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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Essa Gente: o novo romance de Chico Buarque (Companhia das Letras)

Um escritor decadente passa por um deserto criativo e emocional enquanto o Rio de Janeiro colapsa ao seu redor. Em seu sexto romance, Chico Buarque constrói uma engenhosa trama em cujas entrelinhas se revelam as contradições do Brasil de agora.
Nas livrarias a partir de 14 de novembro.
Há pontos de contato entre Chico Buarque e o protagonista de Essa gente. Além de ser escritor, Manuel Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e gosta de bater perna atrás de inspiração nos arredores do Leblon, onde voltou a morar após o fim de seu último casamento. Embora seja quase inevitável buscar alusões autobiográficas no novo romance de Chico — o primeiro após a consagração do prêmio Camões —, o leitor não demorará a descobrir que tal linha de pensamento conduz a um beco sem saída. Na melhor das hipóteses, lhe dá a posse de uma chave que pode abrir uma ou outra porta, mas não todas. Essa não será a única pista falsa antes do ponto-final.
Essa gente é, entre os romances de Chico, o mais áspero e possivelmente o mais enigmático. A história contada em forma de pequenos capítulos de diário, quase todos datados de um passado tão recente que se pode chamar de atualidade, é mais um de seus quebra-cabeças narrativos com fumaças de literatura policial. No entanto, a reflexão sobre a linguagem que é uma dimensão estruturante das ficções buarquianas se ancora desta vez no estilo mais imediato de todos: o do apontamento rápido, feito para auxiliar a memória do próprio apontador no futuro, quando houver distância e lucidez para transformar o tumulto do presente numa história redonda. Sim, estamos no nebuloso país do agora. A parte da brincadeira que cabe ao leitor é mais decisiva do que nunca.
Autor de diversos livros, entre eles um best-seller já entrado em anos chamado O Eunuco do Paço Real, Duarte é um escritor decadente às voltas com uma pindaíba total, tanto financeira quanto afetiva. Tem um filho pré-adolescente com quem é incapaz de trocar uma única palavra. Está sempre em busca de um modo de descolar dinheiro — seja arrancando mais um adiantamento de seu editor paulista, seja apelando à generosidade arisca de um amigo bem-sucedido. Com uma mistura de hiperatividade e inação, ricocheteia entre suas duas ex-mulheres, uma tradutora intelectual e uma decoradora perua, e um número não especificado de putas. Enquanto isso, à sua volta, o Rio de Janeiro sangra e estrebucha sob o flagelo de feridas sociais finalmente supuradas, exibidas por muitos com uma espécie doentia de orgulho.
O distanciamento emocional vagamente camusiano com que Duarte fala dessas ruínas, tanto a pessoal quanto a coletiva, eximindo-se de juízos históricos ou mesmo de indignação, dá ao livro um tom de farsa — não ligeira mas grave, encharcada de humor negro. Logo de saída, a comédia sombria se escancara na subtrama dos castrati: um pastor neopentecostal e um maestro italiano estão castrando jovens pobres dos morros cariocas, com a anuência de suas famílias, a fim de abastecer o mercado do canto lírico internacional.
Será que estamos diante de uma alegoria poderosa da emasculação de um povo? Pode ser, mas talvez isso só exista na ficção que Duarte tenta escrever, alegoria de alegoria, retomando um tema presente em O Eunuco do Paço Real. Essa e outras fronteiras entre vida, imaginação, sonho e delírio vão sendo borradas pelo autor — e aqui falamos de Chico Buarque — com um sorriso que quase se deixa entrever nas páginas.
A montagem do quebra-cabeça se complica mais um pouco quando outros narradores se apresentam, das ex-mulheres de Duarte a uma vizinha enxerida que lhe é uma completa estranha, sem falar de uma voz que narra em terceira pessoa. Vai ficando claro que o “diário” é um estratagema literário de Duarte, o próprio livro que ele tenta escrever, embora também essa chave encontre seu limite quando, nas últimas páginas, o formato se prolonga além de toda verossimilhança para dar o toque final numa charada que o autor capricha em deixar sem solução. Uma informação jogada então com sugestiva ausência de ênfase, a de que o computador do protagonista estava vazio de textos, chega a acenar com a não existência do próprio livro que se acabou de ler.
Romance urgente, colado corajosamente na opacidade do agora, Essa gente é, numa primeira leitura, uma comédia de costumes tão divertida quanto cruel. É também um engenho narrativo feito para empurrar até o futuro possível — algum momento após o fim da leitura — o caimento da ficha derradeira: a compreensão de que, enquanto Duarte nos conduzia pelas tortuosas vielas literárias de sua história mundana, alegórica, metalinguística, o mais importante ocorria ao seu redor. O foco se desloca então da “literatura” para a paisagem, a chapa quente carioca compartilhada pela classe média alta do Leblon e pela mistura de classe média baixa, pobreza e miséria da vizinha favela do Vidigal. Terminada a leitura, o livro nos intima a virá-lo do avesso, transformando fundo em forma e desviando os olhos da história para a História.
Nessa nova perspectiva, os personagens principais se tornam com clareza dolorosa a violência letal da polícia contra “essa gente”, a humilhação dos porteiros, o espancamento gratuito do mendigo pelo sócio do Country Club, o bullying sofrido na escola pelo filho de esquerdistas, o alagamento apocalíptico das ruas em dias de chuva, as pedras que ameaçam deletar o morro, a falência material e moral de uma cidade que já foi símbolo de uma nação — talvez ainda seja. Que a única redenção possível venha do olhar de uma ruiva gringa apaixonada pela fantasia do Orfeu do Carnaval é parte do humor dilacerante da primeira obra literária de vulto a encarar o tema do Brasil bolsonarista. Pensando bem, essa gente somos todos nós.
 
