domingo, 2 de novembro de 2014

Costumes petistas: comparar com ma-fe e iludir com os numeros - Paulo Roberto de Almeida

Passei uma parte da noite argumentando com um desses jovens e ingênuos companheiros, que armados apenas dos panfletos mentirosos da sua tribo, tentava mais uma vez me provar como o ancien régime neoliberal dos tucanos foi um horror econômico, e como tudo melhorou na gestão lulo-petista, para maior felicidade de todos neste país tão unido em torno das maravilhas que eles realizaram nesse novo regime do Nunca Antes.
Já sei que não adianta tentar convencer um petista: convertidos nunca se convencem, pois eles têm a verdade revelada, a luz imbatível das certezas incorrigíveis, e alguns números na mão, que eles torturaram para desvendar o reino das realizações mirabolantes.
Como eu conheço também todos os números, me seria seria fácil provar que eles estão errados. