na política comercial com os Estados Unidos caso a ALCA aconteça?
PRA: Eles prefeririam que nada mude, nem nas leis comerciais, nem nos regulamentos internos. Para o Brasil seria essencial que os EUA desmantelassem o seu arsenal protecionista e subvencionista na área agrícola, em alguns serviços e sobretudo que eles reformulassem a legislação de defesa comercial para não ocorrer os casos de anti-dumping e salvaguardas abusivos e por vezes ilegais. Duvido, porém, que o Congresso americano esteja propenso a dar estes passos importantes no desarme comercial.
9- Quais foram as principais mudanças que ocorreram da passagem do governo FHC para o governo Lula com relação à política comercial com os Estados Unidos?
PRA: Muito poucas, praticamente nenhuma, apenas uma atitude brasileira ainda menos propensa à abertura ao comércio e aos investimentos. Ocorre, por outro lado, uma certa má vontade em relação aos Estados Unidos por parte da atual administração, revelada, por exemplo, no fichamento de americanos e na tentativa de expulsão do correspondente americano do New York Times.
10- Houve mudanças na agenda e nos objetivos do Brasil com o novo governo?
PRA: Sim, houve, mas menos importantes do que se acredita e do que se proclama. As mudanças são bem mais retóricas do que efetivas. Em meu trabalho encaminhado em anexo, “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula” eu tento mapear as diferenças reais de postura entre os dois governos.
Feito em Brasília, em 20 de maio de 2004
Paulo Roberto de Almeida
Política externa e Interesse Nacional
Questionário (20 de maio de 2004)
1- Qual é o interesse nacional do Brasil hoje? Há um consenso?
PRA: Não há consenso real sobre o interesse nacional do Brasil, hoje, no passado e provavelmente no futuro, a não ser num nível muito alto de generalidade, em torno dos seguintes elementos possíveis: bem estar da população, com menor desigualdade na distribuição de renda, desenvolvimento sócio-econômico da Nação, segurança e saúde para o maior número possível, capacitação tecnológica do País, inserção econômica internacional, participação nos processos decisórios no plano mundial.
A partir daí, não há mais entendimento possível entre as diversas forças políticas e sociais sobre os meios e formas de como alcançar aquelas metas desejáveis para o país e para o seu povo. Eu colocaria o interesse nacional brasileiro sobretudo na educação de qualidade para o maior número possível de cidadãos, pois entendo tratar-se do problema básico que torna a solução de todos os outos mais difícil.
2- Qual a importância das relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos?
PRA: Fundamental, sem dúvida, como tem sido desde um século aproximadamente, muito embora o Brasil tenha interesse em desenvolver o mais possível suas relações econômicas e comerciais com o maior número de países. Como primeira potência comercial, tecnológica e financeira, os EUA ainda são, e continuarão a ser pelo futuro previsível, a principal fonte de recursos financeiros, de inovações tecnológicas e o maior provedor de oportunidades de mercado para a economia brasileira.
3- Quais são os temas sensíveis do Brasil com relação aos Estados Unidos no âmbito do comércio?
PRA: Do lado americano, o protecionismo setorial (suco de laranja, siderúrgicos, produtos agrícolas, por exemplo), as medidas abusivas de defesa comercial e sobretudo práticas deletérias de subvencionismo agrícola (medidas de apoio interno e subvenções às exportações) e de retorsão comercial. Do lado brasileiro, um protecionismo ainda mais extenso, uma timidez na abertura aos capitais de risco americanos e uma atitude em geral pouco amistosa que se traduz no cerceamento americano a certas necessidades brasileiras em tecnologias sensíveis (sobretudo na área nuclear).
4- Quais são os elementos que interferem no comportamento do Brasil com relação aos Estados Unidos no que diz respeito ao comércio?
5- Nos dias atuais, os Estados Unidos continuam sendo uma parceria estratégica importante para a política externa brasileira?
PRA: Sem dúvida, mas a definição de estratégica tende a variar de acordo com o governo, aqui e nos EUA, alguns mais abertos e reciptivos, outros mais fechados. Por outro lado, cada um dos países ocupa uma posição específica no contexto regional e mundial, do que derivam percepções diferentes sobre a realidade internacional, sobre as necessidades prioritárias de cada um (para o Brasil, desenvolvimento, por exemplo, para os EUA, segurança) e sobre o papel que cada um deve desempenhar nas instâncias multilaterais e regionais.
6- Como é o Brasil hoje sem ALCA?
PRA: Um país com um baixo coeficiente de abertura externa, isto é, pequena participação do comércio exterior na formação do PIB, relativaente protecionista e relutante em acolher investimentos estrangeiros, com temor que isso afete sua soberania ou desnacionalize a sua economia. Sobretudo introvertido e incapaz de resolver graves problemas de ordem macro ou microeconômica (insuficiências na infra-estrutura, por exemplo, ou ainda um sistema tributário pouco propenso a ganhos de produtividade e de competitividade para as empresas, que são penalizadas por deficiências regulatórias e sobretudo pesada carga fiscal), sem um desafio externo que o conduza a empreender essas reformas necessárias, o que poderia ser representado pela Alca.
7- O que mudaria no país, caso a ALCA acontecesse?
PRA: Muita coisa mudaria, algumas positivas absolutamente (como a maior abertura comercial e maior inserção no mundo), outras representando desafios a vencer, como o baixo nível de capitalização das empresas, o chamado “custo Brasil” e outros problemas que poderiam ser potencializados pela Alca.
As maiores mudanças seriam contudo sobretudo de ordem mental, já que o Brasil e os brasileiros continuam a olhar os Estados Unidos com desconfiança, pensando em “hegemonia” quando os americanos pensam essencialmente em negócios.
8- O que significa a ALCA para o Brasil e o que significa para os Estados Unidos?
PRA: Para nós um grande desafio, para eles apenas mais uma conquista comercial no sentido da abertura de outros países aos investimentos de suas empresas. A Alca pode representar metade da nossa interface econômica externa, para os EUA menos do que 10% (embora importante pois se trata de uma das poucas áreas no mundo onde eles fariam saldos superavitários na relação comercial).
9- Quais seriam as modificações na política comercial com os Estados Unidos caso a ALCA aconteça?
PRA: Eles prefeririam que nada mude, nem nas leis comerciais, nem nos regulamentos internos. Para o Brasil seria essencial que os EUA desmantelassem o seu arsenal protecionista e subvencionista na área agrícola, em alguns serviços e sobretudo que eles reformulassem a legislação de defesa comercial para não ocorrer os casos de anti-dumping e salvaguardas abusivos e por vezes ilegais. Duvido, porém, que o Congresso americano esteja propenso a dar estes passos importantes no desarme comercial.
9- Quais foram as principais mudanças que ocorreram da passagem do governo FHC para o governo Lula com relação à política comercial com os Estados Unidos?
PRA: Muito poucas, praticamente nenhuma, apenas uma atitude brasileira ainda menos propensa à abertura ao comércio e aos investimentos. Ocorre, por outro lado, uma certa má vontade em relação aos Estados Unidos por parte da atual administração, revelada, por exemplo, no fichamento de americanos e na tentativa de expulsão do correspondente americano do New York Times.
10- Houve mudanças na agenda e nos objetivos do Brasil com o novo governo?
PRA: Sim, houve, mas menos importantes do que se acredita e do que se proclama. As mudanças são bem mais retóricas do que efetivas. Em meu trabalho encaminhado em anexo, “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula” eu tento mapear as diferenças reais de postura entre os dois governos.
Feito em Brasília, em 20 de maio de 2004
Paulo Roberto de Almeida
Politica Externa Brasileira: uma analise de janeiro de 2004
Como se trata de um texto jamais publicado, e que foi elaborado por um jornalista então empenhado numa nova revista (que nunca veio a ser publicada), creio que posso divulgar esse texto, que a despeito de ter mais de 4 anos de elaboração, pode ainda apresentar alguns elementos válidos ainda hoje (embora algumas referências tenham a ver com aspectos da realidade daquela época, como o fichamento discriminatório de americanos).
Política Externa Ativa e Altiva: algumas questões
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por um jornalista
Brasília, 25 de janeiro de 2004
1) Quais os principais pontos que diferenciam a política externa atual da do governo anterior?
Sem dúvida alguma, do ponto de vista da forma, um ativismo exemplar, representado por um intenso programa de diplomacia presidencial, complementado por um ainda mais ativo circuito de contatos, encontros, viagens de trabalho e conversações a cargo do chanceler e, de maneira algo inédita para os padrões do Itamaraty, do próprio Secretário-Geral das Relações Exteriores, funcionário normalmente (e tradicionalmente) dedicado às lides administrativas e aos assuntos de “economia doméstica” da Casa. Tanto o ministro como seu principal auxiliar têm conduzido uma das fase mais dinâmicas da diplomacia brasileira em qualquer época histórica.
Do ponto de vista do conteúdo, uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de busca de alianças privilegiadas no Sul, com ênfase especial no processo de integração da América do Sul e no reforço do Mercosul. Tudo isso não deveria surpreender, pois que figura nos documentos do partido hoje majoritário há praticamente vinte anos, por vezes nos mesmos termos e estilo, até na terminologia, coincidindo, portanto, com a política externa efetivamente praticada atualmente.