Sérgio Rodrigues
Ouça um trecho do livro, com narração de Marília Garcia
SOBRE O AUTOR
Francisco Buarque de Hollandanasceu no Rio de Janeiro, em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, publicou, além das peças Roda viva(1968), Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra (1973), Gota d’água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do malandro (1979), a novela Fazenda modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e O irmão alemão (2014).
OBRAS DE CHICO BUARQUE PUBLICADAS PELA COMPANHIA DAS LETRAS

Churchill & Orwell: unidos da defesa da liberdade

Churchill & Orwell


Zahar Editora

A fascinante história de dois homens com posições políticas diferentes, aliados pelo mesmo princípio: a defesa da liberdade individual

Figuras essenciais na luta contra as ameaças do autoritarismo de esquerda e de direita em um momento crítico do século XX, Churchill e Orwell surgem aqui como fonte de inspiração e exemplo para os dias de hoje. Filho de aristocratas, Winston Churchill (1874-1965) era um liberal conservador alinhado ao governo colonialista britânico. George Orwell (1903-1950), que vinha da classe média baixa, era militante socialista e anti-imperialista. 
Escrita pelo vencedor do Prêmio Pulitzer Thomas E. Ricks, essa atualíssima biografia dupla se concentra no período crucial da vida de Churchill e de Orwell: os anos 1930 e 1940, da ascensão dos nazistas até o rescaldo da Segunda Guerra Mundial. Hoje, impressiona testemunhar quão solitária era a posição de Churchill e de Orwell num momento em que a Europa parecia destinada à ditadura, fosse nazifascista ou comunista.
Apresentados como um par complementar, o político marginalizado em busca de redenção e o grande escritor ainda em formação trabalharam pelo mesmo objetivo, embora nunca tenham se encontrado.

"Leitura agradável e compulsiva, Churchill & Orwell impressiona pelo compromisso feroz que ambos tinham com o pensamento crítico." The New York Times Book Review
"Os dois nunca se encontraram, mas suas vidas e suas visões sobre como deveria funcionar a sociedade, noções de liberdade individual e limitações da política convergiam - pensamentos extraordinariamente harmoniosos em lugares diferentes. Realmente muito impressionante."John Le Carré

Relações internacionais do Brasil na era militar - Paulo Roberto de Almeida

Meu texto publicado mais recente: 



1322. “As relações internacionais do Brasil na era militar (1964-1985)”, In: Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (orgs.), O Brasil Republicano 4: o tempo do regime autoritário; ditadura militar e redemocratização; Quarta República (1964-1985). (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2019, pp. 287-312; ISBN: 978-85-200-1360-1). Relação de Originais n. 3078.

