“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada
pelos romanos... Toda? Não! Uma pequena aldeia povoada por irredutíveis
gauleses ainda resiste bravamente ao invasor. E a vida não é nada fácil para as
guarnições de legionários romanos...”. Assim começa cada nova aventura dos dois
heróis daquela pequena aldeia, Asterix e Obelix: ajudados por uma poção mágica
(apenas o baixinho Asterix, já que o gordo Obelix caiu num caldeirão da poção
quando bebê), ajudam a recuperar um pouco do orgulho abatido dos gauleses,
depois da derrota frente aos legionários de Júlio
César.
Paulo Roberto de Almeida não é exatamente um “asterisco”
bibliográfico na literatura de relações internacionais e de política externa do
Brasil. Ele tampouco se parece com Obelix, mesmo se, vez por outra, arremessa
petardos intelectuais em direção daqueles que Raymond Aron costumava chamar de
“almas cândidas”, ou seja, os acadêmicos ingênuos que interpretam o mundo
através de seus livros, ou de modelos teóricos aparentemente racionais, mas
alheios às realidades econômicas e geopolíticas de uma ordem internacional
anárquica e sempre cambiante. Desde 1993, quando publicou seu primeiro livro,
sobre o Mercosul, acumulou mais de uma dúzia de obras de destaque nesses
campos, além de dezenas de artigos em revistas no Brasil e no exterior.
Este livro, no qual ele reuniu alguns dos seus trabalhos
sobre a diplomacia e a política externa do Brasil, apresenta esse seu lado
analítico “gaulês”, no exame e na avaliação do que representaram, para o Itamaraty,
os anos de diplomacia partidária, um período de desvios nas melhores tradições
da Casa de Rio Branco. As políticas seguidas por Lula e pelo PT desfizeram,
pela primeira vez em quase dois séculos, o consenso nacional que sempre existiu
em torno dessa diplomacia, para surpresa de muitos que, como eu, acompanham ou
participam da política externa.
Quando Paulo Roberto trabalhou comigo, na Embaixada do
Brasil em Washington, entre 1999 e 2003, eu o qualifiquei de accident-prone diplomat, pelo seu lado
provocador, talvez até arrogante, na defesa de seus argumentos – uma atitude
que ele mesmo chama de “contrarianista” –, o que o levou a contestar, mais de
uma vez, antigas posições da diplomacia brasileira. Sua resistência “gaulesa”
está bem exemplificada aqui, não exatamente numa crítica ao Itamaraty, que ele
defende a cada vez, mas ao que já se convencionou chamar de “diplomacia
companheira”, muito bem acolhida por quase todos os militantes da causa, mas
essencialmente nociva, pelos seus resultados efetivos (na verdade, falta de),
do ponto de vista dos interesses nacionais.
Muitas de minhas opiniões – expostas de forma menos
radicais, é verdade – coincidem com suas críticas a essa “diplomacia do nunca
antes...”, um exemplo, entre vários outros, da vontade de protagonismo político
dos novos “donos do poder”, na conhecida expressão de Raymundo Faoro. O
Itamaraty continuou a fazer diplomacia, mas, a partir de 2003, passou a estar
acompanhado – ou, melhor, controlado indevidamente – por aqueles que passaram a
determinar a política externa do Brasil com base em critérios essencialmente
partidários. As novas orientações então dadas para a diplomacia a ser promovida
pela Casa de Rio Branco passaram a divergir, e bastante, das posições sempre
defendidas pela instituição, criando uma herança pesada, não só para o
Itamaraty, mas para as relações exteriores do Brasil, como um todo.
Não se trata de criticar a ideologia, a visão de mundo, que
o PT trouxe para a politica externa. Não se cuida de entrar em um debate ideológico para
desqualificá-la ou para saber se essa percepção é a mais conveniente para o
Brasil. A visão de mundo do Partido dos Trabalhadores (PT), seguida na política
externa e também nas negociações comerciais, é legitima pois resulta na aplicação de uma plataforma
político-partidária vitoriosa em três eleições, mesmo que nunca tenha sido
discutida a fundo, pois está bem longe das principais preocupações do
eleitorado. A questão aqui, do ponto de vista dos interesses do Brasil, é saber
quais os resultados da aplicação dos princípios programáticos do PT sobre a
política externa e comercial nos últimos doze anos, e se esses resultados
foram, ou não, favoráveis ao País.
Em meus artigos em jornais e revistas, e em minhas
participações em programas de TV e em rádios, venho reafirmando que a
partidarização da política externa afeta profundamente a credibilidade do
Brasil e do Itamaraty, uma vez que se deixou de lado o rigor técnico e a
excelência profissional que sempre caracterizaram a instituição. O Brasil
passou a apoiar regimes autoritários, especialmente na África e na América do
Sul. Na verdade, o Itamaraty foi submetido a diretrizes e a orientações de
políticas que ele nunca teria adotado se mantido o processo decisório anterior,
em cada um dos temas mais controversos que invadiram a sua agenda a partir de
2003.
A perda da vitalidade do
pensamento independente em todos os escalões, pela extrema centralização das
decisões, a discriminação ideológica contra vários de seus funcionários e arranhões no princípio hierárquico
não ajudam a recuperar a imagem
de um serviço diplomático até aqui considerado um dos mais eficientes do mundo.