No que se refere à agenda diplomática propriamente dita, pode ser ressaltada a postura crítica em relação à globalização e à abertura comercial, com um maior empenho na reafirmação das posições tradicionais do Brasil em matéria de negociações comerciais (busca de acesso aos mercados desenvolvidos, com a manutenção dos mecanismos que favorecem países em desenvolvimento, não comprometimento com demandas de liberalização que possam representar comprometimento da capacidade nacional de estabelecer políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento e de capacitação tecnológica), bem como uma definição contrária – também tradicional no partido agora no poder – à chamada “fragilidade financeira externa”, com a implementação consequente de políticas que reafirmem a necessidade de saldo comercial e a não dependência de capitais externos nas relações econômicas internacionais.
No plano político, é evidente o projeto de reforçar a capacidade de “intervenção” do Brasil no mundo, a assunção declarada do desejo de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança reformado e a oposição aos unilateralismos ou unipolarismos, com a defesa ativa do multilateralismo e de um maior equilíbrio nas relações internacionais. No plano econômico, trata-se de buscar maior cooperação e integração com países similares (outras potências médias) e vizinhos regionais.
2) O que se pode esperar concretamente dessa mudança?
Ainda é prematuro para formular possíveis consequências dessas mudanças de estilo e mesmo de conteúdo na política externa governamental, mas a intenção proclamada é a de assegurar maior presença do Brasil no mundo, garantir-lhe uma cadeira permanente na ONU e tornar sua voz ouvida nos grandes problemas da comunidade internacional. Uma busca mais afirmada da liderança regional pode também resultar do ativismo regional, mas nesse particular a liderança não parte apenas do desejo que quem lidera, mas da aceitação consensual dos liderados presumidos. Este ponto ainda não ficou muito claro na relação com a Argentina, que sempre declarou e entendeu sua relação com o Brasil num plano igualitário, e não assimétrico.
3) Do ponto de vista regional, qual a principal mudança? O sr. acha que a integração sul-americana é um dos grandes diferenciais dessa política do governo Lula? Como vamos implementar a integração com tanta falta de recursos financeiros dos países sul-americanos?
O Mercosul passou a ser buscado talvez não mais como um meio para realizar objetivos mais gerais de política externa ou de “economia política”, mas aparentemente como um fim em si mesmo, dispondo-se o Brasil a assumir os custos e responsabilidades dessa ênfase acrescida no papel do Mercosul. A integração sul-americana já fazia parte da agenda diplomática anterior, mas ela agora foi particularmente reforçada, com o direto envolvimento de um de seus principais patrocinadores, o SG em pessoa. Passou-se também a dar importância aos aspectos não diretamente comerciais da integração, como a coordenação de políticas macroeconômicas (inclusive com o projeto de uma futura moeda comum) e as vertentes social e política (Parlamento comum, por voto direito), o que pode representar novos investimentos num edifício integracionista ainda carente de alguns alicerces comerciais.
A falta de recursos financeiros pode ser um impedimento para a realização de muitas iniciativas vinculadas à integração física, mas o mais importante parece ser a fragilidade econômica atual dos países membros, o que torna difícil a derrubada das últimas barreiras internas à consecução da zona de livre comércio, ao acabamento da união aduaneira e à implementação do mercado comum. As assimetrias internas teriam de ser superadas mediante programas compensatórios, o que também é difícil numa conjuntura de fragilidade econômica como a que vivem os países membros.
4) Em termos geoestratégicos, o que muda quando o Brasil se coloca, no cenário internacional, com pleitos de país que quer ocupar um lugar ao sol? (Isso em termos de ONU, OMC e também no conjunto das relações internacionais)
Se aceita e factível de ser implementada essa mudança de postura, o Brasil passa a ser mais ouvido, mas isto tem correspondência na necessidade de assunção de maiores responsabilidades, em termos de segurança, assistência e cooperação ao desenvolvimento, o que obviamente implica em custos financeiros e capacidade militar.
5) O estreitamento das relações com a África do Sul pode significar o que, em termos de Atlântico Sul (ponto de vista geoestratégico, incluindo questões no campo da defesa)) e da reaproximação Brasil-África?
Pode-se, a termo, pensar na conclusão de uma aliança mais estreita para a implementação da zona de paz e cooperação no Atlântico Sul, tanto pelo lado da defesa, como pelo lado da cooperação. Dificilmente, contudo, se logrará um acordo com as grandes potências para a renúncia de passagem, em águas tão importantes, de barcos e submarinos nuclearmente armados. De toda forma a cooperação estratégica faria com que os dois países (e outros da região) se tornassem menos dependentes, em termos de equipamentos e posicionamento estratégico, de uma das grandes potências.
6) E mais longe, o que se pode esperar do bloco Brasil, África do Sul e Índia (e, mais tarde, a possível incorporação de China e Rússia)?
Difícil dizer, pois estes países estão desigualmente inseridos no grande jogo estratégico internacional, com agendas regionais e mundiais próprias, que podem coincidir em alguns pontos com a do Brasil atual (o não-hegemonismo, por exemplo), mas não necessariamente em todos. Brasil e África do Sul não são potências nucleares e não têm, a rigor, pendências com vizinhos ou ameaças estratégicas perceptíveis, o que é diferente dos “perigos” (supostos ou reais) que ameaçam a segurança dos três outros. Não creio, assim, que se possa falar em “bloco”, mas tão simplesmente em diálogo e cooperação para a busca de objetivos comuns, o que se alcança em questões pontuais que não serão necessariamente as mesmas para todos ao mesmo tempo. De toda forma, fica difícil falar in abstracto, sem conhecer as conversações que vêm sendo mantidas com esses países, em torno, hipoteticamente, de alguma agenda comum. Se ela existe, não foi ainda explicitada, além de algumas questões gerais que foram destacadas no período recente: intensificação dos intercâmbios e da cooperação, acordos de liberalização comercial, apoio mútuo em alguns pontos da agenda multilateral, etc.
7) Nesse cenário, qual a força do Brasil e do Mercosul nas negociações da Alca? O que, de fato, mudou nas negociações hemisféricas a partir da ascensão do governo Lula?
A postura deixou o lado das negociações meramente “técnicas” para enfatizar o chamado interesse nacional, com uma visão mais crítica das vantagens e desvantagens da liberalização comercial numa situação relativamente assimétrica com o império. Mas também se deixou a defesa do multilateralismo e do “entendimento único”, que eram dois pontos enfatizados pelo Brasil anteriormente, para uma escolha pela geometria variável, pelo minilateralismo e pela liberalização à la carte, o que de certa forma é compreensível, tendo em vista a própria fragmentação e diferenciação das ofertas dos EUA no esquema da Alca. De certa forma, a Alca, devido à postura do Brasil, “aladizou-se”, com as vantagens e desvantagens desse tipo de arranjo ad hoc e parcial.
8) Cuba e Venezuela têm sido acusados pelos EUA de interferir no cenário regional e de tentar impulsionar movimentos de esquerda (casos da Bolívia, Peru e Equador) . O Brasil se alinha aos dois em vários campos mas tem outra visão dos problemas regionais. De que forma o Brasil pode conduzir a crise regional, conciliando suas relações com os EUA e com a Venezuela e Cuba?
O Brasil procura manter relações corretas com todos os países da região, inclusive com os EUA, busca a reintegração de Cuba ao concerto americano e gostaria de poder contibuir para a pacificação política e militar dos países vizinhos, sem dispor, por outro lado, de condições de intervenção (no bom sentido da palavra) para fazer com que tais objetivos se concretizem. Por outro lado, há uma desconfiança de princípio, em nossos meios militares, de que a atuação dos EUA busca assegurar a preservação de sua hegemonia e influência na região, o que de certa forma poderia limitar a capacidade de influência do Brasil. Não tenho condições de avaliar quais meios e instrumentos poderiam ser mobilizados pelo Brasil, ademais dos tradicionais da diplomacia, para “conduzir a crise regional”. Aliás, não existe “uma” crise regional, mas diversas crises, geralmente internas aos países, algumas remanescentes dos tempos de tratados de fronteiras, não necessariamente administráveis pelos mesmos métodos.
9) O sr. acha que o Brasil tem uma visão antiamericana ou está apenas defendendo seus interesses? Há casos concretos que demonstrem que o governo brasileiro não é antiamericano e implementa parceria com Washington?
O governo brasileiro não é anti-americano, embora haja uma nítida postura anti-americana em diversos, talvez em amplos, setores sociais da base política do partido atualmente no poder. Pesquisas de opinião revelam esse grau de desconfiança e de animosidade em certos meios, mesmo na ausência de qualquer ação “arrogante”, “prepotente” ou unilateralista por parte do império. Foi o que se viu, por exemplo, por ocasião dos ataques terroristas nos EUA, e mesmo atualmente, quando pessoas razoavelmente bem informadas, e supostamente capazes de emitir opiniões racionais em temas de política internacional, expressam a opinião de que os EUA de certa forma, pela sua política ou por atitudes, “fizeram por merecer” esses ataques, o que é obviamente inadmissível do ponto de vista dos direitos humanos e da ética.