Da corrupção como um estilo de vida - Paulo Roberto de Almeida

As pessoas em geral acham que a corrupção política sempre existiu. Aceitam isso como uma fatalidade: “Ah, todos fazem...”. Correto. Mas elas — sobretudo simpáticas ao PT — se recusam a admitir que, sob essa organização criminosa travestida de partido político, chefiada por um mafioso, a corrupção mudou de natureza, passando do modo artesanal de produção da corrupção, que é o modo normal dos políticos, para o modo industrial de ampliação da corrupção, que se tornou sistêmica, abrangente, não mais de oportunidade ou nos interstícios da administração, mas a mola central, o coração do mecanismo, a perpetuação da corrupção pela corrupção, a invenção de coisas sem qualquer outra finalidade a não ser a de roubar por roubar, ou seja, o moto perpétuo da roubalheira generalizada e contínua, o deus ex machina da patifaria despudorada.
Fica muito difícil entender isso?
Seria impossível admitir essa simples verdade, já revelada por inúmeras investigações e pela confissão (ainda incompleta) do tesoureiro-mor da quadrilha travestida de partido?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9/10/2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Rio Branco, a diplomacia e o conhecimento da história - Cesar Maia

Conhecer a história é essencial. Melhor, em todo caso, do que ficar repetindo o que disseram filósofos alemães que não têm absolutamente nada a ver com a nossa diplomacia ou política externa...

RIO BRANCO E O PRATA!Da coluna de Cesar Maia, 9/10/2019

(José Alfredo Vidigal Pontes, historiador, autor dos livros ‘A Política do Café com Leite: Mito ou História?’ E ‘1932: O Caráter Nacional de um Movimento Democrático’ - O Estado de S. Paulo, 07)

“Um diplomata não serve a um regime e sim a um país”
Barão do Rio Branco

Nada mais atual e oportuno do que essa frase em epígrafe de José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como barão do Rio Branco. Monarquista convicto, serviu a cinco presidentes republicanos. Graças a ele resolvemos exemplarmente nossos problemas fronteiriços, propiciando boa coexistência e frutíferas relações.

No sul do País as trocas entre os povos antecederam o próprio estabelecimento das fronteiras, numa época em que eram apenas domínios espaciais ainda indefinidos dos impérios coloniais ibéricos. O comércio platino fortaleceu tanto os hispânicos como os luso-brasileiros, numa relação mútua de prosperidade, em meio a pontuais conflitos armados.

Apesar de seu passado monarquista, o barão foi convidado em 1893 por Floriano Peixoto a defender o Brasil numa querela fronteiriça com a Argentina, a qual envolvia boa parte da região oeste dos atuais Estados do Paraná e Santa Catarina. Em alguns meses preparou um estudo de seis volumes, A Questão de Limites Entre o Brasil e a República Argentina, e o enviou a Grover Cleveland, o então presidente norte-americano e árbitro da questão. Esse litígio, conhecido na época com a Questão de Palmas, foi decidido inteiramente a favor do Brasil por decisão de Cleveland, acatando os sólidos argumentos de Rio Branco. Pois ele não só conhecia profundamente os termos do Tratado de Madri (1750), como também a minuciosa e sigilosa cartografia hidrográfica luso-brasileira acumulada sucessivamente pelos brilhantes diplomatas Luís da Cunha e Alexandre de Gusmão.

O barão demonstrou claramente que não existe diplomacia eficiente sem conhecimento histórico, nem História sem embates diplomáticos.

Outra questão tratada na época por Rio Branco, ainda como embaixador especial, foi a do condomínio de acesso dos uruguaios ao Rio Jaguarão e à Lagoa Mirim, com civilizadas concessões da parte do Brasil. Três anos depois, em 1902, o barão era convidado a assumir o Ministério das Relações Exteriores, no governo Rodrigues Alves, sendo confirmado por todos os presidentes até sua morte, em 1912.

Como ministro, resolveu satisfatoriamente as questões do Acre e do Amapá, mas, anteriormente, ainda como advogado, deu prioridade às questões pendentes no Prata, pois tinha plena consciência de sua vital importância geopolítica para o Brasil. A partir da independência das antigas colônias sul-americanas, no século 19, foram realizadas as últimas grandes definições de fronteiras platinas mediante conflitos armados: a Questão Cisplatina, que resultaria na formação do Uruguai, e a Guerra do Paraguai. Na última década ainda restavam a Questão de Palmas, citada cima, e a da Lagoa Mirim para resolver e nesse momento Rio Branco foi convocado dado seu notório saber acerca dos antecedentes históricos das relações platinas.

