Talvez esse seja o problema: colocar no mesmo nível dois países radicalmente diferentes em suas posturas internacionais...
'Incomoda o Brasil agir sem pedir licença'
Entrevista Celso Amorim
Eliane Oliveira
O Globo, 25/12/2009
Ministro do Exterior brasileiro critica Washington sobre Honduras e Colômbia, e defende diálogo com Irã
Ainda festejando a repercussão da participação do Brasil na conferência de Copenhague, o ministro do Exterior, Celso Amorim, diz faltar franqueza na relação entre EUA e América Latina, e declara não se dar por satisfeito com as garantias de Washington de que o uso de bases na Colômbia, por tropas americanas, será restrito a este país. Queixa-se da demora dos EUA em pressionar Honduras. Sobre a relação com o Irã, afirma não crer em problemas com os EUA, dizendo que incomoda a certos setores o Brasil agir sem pedir licença. A reunião sobre o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares no ano que vem, frisa, será um teste para saber se as potências atômicas terão moral para cobrar dos outros.
O GLOBO: Afinal, incomodou ou não os EUA a visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao Brasil?
Celso Amorim: Não creio. O próprio presidente Barack Obama enviou uma carta pedindo para intercedermos.
Mas como intercedermos sem o diálogo? Pode ser que algum setor nos Estados Unidos, ou algum setor daqui, tenha ficado incomodado.
Conversei com a secretária de Estado, Hillary Clinton, e não senti de sua parte qualquer malestar.É muito incômodo que o Brasil faça as coisas sem pedir licença.Foi assim com a Síria e com a Líbia.Se o Brasil age por sua própria iniciativa, incomoda os intermediários da dependência.
O presidente Lula diz acreditar que o programa nuclear do Irã terá uso pacífico, mas também argumenta que EUA e Rússia não têm autoridade moral para criticar o Irã, porque possuem arsenal nuclear. Isso é uma defesa implícita do direito dos iranianos a armas nucleares?
Amorim: O Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é muito claro em seu artigo 6o: estabelece que um dos objetivos é o desarmamento das potências nucleares. Os países não nucleares se comprometem a não ter armamento nuclear e os nucleares se comprometem a se desarmar. Durante anos e anos só assistimos ênfase no aspecto da não-proliferação e pouquíssimo desarmamento. Agora, o presidente Obama, pela primeira vez em muitos anos, tem voltado a falar, até de maneira retoricamente mais forte, na eliminação total das armas nucleares, ou num mundo livre de armas nucleares, embora o horizonte seja longínquo. É preciso que ocorram passos concretos. A próxima conferência no TNP, em abril ou maio, em Nova York, será um teste para sabermos se as potências nucleares estão também dispostas a se desarmar. Se não se desarmam, não têm moral para cobrar dos outros. O Brasil adotou sua posição de não ter armas nucleares.
E especificamente no caso do Irã?
Amorim: Na medida em que temos alguma chance, procuramos ajudar a encontrar um caminho que favoreça o diálogo. O Brasil tem um bom diálogo com os Estados Unidos e o Irã.
O assessor para assuntos internacionais do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, disse que há" uma certa decepção" e um sabor de "frustração" com o governo Obama na América Latina.Qual a sua avaliação deste primeiro ano de Obama?
Amorim: Ainda está um pouco cedo para avaliar o primeiro ano. Falta um mês. De repente, há alguma evolução.
Muitas coisas sequer chegam ao presidente Obama. Em alguns casos, deveria haver mais transparência.
São exemplos as bases militares na Colômbia e Honduras, quando houve demora em se fazer pressão sobre os golpistas. Mas, de forma geral, não vejo interposição entre as posições americana e brasileira.
No caso de Honduras, por que não há a mesma intransigência na defesa da democracia como um valor essencial em Cuba e no Irã?
Amorim: O Irã é um caso totalmente à parte. Bem ou mal tem eleições, ações distintas, posições distintas e várias forças sociais. Se você pega a lista de aliados dos EUA, há países questionáveis onde são usadas até bases militares. Veja se há eleições, veja os direitos da mulher. Nas relações internacionais você não pode ficar escolhendo. No caso de Honduras, houve um golpe de Estado, com militares tirando o presidente com o cano de espingarda na cabeça.
Nós, da América Latina, somos corretamente traumatizados com esse tipo de situação. Honduras assinou a carta da OEA (Organização dos Estados Americanos), tem obrigações que o Irã não tem conosco.Houve uma posição unânime da OEA condenando o golpe.