O governo, por outro lado, deseja uma boa relação com os EUA, mas também busca uma política de afirmação concreta da defesa dos interesses nacionais, o que por vezes se manifesta de forma algo inusitada, como no caso do fichamento de turistas e visitantes americanos. Independentemente da legalidade da decisão, aliás questionável, de um juiz que manifestamente ultrapassou suas competências, pode-se interrogar sobre a base legal de uma determinação (a portaria do governo) não explícita, e não evidente, quanto à continuidade do fichamento de cidadãos dos EUA ingressando no território brasileiro, na ausência de uma norma administrativa a esse respeito – já que o princípio da reciprocidade requer um mínimo de formalidade jurídica para sua aplicação – e na ausência de uma finalidade expressa para tal tipo de medida.
Que a opinião pública seja majoritariamente a favor da medida, não implicaria, a rigor, que o governo adotasse medidas que apresentam ônus econômico real para as autoridades de fronteira, sem uma finalidade aparente, ou sem que o resultado seja incorporado a qualquer sistema legal de segurança nacional. Neste caso, o governo pode ter desejado atender mais à opinião pública do que alguma norma racional-legal, mas não o fez motivado por anti-americanismo, mas provavelmente pelo desejo de melhorar as condições de entrada e permanência de uma hoje imensa colônia brasileira nos EUA.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de janeiro de 2004
Política Externa Ativa e Altiva: algumas questões
Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por um jornalista
Brasília, 25 de janeiro de 2004
1) Quais os principais pontos que diferenciam a política externa atual da do governo anterior?
Sem dúvida alguma, do ponto de vista da forma, um ativismo exemplar, representado por um intenso programa de diplomacia presidencial, complementado por um ainda mais ativo circuito de contatos, encontros, viagens de trabalho e conversações a cargo do chanceler e, de maneira algo inédita para os padrões do Itamaraty, do próprio Secretário-Geral das Relações Exteriores, funcionário normalmente (e tradicionalmente) dedicado às lides administrativas e aos assuntos de “economia doméstica” da Casa. Tanto o ministro como seu principal auxiliar têm conduzido uma das fase mais dinâmicas da diplomacia brasileira em qualquer época histórica.
Do ponto de vista do conteúdo, uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de busca de alianças privilegiadas no Sul, com ênfase especial no processo de integração da América do Sul e no reforço do Mercosul. Tudo isso não deveria surpreender, pois que figura nos documentos do partido hoje majoritário há praticamente vinte anos, por vezes nos mesmos termos e estilo, até na terminologia, coincidindo, portanto, com a política externa efetivamente praticada atualmente.
No que se refere à agenda diplomática propriamente dita, pode ser ressaltada a postura crítica em relação à globalização e à abertura comercial, com um maior empenho na reafirmação das posições tradicionais do Brasil em matéria de negociações comerciais (busca de acesso aos mercados desenvolvidos, com a manutenção dos mecanismos que favorecem países em desenvolvimento, não comprometimento com demandas de liberalização que possam representar comprometimento da capacidade nacional de estabelecer políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento e de capacitação tecnológica), bem como uma definição contrária – também tradicional no partido agora no poder – à chamada “fragilidade financeira externa”, com a implementação consequente de políticas que reafirmem a necessidade de saldo comercial e a não dependência de capitais externos nas relações econômicas internacionais.
No plano político, é evidente o projeto de reforçar a capacidade de “intervenção” do Brasil no mundo, a assunção declarada do desejo de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança reformado e a oposição aos unilateralismos ou unipolarismos, com a defesa ativa do multilateralismo e de um maior equilíbrio nas relações internacionais. No plano econômico, trata-se de buscar maior cooperação e integração com países similares (outras potências médias) e vizinhos regionais.
2) O que se pode esperar concretamente dessa mudança?
Ainda é prematuro para formular possíveis consequências dessas mudanças de estilo e mesmo de conteúdo na política externa governamental, mas a intenção proclamada é a de assegurar maior presença do Brasil no mundo, garantir-lhe uma cadeira permanente na ONU e tornar sua voz ouvida nos grandes problemas da comunidade internacional. Uma busca mais afirmada da liderança regional pode também resultar do ativismo regional, mas nesse particular a liderança não parte apenas do desejo que quem lidera, mas da aceitação consensual dos liderados presumidos. Este ponto ainda não ficou muito claro na relação com a Argentina, que sempre declarou e entendeu sua relação com o Brasil num plano igualitário, e não assimétrico.
3) Do ponto de vista regional, qual a principal mudança? O sr. acha que a integração sul-americana é um dos grandes diferenciais dessa política do governo Lula? Como vamos implementar a integração com tanta falta de recursos financeiros dos países sul-americanos?
O Mercosul passou a ser buscado talvez não mais como um meio para realizar objetivos mais gerais de política externa ou de “economia política”, mas aparentemente como um fim em si mesmo, dispondo-se o Brasil a assumir os custos e responsabilidades dessa ênfase acrescida no papel do Mercosul. A integração sul-americana já fazia parte da agenda diplomática anterior, mas ela agora foi particularmente reforçada, com o direto envolvimento de um de seus principais patrocinadores, o SG em pessoa. Passou-se também a dar importância aos aspectos não diretamente comerciais da integração, como a coordenação de políticas macroeconômicas (inclusive com o projeto de uma futura moeda comum) e as vertentes social e política (Parlamento comum, por voto direito), o que pode representar novos investimentos num edifício integracionista ainda carente de alguns alicerces comerciais.
A falta de recursos financeiros pode ser um impedimento para a realização de muitas iniciativas vinculadas à integração física, mas o mais importante parece ser a fragilidade econômica atual dos países membros, o que torna difícil a derrubada das últimas barreiras internas à consecução da zona de livre comércio, ao acabamento da união aduaneira e à implementação do mercado comum. As assimetrias internas teriam de ser superadas mediante programas compensatórios, o que também é difícil numa conjuntura de fragilidade econômica como a que vivem os países membros.
4) Em termos geoestratégicos, o que muda quando o Brasil se coloca, no cenário internacional, com pleitos de país que quer ocupar um lugar ao sol? (Isso em termos de ONU, OMC e também no conjunto das relações internacionais)
Se aceita e factível de ser implementada essa mudança de postura, o Brasil passa a ser mais ouvido, mas isto tem correspondência na necessidade de assunção de maiores responsabilidades, em termos de segurança, assistência e cooperação ao desenvolvimento, o que obviamente implica em custos financeiros e capacidade militar.
5) O estreitamento das relações com a África do Sul pode significar o que, em termos de Atlântico Sul (ponto de vista geoestratégico, incluindo questões no campo da defesa)) e da reaproximação Brasil-África?
Pode-se, a termo, pensar na conclusão de uma aliança mais estreita para a implementação da zona de paz e cooperação no Atlântico Sul, tanto pelo lado da defesa, como pelo lado da cooperação. Dificilmente, contudo, se logrará um acordo com as grandes potências para a renúncia de passagem, em águas tão importantes, de barcos e submarinos nuclearmente armados. De toda forma a cooperação estratégica faria com que os dois países (e outros da região) se tornassem menos dependentes, em termos de equipamentos e posicionamento estratégico, de uma das grandes potências.
6) E mais longe, o que se pode esperar do bloco Brasil, África do Sul e Índia (e, mais tarde, a possível incorporação de China e Rússia)?
Difícil dizer, pois estes países estão desigualmente inseridos no grande jogo estratégico internacional, com agendas regionais e mundiais próprias, que podem coincidir em alguns pontos com a do Brasil atual (o não-hegemonismo, por exemplo), mas não necessariamente em todos. Brasil e África do Sul não são potências nucleares e não têm, a rigor, pendências com vizinhos ou ameaças estratégicas perceptíveis, o que é diferente dos “perigos” (supostos ou reais) que ameaçam a segurança dos três outros. Não creio, assim, que se possa falar em “bloco”, mas tão simplesmente em diálogo e cooperação para a busca de objetivos comuns, o que se alcança em questões pontuais que não serão necessariamente as mesmas para todos ao mesmo tempo. De toda forma, fica difícil falar in abstracto, sem conhecer as conversações que vêm sendo mantidas com esses países, em torno, hipoteticamente, de alguma agenda comum. Se ela existe, não foi ainda explicitada, além de algumas questões gerais que foram destacadas no período recente: intensificação dos intercâmbios e da cooperação, acordos de liberalização comercial, apoio mútuo em alguns pontos da agenda multilateral, etc.
7) Nesse cenário, qual a força do Brasil e do Mercosul nas negociações da Alca? O que, de fato, mudou nas negociações hemisféricas a partir da ascensão do governo Lula?
A postura deixou o lado das negociações meramente “técnicas” para enfatizar o chamado interesse nacional, com uma visão mais crítica das vantagens e desvantagens da liberalização comercial numa situação relativamente assimétrica com o império. Mas também se deixou a defesa do multilateralismo e do “entendimento único”, que eram dois pontos enfatizados pelo Brasil anteriormente, para uma escolha pela geometria variável, pelo minilateralismo e pela liberalização à la carte, o que de certa forma é compreensível, tendo em vista a própria fragmentação e diferenciação das ofertas dos EUA no esquema da Alca. De certa forma, a Alca, devido à postura do Brasil, “aladizou-se”, com as vantagens e desvantagens desse tipo de arranjo ad hoc e parcial.
