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terça-feira, 11 de agosto de 2009

1278) Direito Agrario, Xico Graziano

DIREITO AGRÁRIO
Xico Graziano - AgroBrasil
O Estado de S. Paulo, terça-feira, 11 de Agosto de 2009

O Direito Agrário nasce na Roma antiga. As questões relativas à posse e ao uso da terra acabam consolidando um capítulo especial da ciência jurídica. Nele reside a função social da propriedade rural. Teoria da reforma agrária.

Os primeiros relatos sobre conflitos agrários vêm da Grécia antiga. Licurgo, legislador de Esparta, pioneiramente reparte as terras, inaugurando um Estado militar, escravocrata e comunista. Invenção misturada da História.

Entre os séculos 5º e 1º a. C., na expansão da Roma republicana, as terras do Lácio são confiscadas e transformadas em ager publicus, passíveis de ser arrendadas aos cidadãos romanos. Desse processo brotam os inúmeros conflitos com os patrícios, a população nativa. Instala-se o latifúndio escravista típico do Império Romano.

A gênese do Direito Agrário brasileiro se encontra na legislação portuguesa sobre as sesmarias. Inventado em 1375 por dom Fernando I, o Formoso, o sistema de dação aos súditos de fatias de terras das colônias visava a assegurar o abastecimento de Portugal. Origem das capitanias hereditárias.

O Brasil foi dividido em 12 faixas de terra, com direito de colonização e exploração cedido aos súditos da Coroa. O sistema de hereditariedade acabou em 1759, nas reformas do marquês de Pombal. Em 1822, com a Independência, desmorona o sistema sesmarial, substituído mais tarde, em 1850, pela Lei de Terras.

Aqui começa a verdadeira história da propriedade privada no Brasil. A nova lei, de inspiração republicana, passa a regular a compra e venda de glebas, bem como a discriminação e destinação das terras devolutas. Estas, fora do domínio de particular, nem ocupadas por posses ou uso público, eram as terras de ninguém.

Quase um século mais tarde, na Constituição de 1946, o Direito Agrário incorpora a desapropriação por interesse social, distinguindo-a da utilidade pública, esta adequada às intervenções urbanas. A reforma agrária entra na pauta política, prevendo a justa distribuição da propriedade rural. Somente em novembro de 1964, porém, vinga o Estatuto da Terra. Nele se explicita o conceito fundamental da reforma agrária: a função social da propriedade rural. O que significa isso?

Significa que a terra deve ser palco da produção, gerando emprego e renda. Não pode, portanto, ficar ociosa, desocupada, servindo à especulação. Terra de justo trabalho, base do progresso. A propriedade produtiva opõe-se ao latifúndio ocioso.

O texto legal, porém, estabelece ainda que deve a exploração fundiária servir à qualidade de vida e preservar o meio ambiente. E afirma que todos esses requisitos, de produção e bem-estar social, devem ser atendidos simultaneamente, quer dizer, uma fazenda não pode obter elevada produtividade, por exemplo, à custa do trabalho escravo. Muito bem.

Quando uma propriedade rural cumpre sua função social, está quite com a sociedade. Parabéns. Ao contrário, se ela explora mal a terra, degradando-a ou gerando conflitos trabalhistas, seu destino poderá ser a desapropriação, por interesse social, para fins de reforma agrária. Vira um assentamento.

Assim se estabelecem, entre tantos, os princípios da produção justa e da reforma agrária no Direito Agrário brasileiro. Uma propriedade rural é impelida a ser produtiva, senão poderá ser desapropriada. A função social, claramente, portanto, limita o direito de propriedade. A regra vale para o campo, não atingindo os bens da cidade.

Nenhum industrial, nem comerciante, se obriga a obter produtividade mínima. Se ele quiser fechar seu negócio temporariamente, para aguardar melhor oportunidade de mercado, ou reduzir a produção por qualquer motivo, que seja esconder o jogo do genro interesseiro, jamais alguém o questionará por isso. Problema deles.

Na roça, não. O fazendeiro precisa garantir boa produtividade, além de cumprir a legislação trabalhista e ambiental, sob pena de perder a terra. O Direito Agrário, neste caso, opõe-se à lógica econômica capitalista. Mesmo enfrentando uma crise de rentabilidade, altamente endividado, fica impedido o agronegócio de baixar seu ritmo. Desleixar na produtividade pode provocar-lhe uma vistoria do Incra.

Uma razão moral e religiosa, ademais, justifica a função social no campo. Ao contrário da indústria, erigida pelo capital e pelo trabalho humano, a propriedade rural institui-se sobre uma gleba apropriada da natureza. No início da colonização, tomada de graça dos povos primitivos. Claro, para ser produtiva, investimentos se fazem necessários. Mas a parcela de terra, propriamente, ninguém a edificou. Dádiva divina.

Nessa contradição sobre o direito da propriedade rural se esconde o conflito básico da questão agrária. Primeiro, na comprovação técnica sobre o cumprimento da função social da terra. O modo de cálculo, o tempo considerado, a vistoria tendenciosa, tudo influencia a conta oficial. Segundo, nas estripulias dos sem-terra, que, julgando a seu valor, decidem invadir uma fazenda, forçando sua desapropriação. Fazem justiça com as próprias mãos. Violência na certa.

Neste 11 de agosto se comemora o Direito brasileiro. Os estudantes divertem-se nos bares, curtindo a "pindura". Alguns malandros no campo, é verdade, fazem dívidas para nunca as honrar. Mas os agricultores brasileiros não querem dar o cano em ninguém. Carecem, isso sim, de apoio para solucionar seus problemas, gerados no mercado globalizado, sem reforçar sua antiga imagem de latifundiários. Procuram saídas dentro da lei, modernas, democráticas.

Que o Direito Agrário se afirme nos tribunais, com advogados isentos e competentes. Ajuda a trazer paz no campo.

4 comentários:

Pedro Erik disse...

Ótimo texto do Graziano.

Abraço,
Pedro Erik

Unknown disse...

PRA,

muito bom o texto. Nao serio o caso de unir duas causas? Ao invez de invadir latifundios improdutivos (cuja qualificação como tal é sempre complicada), sugiro ao MST procurar e invadir fazendas que se utilizem do trabalho escravo. Lutamos contra causas e consequências dos dois problemas ao mesmo tempo. Como ser contra?

Vinícius Portella disse...

"Mas os agricultores brasileiros não querem dar o cano em ninguém. Carecem, isso sim, de apoio para solucionar seus problemas, gerados no mercado globalizado, sem reforçar sua antiga imagem de latifundiários."

Altamente discutível o que Graziano disse nessas palavras. Penso que não possamos colocar todos "os agricultores brasileiros" no mesmo saco, do que pode resultar tanto um perfil idealizado destes como o seu reverso demonizado. Além do que seria melhor explorar, particularmente, dando nomes aos bois, o acesso de certos grupos de agricultores à terra em seu devido contexto. Penso que se, de uma maneira geral, há uma auta tecnologia empregada na produção agrícola no país, no tocante às relações sociais, econômicas, trabalhistas, etc não há homogeneidade proporcional, subsistindo, inclusive, o trabalho escravo, ou mesmo diferenças impostas pelo plantio de diferentes culturas. Penso que o estatuto da terra, suas relações, em São Paulo, por exemplo, seja muito diferente do que em algum lugar no interior do Brasil, locais em que o Estado ainda mal tem condições de se afirmar lá e dos quais pouco temos notícias. Perdão se não me fiz totalmente claro, mas creio que estas sejam algumas das questões imprescindíveis neste debate. Respostas, por favor!

Um grande abraço,

Vinícius Portella disse...

No mais, eu gostei do texto e gostaria de saber mais sobre o assunto. É claro que este debate está intimamente ligado à adoção de um modelo agrícola cada vez mais competitivo internacionalmente (o que penso dever implicar na minimização das tensões internas), além das transformações pluridimensionais acarretadas pelo agronegócio. Saberemos lidar com isso e extrair os melhores frutos disso? A julgar por nossa história, receio que não.

Abraços,