Houve críticas ao Brasil por ter abrigado o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
Amorim: Ao Brasil, que está dando proteção a Zelaya, não cabia qualquer tentativa de negociação. Zelaya chegou a nossa embaixada sem ter sido previamente convidado, mas chegou lá como presidente legítimo.
A proteção foi reconhecida por todos. Sua chegada à embaixada acabou criando as condições para o diálogo, embora não tenha saído o resultado que esperávamos.
O acordo militar entre EUA e Colômbia gerou uma forte crise entre colombianos e venezuelanos. O Brasil intermediaria um entendimento?
Amorim: Para intermediar, é preciso que haja desejo dos dois lados.
Infelizmente, não estou percebendo esse desejo. Cada um tem lá suas razões e aponta lá seus motivos. No momento em que houver disposição, o Brasil está pronto a ajudar.
A carta enviada pelo governo dos EUA aos ministros da Defesa da América do Sul dando garantias de que o acordo se limitaria ao território colombiano satisfez o Brasil?
Amorim: Na verdade, Hillary Clinton enviou duas cartas. Isso significa que está errada a interpretação de que os EUA não deram importância às reclamações dos vizinhos. Porém, é claro que, mesmo que se dê todas as garantias, sempre há algum incômodo.A própria Colômbia também deu garantias formais. Mas não posso dizer que estou satisfeito. Se seu vizinho chegar amanhã e acumular um arsenal, você continuará preocupado.Este é um assunto que não morreu, as conversas terão que continuar.
Esse episódio contribuiu para arranhar as relações com os americanos?
Amorim: É preciso mais franqueza na relação entre EUA e América Latina e Caribe. Devo dizer que, às vezes, os altos escalões do governo americano não tomam conhecimento de certos fatos, como as bases na Colômbia e a Quarta Frota. É como se tivessem seguido processos mais ou menos automáticos.
O Brasil é visto como aliado dos EUA no Oriente Médio?
Amorim: Somos aliados no sentido de querermos a paz. E somos aliados no sentido que somos interlocutores com vários dos principais atores da região.
Como o senhor avalia a falta de acordo na conferência da ONU sobre o clima, em Copenhague?
Amorim: Demos um passo importante.Foi criado um novo grupo, o Basic (Brasil, África do Sul, Índia e China), que protagonizou uma negociação decisiva com os Estados Unidos.É uma mudança de poder.
O papel de mediador-chave nas negociações do clima pode ajudar o Brasil a conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU?
Amorim: Isso será uma consequência.Se a carta da ONU estivesse sendo escrita hoje, o Brasil seria membro e talvez outros países não fossem. Estou tranquilo a esse respeito.
Existe perspectiva de um acordo na próxima reunião sobre o clima, no México?
Amorim: Confio muito na opinião pública e na consciência mundial. O esforço que foi feito na conferência fará com que, daqui para a frente, não possa haver mais recuos, apenas avanços. O Brasil, por exemplo, não só colocou metas ambiciosas, como disse que vai poder contribuir para ajudar os outros. China e Índia também avançaram, não como queríamos, mas avançaram.
E quanto aos EUA?
Amorim: Acho que os EUA terão que avançar mais no futuro. O passo que eles deram foi modesto, mas se você comparar com o governo anterior, que não queria fazer nada, melhorou.A pressão vai aumentar.
Qual a importância do Brasil nesse processo de negociação?
Amorim: O Brasil serviu como balizador, para mostrar que uma posição muito rígida por parte dos países emergentes não teria legitimidade.
Ao mesmo tempo, colocou-se do lado deles para negociar adequadamente com os ricos e os EUA.
A América Latina se dividiu radicalmente nas negociações de Copenhague.Como o senhor vê a posição de Bolívia e Venezuela que, embora alegassem divergências políticas, estariam apenas defendendo seus interesses como produtores de combustíveis fósseis?
Amorim: É um dilema que os organismos multilaterais têm de enfrentar, pois negociar o tempo todo entre mais de 190 países não dá. Por outro lado, quando se faz um grupo negociador, alguns sempre ficam de fora e isso gera ressentimento.Esse é um aspecto que cada vez mais a ONU terá que levar em conta. A era dessas resoluções todas por consenso já está meio superada.
Quais os próximos passos?
Amorim: Até 31 de janeiro, os países têm que listar suas metas e as nações em desenvolvimento, suas ações que terão como resultado a redução das emissões.
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