8) Cuba e Venezuela têm sido acusados pelos EUA de interferir no cenário regional e de tentar impulsionar movimentos de esquerda (casos da Bolívia, Peru e Equador) . O Brasil se alinha aos dois em vários campos mas tem outra visão dos problemas regionais. De que forma o Brasil pode conduzir a crise regional, conciliando suas relações com os EUA e com a Venezuela e Cuba?
O Brasil procura manter relações corretas com todos os países da região, inclusive com os EUA, busca a reintegração de Cuba ao concerto americano e gostaria de poder contibuir para a pacificação política e militar dos países vizinhos, sem dispor, por outro lado, de condições de intervenção (no bom sentido da palavra) para fazer com que tais objetivos se concretizem. Por outro lado, há uma desconfiança de princípio, em nossos meios militares, de que a atuação dos EUA busca assegurar a preservação de sua hegemonia e influência na região, o que de certa forma poderia limitar a capacidade de influência do Brasil. Não tenho condições de avaliar quais meios e instrumentos poderiam ser mobilizados pelo Brasil, ademais dos tradicionais da diplomacia, para “conduzir a crise regional”. Aliás, não existe “uma” crise regional, mas diversas crises, geralmente internas aos países, algumas remanescentes dos tempos de tratados de fronteiras, não necessariamente administráveis pelos mesmos métodos.
9) O sr. acha que o Brasil tem uma visão antiamericana ou está apenas defendendo seus interesses? Há casos concretos que demonstrem que o governo brasileiro não é antiamericano e implementa parceria com Washington?
O governo brasileiro não é anti-americano, embora haja uma nítida postura anti-americana em diversos, talvez em amplos, setores sociais da base política do partido atualmente no poder. Pesquisas de opinião revelam esse grau de desconfiança e de animosidade em certos meios, mesmo na ausência de qualquer ação “arrogante”, “prepotente” ou unilateralista por parte do império. Foi o que se viu, por exemplo, por ocasião dos ataques terroristas nos EUA, e mesmo atualmente, quando pessoas razoavelmente bem informadas, e supostamente capazes de emitir opiniões racionais em temas de política internacional, expressam a opinião de que os EUA de certa forma, pela sua política ou por atitudes, “fizeram por merecer” esses ataques, o que é obviamente inadmissível do ponto de vista dos direitos humanos e da ética.
O governo, por outro lado, deseja uma boa relação com os EUA, mas também busca uma política de afirmação concreta da defesa dos interesses nacionais, o que por vezes se manifesta de forma algo inusitada, como no caso do fichamento de turistas e visitantes americanos. Independentemente da legalidade da decisão, aliás questionável, de um juiz que manifestamente ultrapassou suas competências, pode-se interrogar sobre a base legal de uma determinação (a portaria do governo) não explícita, e não evidente, quanto à continuidade do fichamento de cidadãos dos EUA ingressando no território brasileiro, na ausência de uma norma administrativa a esse respeito – já que o princípio da reciprocidade requer um mínimo de formalidade jurídica para sua aplicação – e na ausência de uma finalidade expressa para tal tipo de medida.
Que a opinião pública seja majoritariamente a favor da medida, não implicaria, a rigor, que o governo adotasse medidas que apresentam ônus econômico real para as autoridades de fronteira, sem uma finalidade aparente, ou sem que o resultado seja incorporado a qualquer sistema legal de segurança nacional. Neste caso, o governo pode ter desejado atender mais à opinião pública do que alguma norma racional-legal, mas não o fez motivado por anti-americanismo, mas provavelmente pelo desejo de melhorar as condições de entrada e permanência de uma hoje imensa colônia brasileira nos EUA.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25 de janeiro de 2004
Aprenda diplomacia por sua própria conta (e risco)...
... em apenas um dia!
Confesso que tenho começado a me preocupar com o curso futuro das profissões baseadas em regime de guildas ou corporações de ofício, como é caso da minha própria, a casta diplomática, fundada, assim como o estamento vizinho dos economistas, em um sistema de seleção altamente especializado e exclusivo, que abre as portas para uma reserva de mercado destinada apenas aos iniciados nos segredos da “arte”.
Digo isto por uma razão muito simples. Ao percorrer as estantes de economia das grandes livrarias de Washington, o que faço com bastante freqüência, deparo cada vez mais com livros – no mais das vezes “livrinhos”, mas em alguns casos “livrões – voltados para a educação do público em geral, dando todas as regras e instrumentos para um bom début na profissão que antes se julgava fechada e restrita a uma tribo bissexta de indivíduos fanatizados por equações matemáticas e curvas de utilidade marginal, à imagem desses nerds – o nosso popular “cdf” – que se vêem nos filmes americanos para adolescentes. Pois não é que depois da voga dos livros espirituais e de auto-ajuda – a interminável sucessão de How to Do…? –, começaram a surgir guias rápidos para a nobre profissão de economista? Vejamos alguns títulos que eu já encontrei nas estantes:
- The Complete Idiot’s Guide to Economics;
- The Complete MBA for Dummies;
- Economics in One Lesson;
- One Day MBA in Management;
- The Instant Economist;
- Economics: A Self-Teaching Guide.
Tudo isso me cheira a dumping social e a concorrência desleal contra os true economists. De minha parte, comprei um outro tipo de manual, The Armchair Economist: Economics and Everday Life (Steven E. Landsburg), uma elegante discussão sobre os fundamentos da análise econômica que não usa sequer uma única equação, mas entendo que ele não se aplica aos nossos propósitos. Comecei a imaginar, então, como se poderia ter guias equivalentes para a outrora refinada e aristocrática profissão de diplomata:
- An Idiot’s Guide to Diplomacy
- The Complete Kit for Being a Good Diplomat
- Diplomacy in One Lesson
- Teach Yourself Diplomacy in One Day
- Diplomacy for Dummies
- The Instant Diplomat
Estaremos condenados a enfrentar uma horda de amadores, fazendo pressão sobre os nossos (já parcos) salários e retirando o caráter mais ou menos elitista (no bom sentido da palavra) de nossa profissão? Não; não precisa se preocupar: ainda não surgiram esses livros, muito embora eu mesmo tenha pensado em escrever, com base em minha experiência pregressa de negociador e de “pensador” desses processos, um Mercosul for Dummies e até mesmo um Idiot’s Guide to the FTAA. Por certo já surgiram e proliferam, desde Versalhes, os guias diplomáticos, desde os clássicos (e aborrecidos) de Harold Nicolson e de Ernest Satow, até os mais modernos, como o bem completo Guide to International Relations and Diplomacy, editado por Michael Fry, Richard Langhorne e Erik Goldstein (nada menos que 175 dólares). Mas eu me refiro, mais exatamente, a outros tipos de guias, algo como Diplomacy for Beginners ou então International Relations: A Do It Yourself Guide.
Esperando que um dia possam surgir esses tão preclaros quanto necessários guias do self-made diplomatist, decidi propor algumas simples regras para quem deseja seguir a profissão sem se submeter a esses exigentes concursos de provas do Instituto Rio Branco ou sem sequer precisar pedir ao presidente para que ele lhe designe para um desses postos cobiçados do exterior. Sendo um home-made diplomat, você estabelece suas próprias regras de procedimento e passa a reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança, quem sabe até candidatando-se, algum dia, ao Prêmio Nobel da Paz?
Ao contrário do que muitos pensam, ser diplomata não é tão difícil quanto levantamento de peso nos Jogos Olímpicos ou acertar na loteria três vezes seguidas – como aquele deputado da comissão do Orçamento – e não se exige sequer experiência prévia, bastando uma certa dose de imaginação e muitas outras doses de um bom Scotch. Adquirindo um bom curso, quiçá em um dia você poderá estar habilitado a tratar dos mais difíceis problemas deste mundo, como a paz no Oriente Médio, o conflito Índia-Paquistão, as imunidades diplomáticas ligadas a um concurso de misses na Nigéria ou até mesmo o levantamento do embargo contra Cuba. Qual seria o segredo?:
Comece por aprender retórica, a arte de vender qualquer coisa. Se não puder ter um kit apropriado, faça apelo a esses programas de auditório: passe um dia e uma noite assistindo Ratinho, Silvio Santos, Faustão e até mesmo Jô Soares (embora ele seja mais propenso a complicar as coisas). Depois aprenda a falar em diplomatês – com a ajuda das novelas do horário nobre, por exemplo –, complementando essas lições essenciais com um curso rápido de diplomatês escrito, que pode ser feito por correspondência ou então obtido nos links de discursos do site www.mre.gov.br. Algumas lições de boas maneiras e de etiqueta também ajudam, mas hoje em dia, com a truculência exibida por certos serviços diplomáticos, todo esse protocolo pode ser facilmente substituído por aulas de kung-fu e de capoeira (mas não vale armas de destruição em massa).
