“Nunca antes neste país...”
foi, provavelmente, o começo de frase mais repetido nos anos de dominância lulo-petista
sobre a vida política brasileira. Aliás, não só na vida política, já que
alcançando também a vida social, a cultural, a educacional, a futebolística (e
como), além de muitos outros campos, alguns nem mesmo detectados adequadamente
pelos cronistas da atualidade, ou por investigadores de fatos havidos e pouco
sabidos, a serem revelados em toda a sua amplitude em algum futuro incerto.
Correta ou equivocada,
verdadeira ou não (provavelmente há algum exagero na afirmação), a frase veio
para ficar, convertendo-se numa espécie de marca registrada do personagem, a
ponto de um brincalhão ter sugerido que ele a registrasse, ao menos para
arrecadar alguns royalties, a partir do seu uso por terceiras pessoas. É
evidente, que num ambiente de tal forma impregnado por essa rica e vistosa
personalidade, que comandou soberanamente aos destinos do país nesses tempos do
“nunca antes”, a diplomacia não poderia
ficar imune aos fluídos transformadores que, do Palácio do Planalto ou a partir
de qualquer outro canto remoto do país, até mesmo em cima de algum palanque de
ocasião, se disseminaram, com aquele estilo que lhe era peculiar, sobre tudo e
sobre todos. Eles não pouparam nem mesmo o palácio de linhas severas e de
curvas suaves, que leva o nome do barão que cedeu o original para uso da jovem
república positivista, logo repassado aos cuidados de alguns saudosos do Ancien régime monárquico.
O Itamaraty era tido,
nesses meios antigos, como o mais conservador dos (então poucos) ministérios
brasileiros, e de fato ele sempre manteve um ar de distanciamento détaché em relação aos assuntos correntes do
país, como aliás é também característica de outras diplomacias em outros
lugares do mundo. Pois foi nesse ambiente tradicional, marcado, tanto quanto no
Vaticano ou nas Forças Armadas, por normas rígidas de disciplina e de
hierarquia, que as mudanças foram, justamente, as mais significativas nos
tempos de “nunca antes”, bem mais, em todo caso, do que no terreno da economia
ou no da política, onde as mesmas políticas econômicas do Ancien régime tucanês e as mesmas práticas políticas dos barões do
Congresso continuaram a se desenvolver, como se nunca antes alguém tivesse
cogitado mudá-las em profundidade. A diplomacia e a política externa foram, em
qualquer hipótese, revolucionadas pelo presidente do povo e por seus assessores
mais chegados, entre os quais alguns diplomatas, já ganhos ou convertidos ao
novo estilo e às novas práticas que passaram a marcar doravante uma das
diplomacias mais ativas (e altivas) do mundo, e soberana, claro, como era de se
esperar.
Estes ensaios sobre tempos
não convencionais na política externa, redigidos ao longo desses anos
surpreendentes, tentam capturar o chamado look
and feel
– como diriam os profissionais do ramo – dessa diplomacia que ainda não cessou
de produzir efeitos continuados, no continente certamente, e em algumas outras
partes do mundo também. Ela foi transformadora, como queriam seus formuladores,
seus promotores e praticantes, alcançando um sucesso inquestionável, não apenas
entre os apparatchiks e militantes do partido da causa, mas também junto a 90%
da academia (talvez mais) e muitos outros fellow
travelers
da causa mudancista. Como observador interessado desse ambiente febril, feito
de inúmeras iniciativas inovadoras e de uma ou outra quebra do protocolo
tradicional, tentei resumir em meus ensaios irreverentes o sentido da nova
agenda e seus impactos, não apenas na diplomacia profissional, mas para o país
como um todo, estudioso que sou das coisas do Brasil desde minha primeira
adolescência.
Os ensaios aqui reunidos,
feitos para revistas diferentes, em diversos momentos desses anos mudancistas,
podem se repetir um pouco nos argumentos desenvolvidos sobre a diplomacia do
nunca antes e, certamente, eles exibem o mesmo ceticismo fundamental em relação
aos fundamentos, aos conceitos e, sobretudo, à implementação da política
externa lulo-petista, nas condições em que foi concretizada, com os resultados
que exibiu, em função das escolhas feitas (em relação às quais eu mantenho,
repito, um ceticismo fundamental). Com tal tipo de atitude, certamente não
terei o apoio de 90% dos acadêmicos, que discordarão em 100% de minhas
posições, sem mencionar a desaprovação de alguns colegas, que costumam manter a
habitual cautela, mesmo sob condições peculiares de trabalho e em face de
opções políticas nunca antes surgidas.
Não que isso me preocupe
sobremaneira. Durante a maior parte de minha vida pensante, tentei ser o que
sou: basicamente, um contrarianista, ou seja, alguém que está sempre
questionando os fundamentos de quaisquer propostas de políticas que possam ser
apresentadas com as melhores das intenções possíveis. Meu espírito libertário,
quase anarquista, não combina muito com grandes burocracias obedientes, e um
ex-chefe já me chamou de accident
prone diplomat, talvez porque eu tenha esse costume de contestar certas instruções,
quando as considero pouco adequadas ao caso em questão, ou quando as encontro
em contradição com a minha interpretação do que poderia ser chamado, com alguma
latitude conceitual, de interesse nacional. Desse ponto de vista, podemos dizer
que eu fui excepcionalmente bem servido pelos anos de diplomacia do nunca
antes, de fato uma política externa que nunca antes tinha desabado sobre o
Palácio do Itamaraty (mas reconheçamos que, algum dia, isso tinha de
acontecer).
Espero que os leitores
destas páginas tenham tanta satisfação em sua leitura, quanto eu tive em sua
feitura, um período de intensas reflexões, mas não vinculadas a muitas ações,
se alguma. Aprendi, ao longo do meu período de autoexílio voluntário, durante
os anos de chumbo do regime militar brasileiro, que algum distanciamento
crítico em relação ao objeto de estudo pode ser útil para abrir o espírito a
outras visões e outras percepções da realidade analisada. Na Europa, nos
primeiros sete anos da década de maiores transformações nunca antes vistas no
Brasil até então, eu pude ver o país sob outros olhos, inclusive comparando-o
com as economias emergentes – o termo ainda não estava na moda – da América
Latina, ou com outros países em desenvolvimento (o termo já tinha substituído
ao anterior, mais depreciativo, de países subdesenvolvidos). Pude, assim,
avaliar nossa situação relativa, em face de tantos outros exemplos de fracasso
e de alguns bem sucedidos. A Ásia Pacífico ainda não tinha decolado tão
espetacularmente quanto o fez nos últimos anos da Guerra Fria, e depois, no
auge da globalização triunfante, antecedendo às crises financeiras que abalaram
a confiança dos novos dinâmicos nas virtudes das economias de mercado
totalmente abertas. O Brasil, aliás, com suas taxas “milagrosas” de
crescimento, atraía os asiáticos, que vinham ao Brasil tentar entender qual era
a receita para crescer acima de 10% anuais no PIB.
É curioso, a esse
respeito, que os novos companheiros da distribuição de renda e da inclusão
social tenham demonstrado tanta apreciação pelo modelo “militar” de
planejamento estatal e de crescimento econômico, tanto pela voz do seu guia máximo,
quanto pela ação do seus economistas improvisados. Talvez eles gostem do
capitalismo estatal e do stalinismo industrial praticado pelos militares, já
que certamente desgostam da vertente mais liberal da economia de mercado, o que
eu não deixo de registrar nestes ensaios críticos sobre a diplomacia do nunca
antes. De fato, nunca antes na diplomacia tínhamos assistido a defesas tão
consistentes de modelos autoritários, quando não de ditaduras longevas, o que
justamente deveria causar certos sentimentos contraditórios em militantes que
supostamente tanto sofreram sob a nossa tão desprezada ditadura.
Os ensaios aqui reunidos,
alguns deles inéditos, representam apenas uma parte da minha reconhecidamente
grande produção de livros e de artigos sobre as questões das relações
econômicas internacionais, da diplomacia brasileira e do desenvolvimento
econômico comparado, embora eles constituam a fração mais importante dos
trabalhos produzidos sobre a diplomacia destes últimos dez anos. Ficaram de
fora alguns outros ensaios importantes, seja porque foram escritos e publicados
em inglês, francês ou espanhol, em revistas do Brasil e do exterior, seja
porque já tinham sido incluídos em livros coletivos publicados sob a
responsabilidade de colegas acadêmicos. Listei na bibliografia geral esses
outros trabalhos que guardam pertinência para a temática aqui abordada, junto
com todos os demais títulos citados nos ensaios compilados, e um ou outro
título consultado, mas não expressamente referenciado em notas de rodapé.
São muitos os livros e
artigos que manipulei ao longo dessa década voltada basicamente para os
estudos, uma vez que não estive diretamente envolvido com nenhuma vertente da
diplomacia companheira (o que talvez tenha vindo a calhar para o pleno
exercício de minha liberdade de pensamento). Muitos desses livros e artigos,
vários de colegas de carreira, estão resenhados num volume que intitulei Prata da Casa: os livros dos diplomatas,
e que ainda aguarda edição impressa, para os interessados na bibliografia da
área. Continuarei, como é natural, produzindo outros trabalhos, sobre os mesmos
temas e outros correlatos, em torno dos quais mantenho laços afetivos muito
especiais, como podem ser os da história econômica e do desenvolvimento
brasileiro.
Recebo muitos comentários de
leitores de meus livros e artigos através de meu site pessoal ou do blog que
mantenho sobre temas afins: Diplomatizzando, que parece contar com alguma
audiência fiel entre estudantes e alguns colegas (que, via de regra, me escrevem
anonimamente para também relatar o que pensam a respeito da diplomacia do nunca
antes ou sobre outros aspectos do governo companheiro). Espero continuar ativo
na próxima década, assim como estive atento aos temas de minha predileção na
década que acaba de se encerrar. Esta é uma forma de manter contato com
leitores desconhecidos e de assim continuar apresentando minhas reflexões sobre
os tempos não convencionais que estamos atravessando atualmente.
Não creio que venha a me
surpreender outra vez com novos eventos bizarros, na diplomacia ou fora dela,
tantas foram as surpresas desta década memorável, vários delas registradas
nestas páginas. Justificam-se, assim, plenamente, tanto a frase símbolo deste
período (que ainda não se encerrou), quanto o título do livro, plenamente adequados,
ao que parece, à diplomacia companheira. De fato, nunca antes neste país de
repetições involuntárias, palavras tão simples soaram tão adequadas e
ajustaram-se tão bem aos tempos que correm. Boa leitura a todos...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, abril de 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário