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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Nunca Antes na Diplomacia: Prefacio do Embaixador Rubens Antonio Barbosa

Nunca Antes na Diplomacia...
ensaios sobre tempos não convencionais na política externa

Paulo Roberto de Almeida
Em publicação pela Editora Appris, Curitiba, 2014


Prefácio
Embaixador Rubens Antônio Barbosa

“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma pequena aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste bravamente ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos...”. Assim começa cada nova aventura dos dois heróis daquela pequena aldeia, Asterix e Obelix: ajudados por uma poção mágica (apenas o baixinho Asterix, já que o gordo Obelix caiu num caldeirão da poção quando bebê), ajudam a recuperar um pouco do orgulho abatido dos gauleses, depois da derrota frente aos legionários de Júlio César.
Paulo Roberto de Almeida não é exatamente um “asterisco” bibliográfico na literatura de relações internacionais e de política externa do Brasil. Ele tampouco se parece com Obelix, mesmo se, vez por outra, arremessa petardos intelectuais em direção daqueles que Raymond Aron costumava chamar de “almas cândidas”, ou seja, os acadêmicos ingênuos que interpretam o mundo através de seus livros, ou de modelos teóricos aparentemente racionais, mas alheios às realidades econômicas e geopolíticas de uma ordem internacional anárquica e sempre cambiante. Desde 1993, quando publicou seu primeiro livro, sobre o Mercosul, acumulou mais de uma dúzia de obras de destaque nesses campos, além de dezenas de artigos em revistas no Brasil e no exterior.
Este livro, no qual ele reuniu alguns dos seus trabalhos sobre a diplomacia e a política externa do Brasil, apresenta esse seu lado analítico “gaulês”, no exame e na avaliação do que representaram, para o Itamaraty, os anos de diplomacia partidária, um período de desvios nas melhores tradições da Casa de Rio Branco. As políticas seguidas por Lula e pelo PT desfizeram, pela primeira vez em quase dois séculos, o consenso nacional que sempre existiu em torno dessa diplomacia, para surpresa de muitos que, como eu, acompanham ou participam da política externa.
Quando Paulo Roberto trabalhou comigo, na Embaixada do Brasil em Washington, entre 1999 e 2003, eu o qualifiquei de accident-prone diplomat, pelo seu lado provocador, talvez até arrogante, na defesa de seus argumentos – uma atitude que ele mesmo chama de “contrarianista” –, o que o levou a contestar, mais de uma vez, antigas posições da diplomacia brasileira. Sua resistência “gaulesa” está bem exemplificada aqui, não exatamente numa crítica ao Itamaraty, que ele defende a cada vez, mas ao que já se convencionou chamar de “diplomacia companheira”, muito bem acolhida por quase todos os militantes da causa, mas essencialmente nociva, pelos seus resultados efetivos (na verdade, falta de), do ponto de vista dos interesses nacionais.
Muitas de minhas opiniões – expostas de forma menos radicais, é verdade – coincidem com suas críticas a essa “diplomacia do nunca antes...”, um exemplo, entre vários outros, da vontade de protagonismo político dos novos “donos do poder”, na conhecida expressão de Raymundo Faoro. O Itamaraty continuou a fazer diplomacia, mas, a partir de 2003, passou a estar acompanhado – ou, melhor, controlado indevidamente – por aqueles que passaram a determinar a política externa do Brasil com base em critérios essencialmente partidários. As novas orientações então dadas para a diplomacia a ser promovida pela Casa de Rio Branco passaram a divergir, e bastante, das posições sempre defendidas pela instituição, criando uma herança pesada, não só para o Itamaraty, mas para as relações exteriores do Brasil, como um todo.
Não se trata de criticar a ideologia, a visão de mundo, que o PT trouxe para a politica externa. Não se cuida de entrar em um debate ideológico para desqualificá-la ou para saber se essa percepção é a mais conveniente para o Brasil. A visão de mundo do Partido dos Trabalhadores (PT), seguida na política externa e também nas negociações comerciais, é legitima pois resulta na aplicação de uma plataforma político-partidária vitoriosa em três eleições, mesmo que nunca tenha sido discutida a fundo, pois está bem longe das principais preocupações do eleitorado. A questão aqui, do ponto de vista dos interesses do Brasil, é saber quais os resultados da aplicação dos princípios programáticos do PT sobre a política externa e comercial nos últimos doze anos, e se esses resultados foram, ou não, favoráveis ao País.
Em meus artigos em jornais e revistas, e em minhas participações em programas de TV e em rádios, venho reafirmando que a partidarização da política externa afeta profundamente a credibilidade do Brasil e do Itamaraty, uma vez que se deixou de lado o rigor técnico e a excelência profissional que sempre caracterizaram a instituição. O Brasil passou a apoiar regimes autoritários, especialmente na África e na América do Sul. Na verdade, o Itamaraty foi submetido a diretrizes e a orientações de políticas que ele nunca teria adotado se mantido o processo decisório anterior, em cada um dos temas mais controversos que invadiram a sua agenda a partir de 2003.