Técnicas de relações públicas são essenciais para o sucesso na profissão, e também para uma boa progressão na carreira: houve mesmo um sujeito que galgou rápido os degraus da diplomacia, tendo sido alcunhado de “o guarda-chuva mais rápido da República”. Um outro foi apelidado de “João do Pulo”, tal a sofreguidão com que se alçou ao sommet embaixatorial, com a ajuda de uma boa caderneta de endereços, incontáveis idas aos aeroportos e muitos salamaleques por semana. Relações públicas são tão importantes quanto o trabalho, sem qualquer demérito para este último método, também eficiente, mas mais apropriado para os que não moram em lugares chic e não têm dinheiro de família para ostentar.
Por fim, um alfaiate competente pode fazer muito pela sua imagem, assim como brilhantina e uma vistosa coleção de gravatas. Roupas interiores podem ser compradas em lojas de departamentos, mas as camisas têm de ostentar uma certa griffe, do contrário você passará por um diplomata dos comuns, desses que são obrigados a ganhar a vida escrevendo memorandos e telegramas. Ofereça flores e tenha sempre pronto um mot-d’esprit para as damas e consortes que encontrar, mas não exagere nas aproximações: o próximo pode não gostar, a despeito mesmo de um certo grau de osmose nesses meios.
Você está preocupado com as matérias clássicas da diplomacia, tipo história, geografia, direito internacional, economia, línguas? Não há motivo para angústia: decore todo o Almanaque Abril e passe a ler os editoriais da Economist, pois ali está tudo o que você precisa saber para um desempenho satisfatório em 90% dos casos que for chamado a enfrentar. Os 10% restantes aprenda nos livros ou com gente mais esperta que você, o que estou certo existe em qualquer corporação.
Seja um otimista e desminta a Lei de Murphy: você pode se tornar um diplomata de sucesso estando nos lugares certos nos momentos certos. Mas para isso você vai precisar de uma boa astróloga, uma das profissões mais em voga no Brasil – ela acaba de superar os sociólogos – e quase tão cheia de certezas definitivas quanto a própria diplomacia. E, ao contrário do que dizem, não minta: não é preciso e não é eficaz. Não pratique, tampouco, a hipocrisia: apenas saiba calar quando for preciso.
Acomode-se, em contrapartida, na diplomacia virtual e passe a trabalhar em casa, com base na internet e em softwares de simulação (tipo War e até mesmo Diplomacy). Quando estiver cansado de um conflito, passe para outro, pois o bom mesmo da profissão é o nomadismo obrigatório, poder ser um flâneur rêveur nos Champs Elysées e no Hide Park. Com um pouco de sorte (e a ajuda daquela astróloga) você vai estar no lugar certo e no momento certo, quando por exemplo for assinado algum armistício ou um acordo comercial (lembre-se que isso costuma se dar em Genebra, Paris ou Nova York).
E quando quiserem lhe mandar para alguma savana ou altiplano, seja radical: ameace que vai ter de agregar e trabalhar para o cerimonial de Santo Antonio do Salto da Onça ou de Cabrobó da Serra, que isso costuma ter efeito dissuasório. Nem sempre funciona, mas tenha certeza de que você será muito bem recebido nesses lugares, onde aliás passarão imediatamente a lhe chamar de Senhor Embaixador e de Vossência. Não era isso mesmo o que você pretendia?
Paulo Roberto de Almeida
(um diplomata autodidata e nômade por natureza),
Washington, 2 de agosto de 2003 (1088)
Confesso que tenho começado a me preocupar com o curso futuro das profissões baseadas em regime de guildas ou corporações de ofício, como é caso da minha própria, a casta diplomática, fundada, assim como o estamento vizinho dos economistas, em um sistema de seleção altamente especializado e exclusivo, que abre as portas para uma reserva de mercado destinada apenas aos iniciados nos segredos da “arte”.
Digo isto por uma razão muito simples. Ao percorrer as estantes de economia das grandes livrarias de Washington, o que faço com bastante freqüência, deparo cada vez mais com livros – no mais das vezes “livrinhos”, mas em alguns casos “livrões – voltados para a educação do público em geral, dando todas as regras e instrumentos para um bom début na profissão que antes se julgava fechada e restrita a uma tribo bissexta de indivíduos fanatizados por equações matemáticas e curvas de utilidade marginal, à imagem desses nerds – o nosso popular “cdf” – que se vêem nos filmes americanos para adolescentes. Pois não é que depois da voga dos livros espirituais e de auto-ajuda – a interminável sucessão de How to Do…? –, começaram a surgir guias rápidos para a nobre profissão de economista? Vejamos alguns títulos que eu já encontrei nas estantes:
- The Complete Idiot’s Guide to Economics;
- The Complete MBA for Dummies;
- Economics in One Lesson;
- One Day MBA in Management;
- The Instant Economist;
- Economics: A Self-Teaching Guide.
Tudo isso me cheira a dumping social e a concorrência desleal contra os true economists. De minha parte, comprei um outro tipo de manual, The Armchair Economist: Economics and Everday Life (Steven E. Landsburg), uma elegante discussão sobre os fundamentos da análise econômica que não usa sequer uma única equação, mas entendo que ele não se aplica aos nossos propósitos. Comecei a imaginar, então, como se poderia ter guias equivalentes para a outrora refinada e aristocrática profissão de diplomata:
- An Idiot’s Guide to Diplomacy
- The Complete Kit for Being a Good Diplomat
- Diplomacy in One Lesson
- Teach Yourself Diplomacy in One Day
- Diplomacy for Dummies
- The Instant Diplomat
Estaremos condenados a enfrentar uma horda de amadores, fazendo pressão sobre os nossos (já parcos) salários e retirando o caráter mais ou menos elitista (no bom sentido da palavra) de nossa profissão? Não; não precisa se preocupar: ainda não surgiram esses livros, muito embora eu mesmo tenha pensado em escrever, com base em minha experiência pregressa de negociador e de “pensador” desses processos, um Mercosul for Dummies e até mesmo um Idiot’s Guide to the FTAA. Por certo já surgiram e proliferam, desde Versalhes, os guias diplomáticos, desde os clássicos (e aborrecidos) de Harold Nicolson e de Ernest Satow, até os mais modernos, como o bem completo Guide to International Relations and Diplomacy, editado por Michael Fry, Richard Langhorne e Erik Goldstein (nada menos que 175 dólares). Mas eu me refiro, mais exatamente, a outros tipos de guias, algo como Diplomacy for Beginners ou então International Relations: A Do It Yourself Guide.
Esperando que um dia possam surgir esses tão preclaros quanto necessários guias do self-made diplomatist, decidi propor algumas simples regras para quem deseja seguir a profissão sem se submeter a esses exigentes concursos de provas do Instituto Rio Branco ou sem sequer precisar pedir ao presidente para que ele lhe designe para um desses postos cobiçados do exterior. Sendo um home-made diplomat, você estabelece suas próprias regras de procedimento e passa a reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança, quem sabe até candidatando-se, algum dia, ao Prêmio Nobel da Paz?
Ao contrário do que muitos pensam, ser diplomata não é tão difícil quanto levantamento de peso nos Jogos Olímpicos ou acertar na loteria três vezes seguidas – como aquele deputado da comissão do Orçamento – e não se exige sequer experiência prévia, bastando uma certa dose de imaginação e muitas outras doses de um bom Scotch. Adquirindo um bom curso, quiçá em um dia você poderá estar habilitado a tratar dos mais difíceis problemas deste mundo, como a paz no Oriente Médio, o conflito Índia-Paquistão, as imunidades diplomáticas ligadas a um concurso de misses na Nigéria ou até mesmo o levantamento do embargo contra Cuba. Qual seria o segredo?:
Comece por aprender retórica, a arte de vender qualquer coisa. Se não puder ter um kit apropriado, faça apelo a esses programas de auditório: passe um dia e uma noite assistindo Ratinho, Silvio Santos, Faustão e até mesmo Jô Soares (embora ele seja mais propenso a complicar as coisas). Depois aprenda a falar em diplomatês – com a ajuda das novelas do horário nobre, por exemplo –, complementando essas lições essenciais com um curso rápido de diplomatês escrito, que pode ser feito por correspondência ou então obtido nos links de discursos do site www.mre.gov.br. Algumas lições de boas maneiras e de etiqueta também ajudam, mas hoje em dia, com a truculência exibida por certos serviços diplomáticos, todo esse protocolo pode ser facilmente substituído por aulas de kung-fu e de capoeira (mas não vale armas de destruição em massa).
Técnicas de relações públicas são essenciais para o sucesso na profissão, e também para uma boa progressão na carreira: houve mesmo um sujeito que galgou rápido os degraus da diplomacia, tendo sido alcunhado de “o guarda-chuva mais rápido da República”. Um outro foi apelidado de “João do Pulo”, tal a sofreguidão com que se alçou ao sommet embaixatorial, com a ajuda de uma boa caderneta de endereços, incontáveis idas aos aeroportos e muitos salamaleques por semana. Relações públicas são tão importantes quanto o trabalho, sem qualquer demérito para este último método, também eficiente, mas mais apropriado para os que não moram em lugares chic e não têm dinheiro de família para ostentar.
Por fim, um alfaiate competente pode fazer muito pela sua imagem, assim como brilhantina e uma vistosa coleção de gravatas. Roupas interiores podem ser compradas em lojas de departamentos, mas as camisas têm de ostentar uma certa griffe, do contrário você passará por um diplomata dos comuns, desses que são obrigados a ganhar a vida escrevendo memorandos e telegramas. Ofereça flores e tenha sempre pronto um mot-d’esprit para as damas e consortes que encontrar, mas não exagere nas aproximações: o próximo pode não gostar, a despeito mesmo de um certo grau de osmose nesses meios.
Você está preocupado com as matérias clássicas da diplomacia, tipo história, geografia, direito internacional, economia, línguas? Não há motivo para angústia: decore todo o Almanaque Abril e passe a ler os editoriais da Economist, pois ali está tudo o que você precisa saber para um desempenho satisfatório em 90% dos casos que for chamado a enfrentar. Os 10% restantes aprenda nos livros ou com gente mais esperta que você, o que estou certo existe em qualquer corporação.
Seja um otimista e desminta a Lei de Murphy: você pode se tornar um diplomata de sucesso estando nos lugares certos nos momentos certos. Mas para isso você vai precisar de uma boa astróloga, uma das profissões mais em voga no Brasil – ela acaba de superar os sociólogos – e quase tão cheia de certezas definitivas quanto a própria diplomacia. E, ao contrário do que dizem, não minta: não é preciso e não é eficaz. Não pratique, tampouco, a hipocrisia: apenas saiba calar quando for preciso.
Acomode-se, em contrapartida, na diplomacia virtual e passe a trabalhar em casa, com base na internet e em softwares de simulação (tipo War e até mesmo Diplomacy). Quando estiver cansado de um conflito, passe para outro, pois o bom mesmo da profissão é o nomadismo obrigatório, poder ser um flâneur rêveur nos Champs Elysées e no Hide Park. Com um pouco de sorte (e a ajuda daquela astróloga) você vai estar no lugar certo e no momento certo, quando por exemplo for assinado algum armistício ou um acordo comercial (lembre-se que isso costuma se dar em Genebra, Paris ou Nova York).
E quando quiserem lhe mandar para alguma savana ou altiplano, seja radical: ameace que vai ter de agregar e trabalhar para o cerimonial de Santo Antonio do Salto da Onça ou de Cabrobó da Serra, que isso costuma ter efeito dissuasório. Nem sempre funciona, mas tenha certeza de que você será muito bem recebido nesses lugares, onde aliás passarão imediatamente a lhe chamar de Senhor Embaixador e de Vossência. Não era isso mesmo o que você pretendia?
Paulo Roberto de Almeida
(um diplomata autodidata e nômade por natureza),
Washington, 2 de agosto de 2003 (1088)
Dez coisas que aprendi ao longo da vida
...e que nunca é demais lembrar porque nelas não se presta atenção.
1. Não se deve generalizar situações, tipos e ocorrências
2. Nunca se deve absolutizar avaliações e julgamentos.
3. Não se deve fazer previsões sobre comportamentos.
4. Não se deve deixar a religião interferir com a vida civil.
5. Os resultados são sempre mais importantes do que as intenções, mas os fins não justificam os meios.
6. Interpretações e diagnósticos são sempre parciais e limitados e as ideologias derivam diretamente deles.
7. A justiça distributiva deve ser praticada sobre os fluxos, não sobre os estoques.
8. Direitos humanos não precisam ser “contemplativos”, eles podem ser “ofensivos”; o respeito das diferenças pode preservar situações de discriminação absoluta.
9. Soberania estatal é um conceito caduco no plano das liberdades individuais.
10. A educação deve ser obrigatória, contínua e de preferência complementada por formação humanista.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 maio 2003
1. Não se deve generalizar situações, tipos e ocorrências
2. Nunca se deve absolutizar avaliações e julgamentos.
3. Não se deve fazer previsões sobre comportamentos.
4. Não se deve deixar a religião interferir com a vida civil.
5. Os resultados são sempre mais importantes do que as intenções, mas os fins não justificam os meios.
6. Interpretações e diagnósticos são sempre parciais e limitados e as ideologias derivam diretamente deles.
7. A justiça distributiva deve ser praticada sobre os fluxos, não sobre os estoques.
8. Direitos humanos não precisam ser “contemplativos”, eles podem ser “ofensivos”; o respeito das diferenças pode preservar situações de discriminação absoluta.
9. Soberania estatal é um conceito caduco no plano das liberdades individuais.
10. A educação deve ser obrigatória, contínua e de preferência complementada por formação humanista.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 19 maio 2003
Dez obras fundamentais para um diplomata
Tenho sido regularmente consultado por candidatos à carreira diplomática sobre "obras importantes" que eles deveriam ler para se preparar adequadamente para a carreira. Como já escrevi um trabalho nessa linha alguns anos atrás, e como não creio que a Humanidade tenha produzido algo de muito grandioso nos últimos anos, permito-me reproduzir aqui um trabalho elaborado em 2006.
Toda lista desse tipo é sempre um pouco subjetiva, denotando mais as preferências pessoais do seu autor do que, necessariamente, as obras “funcionalmente” mais importantes ou aquelas “culturalmente” relevantes, que deveriam integrar a bagagem cultural de todo ser humano medianamente bem informado ou razoavelmente bem formado. Como, entretanto, não se trata de “cultura de salão”, vou tentar traçar uma lista indicativa dos livros que considero importantes para uma boa cultura clássica ou para uma formação adequada no quadro da cultura brasileira.
Como, adicionalmente, se trata de selecionar obras “operacionalmente” relevantes do ponto de vista do diplomata, permito-me indicar aqui aquelas que apresentam uma inclinação especial para os temas de relações internacionais do Brasil. Esta lista, segundo minhas preferências pessoais, seria composta das seguintes obras:
1) Heródoto: História (440 a.C.)
Trata-se, obviamente, do nascimento da história, tal como vista por um grego refinado que interpreta os acontecimentos contemporâneos – as chamadas guerras pérsicas – do ponto de vista de uma pequena comunidade de homens livres que consegue derrotar as tropas de um poderoso império, aliás o mais poderoso então existente; Heródoto faz descrições dos povos habitantes do Mediterrâneo. Existem muitas traduções desta obra clássica, inclusive em português, mas uma boa tradução em inglês pode ser vista neste link: http://classics.mit.edu/Herodotus/history.html; para uma introdução rápida ao conjunto da obra e um útil sumário dos nove livros, consultar este outro link: http://mcgoodwin.net/pages/otherbooks/herodotus.html.
2) Maquiavel: O Príncipe (1513; divulgado pela primeira vez em 1532)
A mais famosa obra de “política prática” conhecida na tradição ocidental – existe um Maquiavel indiano, chamado Kautilya, que escreveu um guia de “administração” do Estado, conhecido como Arthashastra – e que tem servido de referência a incontáveis oportunistas da dominação política, interessados em justificar suas ações nem sempre fundamentadas na moralidade ou na ética. Existem inúmeras traduções em português, com prefácios de cientistas políticos ou de filósofos – uma das mais famosos é o de Isaiah Berlin – assim como arquivos eletrônicos livremente disponíveis, em diversas línguas. O mais famoso estudioso da vida e da obra de Maquiavel é o italiano Pasquale Villari, em seus três volumes de Niccolò Machiavelli e i suoi tempi (consultei a 3ª edição, “riveduta e corretta dall’autore”: Milano: Ulrico Hoepli, 1912; a primeira edição foi publicada em Florença, em 1877). Ver um arquivo eletrônico da obra, entre muitos outros, no original italiano (mas modernizado, obviamente) no seguinte link: http://metalibri.incubadora.fapesp.br/portal/authors/
m/machiavelli-niccolo-di-bernardo-dei/il-principe/.
3) Tocqueville: A Democracia na América (1835)
Uma “enquête” sobre o sistema carcerário americano, feito a pedido do governo francês, redundou no mais famoso livro sobre a formação política da maior nação do hemisfério ocidental. Depois de entregar seu relatório sobre o sistema prisional dos EUA, Tocqueville aprofundou a análise do sistema representativo republicano, até então inédito no plano mundial, bem como se estendeu sobre outros aspectos – políticos, sociais e econômicos – da ex-colônia inglesa, na qual ele viu a semente do gigante americano. Um site da universidade do Québec, no Canadá, é o mais acessível para a versão completa, em francês, desta obra legitimamente clássica: http://classiques.uqac.ca/classiques/De_tocqueville_alexis/
democratie_1/democratie_tome1.html.
4) Pierre Renouvin (org.): Histoire des relations internationales (1953-58)
O grande historiador francês dirigiu a edição original, em oito volumes, com quatro autores. Apesar de démodée, em vários aspectos, historicamente datada, ainda é uma obra de referência, sobretudo por conter uma história abrangente, inserida no contexto da civilização ocidental. Existe um nova edição, em três volumes encadernados, publicados em 1993 pela mesma editora da primeira edição: a Hachette, de Paris. Fiz uma resenha desta obra, destacando as (poucas) partes que se referem ao Brasil, neste trabalho: “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 15 p. Resenha crítica de Pierre Renouvin (ed): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 vols: I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.); II: De 1789 à 1871 (706 pp.); III: De 1871 à 1945 (998 pp.); publicada na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194); disponível em, sua versão integral, no site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=21.
5) Henry Kissinger: Diplomacy (1994; várias edições posteriores)
Três séculos de história diplomática, desde Westfália até o final do século XX, por um dos mais conhecidos adeptos da teoria realista (mas com enorme conhecimento da história). Sua tese de doutoramento, sobre o Congresso de Viena, ainda hoje é uma referência em história diplomática. O autor é, evidentemente, kissingeriano, e não se cansa de dar seus conselhos sobre como os EUA devem tratar com os demais gigantes da política mundial, sendo meramente condescendente com “lesser actors”. Ainda assim, uma grande e indispensável leitura a todos aqueles que desejam conhecer o “inner functionning” da política externa da grandes potências. O autor se estende nos movimentos da própria diplomacia americana, dividida entre o idealismo wilsoniano e o pragmatismo realista que ele mesmo sempre buscou imprimir à condução dos assuntos externos quando foi conselheiro de segurança nacional do presidente Nixon e depois Secretário de Estado de Nixon e de Gerald Ford. Tem quem deteste Kissinger, por sua ação “imperial”, mas nem por isto este livro deixa de ser indispensável.
6) Manuel de Oliveira Lima: Formação histórica da nacionalidade brasileira (1912; nova edição: Rio de Janeiro: Topbooks, 1997)
Oriundo de conferências que o historiador-diplomata realizou na Sorbonne, em 1911, quando era ministro em Bruxelas, a obra foi concebida em francês, depois traduzida e publicada no Brasil. Trata-se de um vasto panorama da formação histórica, inclusive comparativa, do Brasil, por um dos nossos maiores historiadores sociológicos. Não conheço análises de uma das obras menos referidas de Oliveira Lima, a não ser os prefácios de José Veríssimo e de Gilberto Freyre para a edição brasileira de 1944. A nova edição deste clássico sobre a formação do Brasil foi enriquecida, na edição da Topbooks, pelo acréscimo de conferência do autor sobre o Brasil e os estrangeiros.
7) Pandiá Calógeras: A política exterior do Império (três volumes, 1927-1933; reedição fac-similar, 1989; Brasília: Câmara dos Deputados)
Alguns dizem que esta obra é excessiva e, de fato, para tratar da diplomacia brasileira da época imperial, ela recua um pouco demais: começa na formação da nacionalidade portuguesa e se estende até a queda de Rosas (1852), apenas. Efetuei uma análise dessa obra no seguinte trabalho: “Contribuições à História Diplomática do Brasil: Pandiá Calógeras, ou o Clausewitz da política externa”, Brasília: 21 março 1993, 13 pp., revisto em 22 maio 1993. Artigo-resenha dos livros de João Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império (volume I: As Origens; volume II: O Primeiro Reinado; volume III: Da Regência à Queda de Rosas; edição fac-similar: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, coleção “Brasiliana, 1989, xl + 490, 568 e 620 pp). Publicado na revista Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, PUCRS, v. XVIII, n. 2, dezembro 1992, pp. 93-103). Relação de Publicados n° 117. Disponível neste link do site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=22.
8) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (1959; reedição fac-similar, 1998; Brasília: Senado Federal)
Apesar de antiquada em sua metodologia e historicamente defasada, tendo deixado de servir de livro-texto depois da publicação da obra conjunta de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno – História da Política Exterior do Brasil (3ª ed.; Brasília: UnB, 2006) – essa obra permanece ainda uma referência parcialmente válida para o estudo dos períodos colonial, imperial e republicano, até o final dos anos 1950. Efetuei uma análise neste trabalho (que serviu, ao mesmo tempo, de introdução à sua reedição facsimilar): “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira”, Brasília, 12 dezembro 1997, 25 pp.; revisão em 05.01.98. Texto introdutório à reedição de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (1ª ed.: São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), pp. xv-l, incorporando ainda apresentação do Emb. Rubens Ricupero (pp. iii-xiv), elaborada originalmente em 1989, em Genebra). Elaborei uma versão revista dessa introdução, com prefácio, para uma segunda edição, em 2004, mas ela foi publicada sem minhas correções e acréscimos; para a edição de 1998, ver: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/
24DelgadoHistoDiplom.html; meu texto: http://www.pralmeida.org/01Livros/
1NewBoooks/PrepNewEdDelg2004.pdf.
9) Marcelo de Paiva Abreu (org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989 (Rio de Janeiro: Campus, 1989; várias reedições)
Uma coletânea indispensável de estudos especializados, por onze diferentes autores, para conhecer a trajetória econômica e política do século republicano. O organizador assina o capítulo relativo à modernização autoritária, entre 1930 e 1945. O volume se abre por um estudo de Gustavo Franco sobre a primeira década republicana, seguido de Winston Fritsh, que se ocupa do apogeu e crise da primeira República, de 1900 a 1930. Sérgio Besserman Vianna assina dois excelentes ensaios sobre o imediato pós-guerra, de 1945 a 1954. Marcelo de Paiva Abreu volta para tratar dos conturbados anos 1961-1964, sobre a inflação, estagnação e ruptura. A estabilização e a reforma, entre 1964 e 1867, são tratadas por André Lara Rezende e as distorções do “milagre” econômico , de 1967 a 1973, por Luiz Aranha Corrêa do Lago. Dionísio Dias Carneiro vem na seqüência (1974-1980) e divide com Eduardo Modiano um capítulo sobre a primeira metade dos anos 1980. Esse último autor encerra a obra com a “ópera dos três cruzados”, uma análise das tentativas de estabilização no final da década. Um anexo estatístico cobre o longo século republicano, contendo os principais indicadores da atividade econômica e das relações externas. Este livro pode ser completado pela leitura desta outra coletânea: Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.), Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004) (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 432 p.), do qual efetuei uma resenha, neste link de Parlata: http://www.parlata.com.br/
parlata_indica_interna.asp?seq=39.
10) Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (publicado em primeira edição em 2001; reedição em 2005 pela Senac-SP; ver em www.pralmeida.org).
Com a permissão dos leitores para esta demonstração de auto-indulgência, termino esta lista, narcisisticamente, por um dos meus livros. Eu poderia indicar outros livros de história diplomática do Brasil, mas disponho, aparentemente, de crédito suficiente – em matéria de pesquisa e de estudos acumulados na área da história e das relações econômicas internacionais do Brasil – para destacar minha própria investigação histórica sobre os fundamentos da nossa moderna diplomacia econômica, com a promessa de que vou continuar esse trabalho de pesquisa em dois volumes subseqüentes cobrindo o longo século republicano. Uma apresentação geral da obra foi feita neste artigo: “A formação da diplomacia econômica do Brasil”, Lua Nova, revista de cultura e política, São Paulo: CEDEC, n. 46, 1999, p. 169-195; link: www.pralmeida.org/04Temas/11academia/
05materiais/673FDERevLuaNova2.pdf.
Paulo Roberto de Almeida
Toda lista desse tipo é sempre um pouco subjetiva, denotando mais as preferências pessoais do seu autor do que, necessariamente, as obras “funcionalmente” mais importantes ou aquelas “culturalmente” relevantes, que deveriam integrar a bagagem cultural de todo ser humano medianamente bem informado ou razoavelmente bem formado. Como, entretanto, não se trata de “cultura de salão”, vou tentar traçar uma lista indicativa dos livros que considero importantes para uma boa cultura clássica ou para uma formação adequada no quadro da cultura brasileira.
Como, adicionalmente, se trata de selecionar obras “operacionalmente” relevantes do ponto de vista do diplomata, permito-me indicar aqui aquelas que apresentam uma inclinação especial para os temas de relações internacionais do Brasil. Esta lista, segundo minhas preferências pessoais, seria composta das seguintes obras:
1) Heródoto: História (440 a.C.)
Trata-se, obviamente, do nascimento da história, tal como vista por um grego refinado que interpreta os acontecimentos contemporâneos – as chamadas guerras pérsicas – do ponto de vista de uma pequena comunidade de homens livres que consegue derrotar as tropas de um poderoso império, aliás o mais poderoso então existente; Heródoto faz descrições dos povos habitantes do Mediterrâneo. Existem muitas traduções desta obra clássica, inclusive em português, mas uma boa tradução em inglês pode ser vista neste link: http://classics.mit.edu/Herodotus/history.html; para uma introdução rápida ao conjunto da obra e um útil sumário dos nove livros, consultar este outro link: http://mcgoodwin.net/pages/otherbooks/herodotus.html.
2) Maquiavel: O Príncipe (1513; divulgado pela primeira vez em 1532)
A mais famosa obra de “política prática” conhecida na tradição ocidental – existe um Maquiavel indiano, chamado Kautilya, que escreveu um guia de “administração” do Estado, conhecido como Arthashastra – e que tem servido de referência a incontáveis oportunistas da dominação política, interessados em justificar suas ações nem sempre fundamentadas na moralidade ou na ética. Existem inúmeras traduções em português, com prefácios de cientistas políticos ou de filósofos – uma das mais famosos é o de Isaiah Berlin – assim como arquivos eletrônicos livremente disponíveis, em diversas línguas. O mais famoso estudioso da vida e da obra de Maquiavel é o italiano Pasquale Villari, em seus três volumes de Niccolò Machiavelli e i suoi tempi (consultei a 3ª edição, “riveduta e corretta dall’autore”: Milano: Ulrico Hoepli, 1912; a primeira edição foi publicada em Florença, em 1877). Ver um arquivo eletrônico da obra, entre muitos outros, no original italiano (mas modernizado, obviamente) no seguinte link: http://metalibri.incubadora.fapesp.br/portal/authors/
m/machiavelli-niccolo-di-bernardo-dei/il-principe/.