Nossa política externa nunca tinha deixado de ser de Estado, e foram extremamente raros os momentos de nossa história nos quais predominou algum tipo de viés
ideológico, geralmente não coincidente com os interesses permanentes do
País.
A partidarização da politica externa trouxe consequências
negativas para a ação do Itamaraty e, via de consequência, também para a
politica de comércio exterior. Esses desvios repercutiram amplamente nas
negociações comerciais externas, na qual simpatias políticas prevaleceram sobre
obrigações contraídas no âmbito do Mercosul ou até sobre regras prevalecentes
no sistema multilateral da OMC. A prioridade desequilibrada atribuída a uma mal
designada “diplomacia Sul-Sul” e a vontade ingênua de inaugurar uma “nova
geografia do comércio internacional” fizeram com que os exportadores
brasileiros deixassem de abrir mercados em países desenvolvidos, resultando em
déficits extraordinários com nossos maiores parceiros da Europa e com os EUA.
Por outro lado, as ações na África e no Oriente Médio não produziram ganhos
políticos significativos, nem comerciais expressivos, já que, em termos
percentuais, o crescimento do intercâmbio comercial com essas regiões foi
bastante reduzido. Adotou-se uma concepção distorcida do que sejam “assimetrias
estruturais”, que formam a própria base do comércio mundial e o Brasil, longe
de exibir a maior renda per capita do Mercosul, passou a subsidiar obras que
poderiam ser financiadas pelos bancos multilaterais existentes.
O Mercosul, como um
instrumento de abertura de mercados, foi um dos projetos que mais sofreu com a
partidarização da política externa nos últimos doze anos. A retórica e as
decisões político-ideológicas passaram a prevalecer sobre a realidade
econômica. Esqueceu-se que o Mercosul não é uma união de governos, mas de
Estados. Prevaleceram as agendas nacionais sobre a agenda da integração
regional.
A visão externa politicamente
distorcida nos governos Lula e Dilma fez com que o objetivo de abertura
comercial fosse relegado a um segundo plano, com nítido retrocesso em todas as
áreas, e com que o Mercosul comercial se transformasse e adquirisse uma
dimensão social e cidadã, no jargão hoje dominante. O
Mercosul é, hoje, uma sombra do que já foi, e precisa ser urgentemente
reformulado. Os lamentáveis episódios relativos à suspensão do Paraguai e ao
ingresso político da Venezuela no bloco ainda estão na lembrança de todos. Menos ideologia e mais
pragmatismo na área externa são as chaves para recuperar as oportunidades
perdidas no últimos anos, nessa e em muitas outras áreas.
O processo de integração
regional e o relacionamento bilateral com os países sul-americanos foram aspectos
da politica externa em que a retórica oficial foi mais efetiva que os avanços
concretos. O Brasil ficou a reboque dos acontecimentos e agora tem de enfrentar
o desafio de assumir a liderança em nossa região e repensar o processo de
integração.
Nunca antes na história do
País, e de sua diplomacia, preconceitos ideológicos e plataforma partidária
influíram tanto nas questões de competência do Itamaraty de analisar e
recomendar cursos de ação para que a chefia do Executivo possa tomar decisões.
Ao contrário da política externa “ativa e altiva” nos oito anos de Lula, o
atual governo se retraiu e evita tratar questões relevantes que o Brasil, pelo
seu peso no cenário externo, não pode ignorar .
A marginalização do
Itamaraty, sobretudo no tratamento dos assuntos relacionados aos países
vizinhos da América do Sul, certamente não estaria agradando ao Barão do Rio
Branco, que ensinou que “a pasta das
Relações Exteriores não é e não deve ser uma pasta de política interna”. Não é
segredo o descaso com que o Itamaraty tem sido tratado e a pouca importância
que tem sido dada às posturas recomendadas pela Chancelaria para problemas que
afetam diretamente o que seria, de fato, o interesse do Brasil. Impõe-se uma
nova politica externa e uma nova estratégia de negociação comercial, sem
preconceitos ideológicos,
Todos esses temas estão amplamente analisados por Paulo
Roberto, nos diversos trabalhos aqui coletados. Eu louvo a sua coragem, no
sentido de romper a cortina de silêncio em torno das más escolhas feitas na última
década, expondo abertamente a sua contrariedade com as posições adotadas em
nome do Brasil. Ele pagou um alto preço por essa independência de pensamento,
mas com isso contribuiu para resgatar um pouco da dignidade do Itamaraty
durante esse período. Sem recorrer a qualquer tipo de poção mágica – a não ser
sua capacidade de interpretar as relações exteriores do Brasil em função de
princípios e valores longamente consolidados ao longo de nossa história
diplomática –, Paulo Roberto oferece aqui exemplo de resistência intelectual,
nesta espécie de quilombo diplomático que ele construiu para si mesmo, com
estes ensaios sobre “tempos não convencionais na política externa”...
Rubens Antônio Barbosa
Ex-embaixador
em Londres (1994-1999) e em Washington (1999-2004),
presidente
do Conselho de Comércio Exterior da FIESP.
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