Percival Puggina
Em abril, Lula e Bono encontraram-se em Londres. Elogios recíprocos levaram o cantor a afirmar que Lula é o herdeiro de Mandela como interlocutor dos pobres. Essa matéria foi recuperada nos últimos dias em virtude do falecimento do sul-africano. Bono não sabe que Lula, há muito tempo, deixou de ser pai dos pobres, se um dia o foi, para se tornar prestativo parceiro dos mais ricos. Mas o que me interessa aqui são outros paralelismos.
Mandela ficou quase trinta anos preso e, ao sair, empenhou-se em construir a unidade nacional sul-africana. Lula ficou trinta dias na cadeia, como grevista e, quando pode, cobrou pensão vitalícia, dizendo-se perseguido da ditadura. Mandela recebeu formação de guerrilha e terrorismo em países comunistas. Sua militância afinava-se com a geopolítica soviética. Foi treinado no uso de bombas e minas terrestres. O MK, organização terrorista que comandou, era, ao mesmo tempo, a mão pesada do CNA (partido clandestino, opositor ao Apartheid) e do também proibido PC sul-africano. Depois que chegou à presidência, em 1994, seu partido nunca mais saiu do poder. Mandela usou a retórica, o exemplo e a força para construir a unidade nacional e superar o racismo num país que, em matéria de discriminação, só perdeu para a Alemanha nazista. Lula criou o PT, em 1980, como um partido socialista e tem sido permanente aliado do PCdoB. Sua legenda conquistou o poder em 2003 e se prendeu à cadeira com tarraxa, parafuso e contraporca. Tanto o CNA quanto o PT mancham suas imagens no longevo exercício do poder com estratégias de aparelhamento das instituições e casos de por corrupção ativa e passiva.
Mandela, glamourizado pelo cinema, recebeu sozinho méritos que também são de Federik De Klerk. Era dele o poder e foi dele a decisão de acabar com o Apartheid, legalizar o CNA e libertar Mandela. Lula, cuidou pessoalmente de transformar em bônus seu o produto das políticas de seus antecessores, cuja vida, anteriormente, infernizou tanto quanto pôde.
A presidente Dilma, ao falar no FNB Stadium, proclamou: "Mandela é um exemplo e referência para todos nós!". A transmissão não tinha o áudio ambiental, mas imagino que aquela inaudita revelação, apregoada assim, de súbito, tenha provocado comoção nacional e arrancado um prolongado "oooooh!" do público presente. Pus-me a pensar. Se Dilma, de fato, considera Mandela um exemplo, por que, raios, ela, Lula e seu partido não recolhem dele o que de positivo poderiam recolher? Por que não aprendem com Mandela a parar de falar em raça, em cotas, em cor da pele e dos olhos? E por que não aprendem dele que ajustes de contas e revanchismo não resolvem o passado e atrapalham o futuro?
Existem duas saídas quando se deseja pacificar um país após longos conflitos: a primeira é esquecer, a segunda é lembrar. O esquecer conduz à anistia. O lembrar induz ao julgar, mas não é incompatível com a anistia. Na África do Sul, ao fim do apartheid, ocorreu um processo bilateral, com confissões públicas e pedidos de perdão, seguidos de anistia e reparação. Funcionou? Mais ou menos. A longa tradição brasileira é outra. Pesquisando, encontrei, no período republicano, 15 anistias políticas implicando esquecimento, perdão e, muitas vezes, reparação. Mas já li que houve mais de 40! O que não conheço é outro país onde, tendo-se produzido anistia, perdão e reparação, transcorrido um quarto de século se insiste em pealar bruxas do passado! E de um único ninho de bruxas.
Zero Hora, 15 de dezembro de 2013
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