A partir de 1580 houve um grande fluxo de comércio entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro, durante a união das coroas ibéricas. Os luso-brasileiros levavam açúcar, tabaco, tecidos e escravos africanos em troca de prata e couros. Porém, a partir de 1640, com a restauração da independência portuguesa, essas transações diminuíram. O império português estava vulnerável e descapitalizado, tendo como inimigos os espanhóis e os holandeses. Foi dentro desse contexto de penúria monetária que, em 1680, o Conselho Ultramarino, em Lisboa, decidiu fundar Colônia do Sacramento, atrevida cidadela na banda oriental do Prata, bem defronte a Buenos Aires, a qual procurava retomar o fluxo de comércio com a América espanhola e o consequente acesso a pagamentos em moeda.

Enfrentamentos bélicos nessa região começaram a partir de então, mas também um próspero comércio entre as duas praças. Nessa época Buenos Aires era um pequeno porto com cerca de 8 mil habitantes, atrofiado pelo centralismo de Lima, que monopolizava a aduana da prata de Potosí.

Quase um século depois, quando Colônia do Sacramento passou para o domínio espanhol, o censo de 1778 apontou 24 mil habitantes em Buenos Aires, o triplo. Era então uma cidade bem equipada de serviços, cuja atividade comercial havia favorecido a expansão urbana.

De outro lado, a existência de Colônia do Sacramento contribuiu para a formação de uma identidade local portenha, a qual seria o embrião de um sentimento regional, aumentando a importância relativa de Buenos Aires no império espanhol e resultando na criação do Vice-Reinado do Prata.

A cidadela portuguesa do Prata, além de ter criado condições geopolíticas para a assinatura do Tratado de Madri, estimulou a ocupação dos atuais Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul: gado selvagem dos pampas começou a ser levado para o abastecimento de Minas Gerais e Rio de Janeiro por tropeiros paulistas. O tropeirismo passou, então, a se constituir num fator estrutural no desenrolar de nossa história econômica, tornando viável a ocupação do sul do País, o abastecimento das minas de ouro e acumulando capital privado em São Paulo, que se imbricaria posteriormente com o açúcar, o café, as ferrovias e a indústria.

É curioso registrar que essa contribuição é originária inicialmente de muares, equinos e bois soltos pelos hispânicos que haviam retornado à vida selvagem. Rio Branco era ciente de todo esse histórico do processo de ocupação da Bacia do Prata, no qual o comércio foi o grande protagonista.

Uma reflexão sobre esse passado nos remete à importância da saudável integração econômica entre países vizinhos sem barreiras tarifárias.

O barão demonstrou que não há diplomacia eficiente sem conhecimento histórico...

Brasil: antecipando a derrocada - Paulo Roberto de Almeida e Cora Ronai

Cora Ronai, filha do grande, do enorme, do gigantesco intelectual que foi Paulo Ronai — salvo de uma morte quase certa na Hungria fascista por um diplomata brasileiro, Ribeiro Couto, outro grande intelectual —, Cora Ronai, eu dizia, nos leva de volta ao passado, ali pertinho, três anos atrás, 2016, para nos provar que a nossa vida, em especial a dos cidadãos cariocas e fluminenses, pode, sim, piorar, e bastante.
Pois eu, que não sou astrólogo, nem guru, como certo Rasputin de subúrbio, aquele subsofista da Virgínia, ouso prever que em menos de três anos, ou seja aí pelo início de 2022 — por acaso o ano de nosso Bicentenário da independência —, nossa vida, a minha, a de vocês, a de todos nós, terá piorado muito mais, em aspectos que vcs nem ousam imaginar. Esqueçam a mediocridade do crescimento - que é garantido -, esqueçam as reformas mal feitas, obra de um parlamento de assaltantes a céu aberto, esqueçam a desmoralização trazida pelos novos aristocratas do Antigo Regime, que são os membros do judiciário (com jota bem menor do que o rest), esqueçam os capitalistas promíscuos, que continuarão existindo graças a esses últimos, esqueçam as corporações sanguessugas que continuarão mamando nas tetas cada vez mais exauridas do Estado, esqueçam tudo isso. Nossas vidas ficarão culturalmente e moralmente mais degradadas porque estamos entregues a um bando de bárbaros ignorantes — uma redundância, eu sei — que são estúpidos ao ponto de cavar sua própria sepultura, que é também a nossa.
Não quero ser profeta do apocalipse, mas ouso predizer que o Brasil está afundando na decadência e na mediocridade, ambas encomendadas por elites ineptas e corruptas.
Sorry meus poucos leitores...
Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 9/10/2019

O bicho pega, o bispo come
Cora Ronai
O Globo, Segundo Caderno, 6.10.2016

Tenho uma certa inveja dos paulistas, que resolveram as eleições no primeiro turno e agora podem voltar a cuidar da vida. Conheço gente que gosta do Dória e gente que odeia o Dória; o grosso dos meus amigos, porém, votou nulo ou sequer saiu de casa para votar. Alguns desistiram do Haddad na última hora, quando ele convocou Lula para o seu palanque. Entendo eles. Entendo quem ficou em casa nessas eleições, entendo quem resolveu não compactuar com o jogo político.

Em circunstâncias normais, eu também não teria saído de casa dessa vez. Mas saí. A única coisa mais deprimente do que votar sem entusiasmo, escolhendo um candidato apenas para que outros não se elejam, é ver esses outros eleitos. 

Sim, o resultado poderia ter sido pior. Poderia ter dado Jandira e Bolsonaro, por exemplo. Ou Crivella e Jandira. Ou Bolsonaro e Crivella. Ou aquele cujo nome esqueci, o “Vote 16 contra burguês!”, e qualquer um desses.

Crivella e Freixo. Freixo e Crivella.

Não há perspectiva pela qual eu olhe para este resultado e ele me pareça sequer minimamente bom. Tenho alguma simpatia pelo Freixo como pessoa: acho que está equivocado politicamente, mas acho também que erra mais por tentar se colocar no lugar dos outros do que por má fé deliberada, coisa que não posso dizer do seu adversário. Detesto o seu partido, raivoso, arrogante, autoproclamado detentor de todas as virtudes. Detesto a sua militância patrulheira, que cada vez mais me confirma as razões para este sentimento e que me faz ter vontade de votar nulo até quebrar a urna. 

Ainda por cima ele tem o apoio da Jandira e do Lindbergh.

Mas não consigo me imaginar votando em Crivella nem no pior pesadelo: um demagogo cínico de fala macia que nunca teve o menor remorso em explorar as camadas mais fragilizadas da população, um homem que faz qualquer coisa para se dar bem. Aceitou ser ministro da pesca (!) da Dilma -- ministro da Dilma, gente, não esqueçam -- e, com a maior desfaçatez, votou pelo impeachment. Lealdade zero. Traz a família Garotinho de volta ao poder, junto com as forças mais obscurantistas e retrógradas do país.

Não é fácil escolher entre Jandira, Lindbergh e Garotinho. Não é fácil escolher entre as igrejas de Freixo e de Crivella. Mas ainda prefiro uma igreja desmoralizada, como a do Freixo, que vai ter que dialogar com quem pensa diferente se quiser se eleger e governar, a uma igreja em franca ascensão, como a do Crivella, que se basta a si mesma e não precisa de mais ninguém. Prefiro uma igreja que será no máximo uma questão local e dificilmente vai se expandir, do que dar púlpito a uma igreja que cresce a olhos vistos e já tem raízes fortes espalhadas pelo país.

Eu consigo olhar para a cara do Marcelo Freixo e ter uma conversa; eu não consigo olhar para a cara do Marcelo Crivella.

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Mas, como não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, mal o resultado foi divulgado, piorou: o discurso de Freixo na Cinelândia foi perfeito… para afastar os votos de que ele precisa. A militância achou lindo.

“A cidade é nossa!”

Não, migxs, lamento informar, mas a cidade não é vossa. Vossa é a Zona Sul, e ainda assim com ressalvas. A cidade, o todo da cidade, aquelas grandes áreas da cidade em nome das quais vocês pretendem falar, é do bispo, o real candidato dos pobres. Ele tem votos que vocês nunca vão conseguir ganhar, porque ali nos cafundós, ali onde não chegam nem luz nem água nem candidatos a cargos políticos, ali, onde a ausência do estado é absoluta, ali, naqueles cafundós, há uma igreja, e há um pastor, e esse pastor não vota no Freixo.

“Abaixo o golpe!”

Bravo, migxs. Com três míseras palavras vocês conseguiram alienar e ofender todo mundo que não acha que o impeachment foi golpe — e que, acreditem, é um bocado de gente. E, surprise!, um bocado de gente que tem, justamente, os votos de que vocês precisam. 

“Fora Temer!" 

Isso, migxs, isso. Só que o Temer, esse do “Fora!”, é, por acaso, presidente do Brasil, país no qual se localiza a nossa Muy Leal e Heróica. Que vai precisar de verbas federais, aquela coisa que não está sobrando. Temer, esse do “Fora!”, leva formalidades a sério, gosta que lhe deem importância e guarda mágoas. Tudo isso estava explicito na famosa carta em que se queixava de ser um vice decorativo, lembram? Pois lembrem-se, façam um esforço. Ninguém precisa amar Temer ou fazer-lhe juras de amor — na verdade, acho que só a Marcela ama o Temer — mas convém a quem quer governar uma cidade, ainda mais falida feito a nossa, não hostilizá-lo como primeiro ato público de campanha. Porque quando um presidente cisma com uma cidade, ele pode fazer muita coisa para atrapalhar. Nós sabemos bem disso aqui no Rio. Sofremos muito com prefeitos e governadores que antagonizaram presidentes, e só saímos (um pouco) da rua da amargura quando o PT e o PMDB fluminense foram para a cama, mas hoje ninguém quer mais lembrar disso, que tempos aqueles. 

Sei lá, é só uma opinião, mas Freixo, ó, por caridade, começa a falar para quem não votou em você, quem não gosta do Psol e quem não te acha o rei da cocada preta, ou o Crivella ganha.

Não com um, mas com os dois pés nas costas. 

(O Globo, Segundo Caderno, 6.10.2016)

terça-feira, 8 de outubro de 2019

The Brazilian Amazon, at CUNY - Larry Rohter, Anthony Cak

The Brazilian Amazon:
Exploration, Exploitation, Sustainability

Friday, October 25, 4 PM
Segal Theatre
The Graduate Center, CUNY

Cândido Rondon, a Brazilian military officer and explorer, is considered one of the foremost Brazilian heroes and patriots known for his lifelong support for the indigenous Brazilians. He was the first director of Brazil’s Indian Protection Services (later known at FUNAI) and supported the creation of the Xingu National Park. He spent his life exploring Brazil, including mapping the state of Mata Grosso, advocating for the indigenous peoples, and leading Theodore Roosevelt’s expedition into the Amazon. The Explorers Club of New York nominated him for the Nobel Peace Prize in 1957. 

Larry Rohter's new book trackes Rondon's paths in the Amazon and discusses how and who will arise to safeguard the Brazilian Amazon's future. 
Larry Rohter (M.A., Columbia University) served as a correspondent in Rio de Janeiro for fourteen years for Newsweek and later as The New York Times bureau chief. He is widely considered a top expert on Brazil. He is the author of three books about Brazil, the most recent of which is a biography of the explorer, scientist and statesman Cândido Rondon, Rondon : Uma Biografia(Objetiva, 2019).

Anthony D. Cak (Ph.D., Indiana University) is the Associate Director of the Environmental Sciences Initiative at the CUNY Advanced Science Research Center. His dissertation focused on the impacts of deforestation and urban development on the water chemistry of small streams in the Brazilian Amazon, in and near the city of Altamira in the state of Pará. Dr. Cak's research interests include ecosystem ecology, stream and river ecology, geospatial technology, data visualizations, and science policy and communication.

China: mini-reflexão sobre um caso de sucesso - Paulo Roberto de Almeida

Uma breve síntese sobre uma das mais fantásticas experiências de renovação civilizatória jamais conhecida na história da humanidade.
A China vem da mais antiga tradição cultural de toda s trajetória humana sobre a Terra, mais ou menos em paralelo com a tradição judaica, que se preservou em sua essência, mas que nunca teve continuidade territorial, política e econômica, por ser um pequeno povo, sem pretensões ecumênicas, logo derrotado e disperso no mundo por um grande império. Mas, proporcionalmente, o povo judeu foi o que mais contribuiu para os avanços culturais da Humanidade, ainda que em ordem dispersa e não organizada institucionalmente, como a China, o antigo despotismo hidráulico de que falava Karl Wittfogel.
Ela esteve na vanguarda do mundo, sem pretensões universalistas, durante muitos séculos, mas por causa de um faux-pas de um imperador da dinastia Qing, ela se descolou do resto do mundo, e falhou na passagem a uma civilização industrial, que ela só alcançou no pós-maoísmo, o mais demencial episódio de desgoverno de sua história, e depois de quase dois séculos de decadência e de humilhações ocidentais.
Graças a um modesto imperador, Deng Xiaoping, ela ressurgiu para o mundo e sobretudo para si mesma, ainda que conservando traços de autocracia, que sempre foi a sua forma de governo habitual.
O mais importante, para o resto da humanidade, é que ela desempenha um papel eminentemente positivo no plano econômico, ao impulsionar o crescimento de outros países, e no plano dos progressos sociais. Ela já é a locomotiva econômica do mundo, a promotora da globalização e da interdependência.
Eu costumo dizer que, depois do grande conflito global (e ideológico) dos anos 1947-1991, que foi a Guerra Fria geopolítica EUA-URSS, estamos assistindo hoje (mas isso vem desde o final dos anos 1990, justamente) a uma Guerra Fria geoeconômica, mas que a China já venceu, inclusive por erros primários dos EUA, que de forma paranoica elegeram a China como adversária, e não como parceira, como deveria ser, não apenas com vantagens mútuas, mas em benefício de toda a humanidade. Em 2025, os chineses terão realizado o seu projeto Made in China — que não é nacionalismo tacanho, e sim liderança tecnológica, encerrando a fase de pirataria, contrafação e simples cópia— e estarão na liderança dos progressos tecnológicos mundiais. 
Serão uma democracia? Provavelmente não, mas isso não tem importância para o resto da humanidade, pois a China não pretende impor a ninguém, a nenhum país, o seu modelo político, que pode ser uma espécie de “despotismo esclarecido”, em todo caso baseado na globalização, no livre comércio e na interdependência ativa, de que é exemplo o BRI, a maior iniciativa de infraestrutura de toda a história da humanidade. A China faz o mundo se tornar verdadeiramente global.
Pena que o outro grande império da atualidade, os EUA, tenham retrocedido tanto no caminho da civilidade política e dos progressos culturais, e estejam hoje sob a administração caótica de um déspota ignorante (bem mais do que isso: estúpido e megalomaníaco), e tenham elegido a China — sob a influência arrogante dos paranoicos do Pentágono—como “inimiga”, em lugar de parceira, no grande empreendimento globalizador — e GLOBALISTA —que seria benéfico para toda a humanidade. Espero que os eleitores americanos  recomponham uma administração racional dentro em breve.
Pena que a Europa ocidental, esse grande cadinho cultural civilizatório, permaneça ainda um mosaico de povos e de culturas, sem grandes condições de liderar um projeto globalista democrático. E pena também que a Rússia tenha retornado ao seu padrão autocrático neoczarista, um império com pés de barro e sem as tradições humanistas da ponta ocidental da Eurásia. 
Também é uma pena que o Brasil e a América Latina tenham permanecido na letargia dos progressos lentos e descontinuados, por força de elites medíocres e corruptas, que aprofundam seu atraso no plano global. Atualmente o Brasil enfrenta um retrocesso em todos os planos, jamais visto em toda a sua história de 200 como nação independente, sob uma administração mais que ignara, inepta e estúpida, sectária e doentia, próxima de bárbaros desvairados.
Quanto à China, eu espero que Hong Kong resista aos avanços despóticos do novo imperador, e que, em 2047, ela seja bem mais parecida com a pequena ilha de bravos lutadores pela democracia, do que Hong Kong se pareça com a atual administração do continente.
Espero não estar errado em meus prognósticos, que de toda forma não assistirei.
Boas reflexões a todos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de setembro de 2019

O Brasil e o Atlântico Sul - Rubens Barbosa (OESP)

O BRASIL E O ATLÂNTICO SUL
 Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 8 de outubro de 2019

Na definição do Conceito Estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como uma área geoestratégica prioritária, mas não se exclui totalmente a possibilidade de sua atuação “onde possível e quando necessário”, caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com incorporação dos assuntos do Atlântico Sul no escopo estratégico da organização.
Em pronunciamento recente, o atual ministro da defesa Nacional, João Gomes Cravinho, observou que “a segurança do espaço euro-Atlântico tem de ser pensada a partir das pontes que o Atlântico permite criar e para as quais Portugal tem um posicionamento privilegiado para contribuir ativamente”.
Dentro desse entendimento, Portugal está criando o Centro para a Defesa do Atlântico (CeDA) na ilha dos Açores. O CeDA tem como objetivo a reflexão, a capacitação e a promoção da segurança no espaço atlântico. O Centro pretende tornar-se um forum multinacional que contará com a participação de peritos, civis e militares de países localizados na bacia atlântica ou com interesses nesse espaço.  
Localizado na ilha Terceira, em parte das instalações de base norte-americana, e em Lisboa, o CeDA deverá focalizar inicialmente as dinâmicas de insegurança no Golfo da Guiné e na África Ocidental, estando, contudo, vocacionado para trabalhar todas as temáticas relevantes para a segurança do Atlântico de Norte a Sul, de Este a Oeste e onde a capacitação no domínio da defesa possa contribuir positivamente. Irá estabelecer parcerias, desenvolver e implementar projetos de capacitação que permitam aos Estados ribeirinhos do Atlântico reforçar as suas capacidades na prevenção, combate e mitigação das ameaças transnacionais tais como o tráfico de drogas, de seres humanos e de armas, pirataria e assalto à mão armada contra navios, a pesca ilegal, não regulamentada e não declarada. Também a poluição, as alterações climáticas e a resposta de emergência estão na mira; e, numa fase posterior poderão surgir as ameaças cibernéticas, entre outras possíveis a se prevenir.  O balizamento conceitual do Centro está ainda em desenvolvimento, com contribuições dos países atlânticos envolvidos, entre os quais o Brasil.
No que concerne às principais atividades do CeDA, para além de projetos de capacitação através de parcerias com a ONU, OTAN, União Europeia, União Africana, entre outros, o Centro trabalhará igualmente na busca, tratamento e análise de informação; na elaboração de estratégias de capacitação e doutrina; na monitorização de ameaças transnacionais e na implementação de projetos.
O Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, deverá realizar um Seminário para apresentar, discutir e divulgar o CeDA. Este evento contará com especialistas, nacionais e estrangeiros, civis e militares, que aprofundarão os requisitos e a missão fundamental do Centro e, como estudo de caso, serão analisadas as várias dimensões dos desafios à segurança na região do Golfo da Guiné.
No início de 2020, prevê-se, nos Açores, uma primeira ação de formação de uma rede de peritos internacionalmente reconhecidos, que possam dar continuidade ao trabalho de capacitação junto dos quadros civis e militares, bem como das Forças de Defesa e Segurança, dos países do Golfo da Guiné.
Com a constituição do CeDA, Portugal pretende dar corpo a ideia de contribuir para manter o Atlântico como um espaço de paz e segurança internacional e de trabalhar com parceiros atlânticos na identificação de contribuições para esse objetivo. 
O Brasil manifestou preocupação porque não foi informado previamente da criação do Centro e pela intenção explicitamente indicada pelo Conselho de Ministros da OTAN de empregar o Centro como plataforma para a Organização e para a União Europeia com vistas à segurança de todo o Atlântico (incluindo o Atlântico Sul, em especial o Golfo da Guiné). O Brasil, nessa região, está presente e desenvolve esforços para o enfrentamento da pirataria.
O Brasil sempre deixou claro sua reserva no tocante às iniciativas que incluam também a Bacia Atlântica e, via de consequência, o Atlântico Sul, como área de atuação da OTAN. O sul do Atlântico é área geoestratégica de interesse vital para o Brasil. As questões de segurança relacionadas às duas metades desse oceano são distintas e devem merecer respostas diferenciadas – tão mais eficientes e legítimas quanto menos envolverem organizações ou Estados estranhos à região.
A Politica Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a Defesa Nacional e amplia o horizonte estratégico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul e a África Ocidental e Meridional. Por essa razão, o Brasil não deveria ignorar essa iniciativa. Seria de nosso interesse acompanhar de perto a definição de como o Centro vai atuar.
Por outro lado, o governo dos EUA decidiu designar o Brasil como “aliado prioritário extra-OTAN”, elevando a parceria estratégica com os Estados Unidos a um novo patamar de confiança e cooperação. Esse status é conferido a número restrito de países, considerados de interesse estratégico para os EUA, e os torna elegíveis para maiores oportunidades de intercâmbio e assistência militar, compra de material de defesa, treinamentos conjuntos e participação em projetos. Embora não tenha uma relação direta com a OTAN, o novo status do Brasil recomendaria o acompanhamento do que está ocorrendo na Organização.
O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, esteve em Portugal recentemente e foi informado da criação do Centro. Para manter a prioridade sobre o Atlântico Sul, como previsto na Estratégia Nacional de Defesa, o Brasil deveria participar  da criação do Centro e oferecer sua contribuição na definição de suas atribuições e formas de atuação.

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)