3) Tocqueville: A Democracia na América (1835)
Uma “enquête” sobre o sistema carcerário americano, feito a pedido do governo francês, redundou no mais famoso livro sobre a formação política da maior nação do hemisfério ocidental. Depois de entregar seu relatório sobre o sistema prisional dos EUA, Tocqueville aprofundou a análise do sistema representativo republicano, até então inédito no plano mundial, bem como se estendeu sobre outros aspectos – políticos, sociais e econômicos – da ex-colônia inglesa, na qual ele viu a semente do gigante americano. Um site da universidade do Québec, no Canadá, é o mais acessível para a versão completa, em francês, desta obra legitimamente clássica: http://classiques.uqac.ca/classiques/De_tocqueville_alexis/
democratie_1/democratie_tome1.html.
4) Pierre Renouvin (org.): Histoire des relations internationales (1953-58)
O grande historiador francês dirigiu a edição original, em oito volumes, com quatro autores. Apesar de démodée, em vários aspectos, historicamente datada, ainda é uma obra de referência, sobretudo por conter uma história abrangente, inserida no contexto da civilização ocidental. Existe um nova edição, em três volumes encadernados, publicados em 1993 pela mesma editora da primeira edição: a Hachette, de Paris. Fiz uma resenha desta obra, destacando as (poucas) partes que se referem ao Brasil, neste trabalho: “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 15 p. Resenha crítica de Pierre Renouvin (ed): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 vols: I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.); II: De 1789 à 1871 (706 pp.); III: De 1871 à 1945 (998 pp.); publicada na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol 3, nº 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194); disponível em, sua versão integral, no site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=21.
5) Henry Kissinger: Diplomacy (1994; várias edições posteriores)
Três séculos de história diplomática, desde Westfália até o final do século XX, por um dos mais conhecidos adeptos da teoria realista (mas com enorme conhecimento da história). Sua tese de doutoramento, sobre o Congresso de Viena, ainda hoje é uma referência em história diplomática. O autor é, evidentemente, kissingeriano, e não se cansa de dar seus conselhos sobre como os EUA devem tratar com os demais gigantes da política mundial, sendo meramente condescendente com “lesser actors”. Ainda assim, uma grande e indispensável leitura a todos aqueles que desejam conhecer o “inner functionning” da política externa da grandes potências. O autor se estende nos movimentos da própria diplomacia americana, dividida entre o idealismo wilsoniano e o pragmatismo realista que ele mesmo sempre buscou imprimir à condução dos assuntos externos quando foi conselheiro de segurança nacional do presidente Nixon e depois Secretário de Estado de Nixon e de Gerald Ford. Tem quem deteste Kissinger, por sua ação “imperial”, mas nem por isto este livro deixa de ser indispensável.
6) Manuel de Oliveira Lima: Formação histórica da nacionalidade brasileira (1912; nova edição: Rio de Janeiro: Topbooks, 1997)
Oriundo de conferências que o historiador-diplomata realizou na Sorbonne, em 1911, quando era ministro em Bruxelas, a obra foi concebida em francês, depois traduzida e publicada no Brasil. Trata-se de um vasto panorama da formação histórica, inclusive comparativa, do Brasil, por um dos nossos maiores historiadores sociológicos. Não conheço análises de uma das obras menos referidas de Oliveira Lima, a não ser os prefácios de José Veríssimo e de Gilberto Freyre para a edição brasileira de 1944. A nova edição deste clássico sobre a formação do Brasil foi enriquecida, na edição da Topbooks, pelo acréscimo de conferência do autor sobre o Brasil e os estrangeiros.
7) Pandiá Calógeras: A política exterior do Império (três volumes, 1927-1933; reedição fac-similar, 1989; Brasília: Câmara dos Deputados)
Alguns dizem que esta obra é excessiva e, de fato, para tratar da diplomacia brasileira da época imperial, ela recua um pouco demais: começa na formação da nacionalidade portuguesa e se estende até a queda de Rosas (1852), apenas. Efetuei uma análise dessa obra no seguinte trabalho: “Contribuições à História Diplomática do Brasil: Pandiá Calógeras, ou o Clausewitz da política externa”, Brasília: 21 março 1993, 13 pp., revisto em 22 maio 1993. Artigo-resenha dos livros de João Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império (volume I: As Origens; volume II: O Primeiro Reinado; volume III: Da Regência à Queda de Rosas; edição fac-similar: Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional, coleção “Brasiliana, 1989, xl + 490, 568 e 620 pp). Publicado na revista Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, PUCRS, v. XVIII, n. 2, dezembro 1992, pp. 93-103). Relação de Publicados n° 117. Disponível neste link do site Parlata: http://www.parlata.com.br/parlata_indica_interna.asp?seq=22.
8) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (1959; reedição fac-similar, 1998; Brasília: Senado Federal)
Apesar de antiquada em sua metodologia e historicamente defasada, tendo deixado de servir de livro-texto depois da publicação da obra conjunta de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno – História da Política Exterior do Brasil (3ª ed.; Brasília: UnB, 2006) – essa obra permanece ainda uma referência parcialmente válida para o estudo dos períodos colonial, imperial e republicano, até o final dos anos 1950. Efetuei uma análise neste trabalho (que serviu, ao mesmo tempo, de introdução à sua reedição facsimilar): “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira”, Brasília, 12 dezembro 1997, 25 pp.; revisão em 05.01.98. Texto introdutório à reedição de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (1ª ed.: São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), pp. xv-l, incorporando ainda apresentação do Emb. Rubens Ricupero (pp. iii-xiv), elaborada originalmente em 1989, em Genebra). Elaborei uma versão revista dessa introdução, com prefácio, para uma segunda edição, em 2004, mas ela foi publicada sem minhas correções e acréscimos; para a edição de 1998, ver: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/
24DelgadoHistoDiplom.html; meu texto: http://www.pralmeida.org/01Livros/
1NewBoooks/PrepNewEdDelg2004.pdf.
9) Marcelo de Paiva Abreu (org.). A Ordem do Progresso: cem anos de política econômica republicana, 1889-1989 (Rio de Janeiro: Campus, 1989; várias reedições)
Uma coletânea indispensável de estudos especializados, por onze diferentes autores, para conhecer a trajetória econômica e política do século republicano. O organizador assina o capítulo relativo à modernização autoritária, entre 1930 e 1945. O volume se abre por um estudo de Gustavo Franco sobre a primeira década republicana, seguido de Winston Fritsh, que se ocupa do apogeu e crise da primeira República, de 1900 a 1930. Sérgio Besserman Vianna assina dois excelentes ensaios sobre o imediato pós-guerra, de 1945 a 1954. Marcelo de Paiva Abreu volta para tratar dos conturbados anos 1961-1964, sobre a inflação, estagnação e ruptura. A estabilização e a reforma, entre 1964 e 1867, são tratadas por André Lara Rezende e as distorções do “milagre” econômico , de 1967 a 1973, por Luiz Aranha Corrêa do Lago. Dionísio Dias Carneiro vem na seqüência (1974-1980) e divide com Eduardo Modiano um capítulo sobre a primeira metade dos anos 1980. Esse último autor encerra a obra com a “ópera dos três cruzados”, uma análise das tentativas de estabilização no final da década. Um anexo estatístico cobre o longo século republicano, contendo os principais indicadores da atividade econômica e das relações externas. Este livro pode ser completado pela leitura desta outra coletânea: Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann (orgs.), Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004) (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 432 p.), do qual efetuei uma resenha, neste link de Parlata: http://www.parlata.com.br/
parlata_indica_interna.asp?seq=39.
10) Paulo Roberto de Almeida: Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (publicado em primeira edição em 2001; reedição em 2005 pela Senac-SP; ver em www.pralmeida.org).
Com a permissão dos leitores para esta demonstração de auto-indulgência, termino esta lista, narcisisticamente, por um dos meus livros. Eu poderia indicar outros livros de história diplomática do Brasil, mas disponho, aparentemente, de crédito suficiente – em matéria de pesquisa e de estudos acumulados na área da história e das relações econômicas internacionais do Brasil – para destacar minha própria investigação histórica sobre os fundamentos da nossa moderna diplomacia econômica, com a promessa de que vou continuar esse trabalho de pesquisa em dois volumes subseqüentes cobrindo o longo século republicano. Uma apresentação geral da obra foi feita neste artigo: “A formação da diplomacia econômica do Brasil”, Lua Nova, revista de cultura e política, São Paulo: CEDEC, n. 46, 1999, p. 169-195; link: www.pralmeida.org/04Temas/11academia/
05materiais/673FDERevLuaNova2.pdf.
Paulo Roberto de Almeida
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