A perda da vitalidade do pensamento independente em todos os escalões, pela extrema centralização das decisões, a discriminação ideológica contra vários de seus funcionários e arranhões no princípio hierárquico não ajudam a recuperar a imagem de um serviço diplomático até aqui considerado um dos mais eficientes do mundo. Nossa política externa nunca tinha deixado de ser de Estado, e foram extremamente raros os momentos de nossa história nos quais predominou algum tipo de viés ideológico, geralmente não coincidente com os interesses permanentes do País.
A partidarização da politica externa trouxe consequências negativas para a ação do Itamaraty e, via de consequência, também para a politica de comércio exterior. Esses desvios repercutiram amplamente nas negociações comerciais externas, na qual simpatias políticas prevaleceram sobre obrigações contraídas no âmbito do Mercosul ou até sobre regras prevalecentes no sistema multilateral da OMC. A prioridade desequilibrada atribuída a uma mal designada “diplomacia Sul-Sul” e a vontade ingênua de inaugurar uma “nova geografia do comércio internacional” fizeram com que os exportadores brasileiros deixassem de abrir mercados em países desenvolvidos, resultando em déficits extraordinários com nossos maiores parceiros da Europa e com os EUA. Por outro lado, as ações na África e no Oriente Médio não produziram ganhos políticos significativos, nem comerciais expressivos, já que, em termos percentuais, o crescimento do intercâmbio comercial com essas regiões foi bastante reduzido. Adotou-se uma concepção distorcida do que sejam “assimetrias estruturais”, que formam a própria base do comércio mundial e o Brasil, longe de exibir a maior renda per capita do Mercosul, passou a subsidiar obras que poderiam ser financiadas pelos bancos multilaterais existentes.
O Mercosul, como um instrumento de abertura de mercados, foi um dos projetos que mais sofreu com a partidarização da política externa nos últimos doze anos. A retórica e as decisões político-ideológicas passaram a prevalecer sobre a realidade econômica. Esqueceu-se que o Mercosul não é uma união de governos, mas de Estados. Prevaleceram as agendas nacionais sobre a agenda da integração regional.
A visão externa politicamente distorcida nos governos Lula e Dilma fez com que o objetivo de abertura comercial fosse relegado a um segundo plano, com nítido retrocesso em todas as áreas, e com que o Mercosul comercial se transformasse e adquirisse uma dimensão social e cidadã, no jargão hoje dominante. O Mercosul é, hoje, uma sombra do que já foi, e precisa ser urgentemente reformulado. Os lamentáveis episódios relativos à suspensão do Paraguai e ao ingresso político da Venezuela no bloco ainda estão na lembrança de todos. Menos ideologia e mais pragmatismo na área externa são as chaves para recuperar as oportunidades perdidas no últimos anos, nessa e em muitas outras áreas. 
O processo de integração regional e o relacionamento bilateral com os países sul-americanos foram aspectos da politica externa em que a retórica oficial foi mais efetiva que os avanços concretos. O Brasil ficou a reboque dos acontecimentos e agora tem de enfrentar o desafio de assumir a liderança em nossa região e repensar o processo de integração.
Nunca antes na história do País, e de sua diplomacia, preconceitos ideológicos e plataforma partidária influíram tanto nas questões de competência do Itamaraty de analisar e recomendar cursos de ação para que a chefia do Executivo possa tomar decisões. Ao contrário da política externa “ativa e altiva” nos oito anos de Lula, o atual governo se retraiu e evita tratar questões relevantes que o Brasil, pelo seu peso no cenário externo, não pode ignorar .
A marginalização do Itamaraty, sobretudo no tratamento dos assuntos relacionados aos países vizinhos da América do Sul, certamente não estaria agradando ao Barão do Rio Branco, que ensinou que “a pasta das Relações Exteriores não é e não deve ser uma pasta de política interna”. Não é segredo o descaso com que o Itamaraty tem sido tratado e a pouca importância que tem sido dada às posturas recomendadas pela Chancelaria para problemas que afetam diretamente o que seria, de fato, o interesse do Brasil. Impõe-se uma nova politica externa e uma nova estratégia de negociação comercial, sem preconceitos ideológicos,  
Todos esses temas estão amplamente analisados por Paulo Roberto, nos diversos trabalhos aqui coletados. Eu louvo a sua coragem, no sentido de romper a cortina de silêncio em torno das más escolhas feitas na última década, expondo abertamente a sua contrariedade com as posições adotadas em nome do Brasil. Ele pagou um alto preço por essa independência de pensamento, mas com isso contribuiu para resgatar um pouco da dignidade do Itamaraty durante esse período. Sem recorrer a qualquer tipo de poção mágica – a não ser sua capacidade de interpretar as relações exteriores do Brasil em função de princípios e valores longamente consolidados ao longo de nossa história diplomática –, Paulo Roberto oferece aqui exemplo de resistência intelectual, nesta espécie de quilombo diplomático que ele construiu para si mesmo, com estes ensaios sobre “tempos não convencionais na política externa”...

Rubens Antônio Barbosa
Ex-embaixador em Londres (1994-1999) e em Washington (1999-2004),
presidente do Conselho de Comércio Exterior da FIESP.

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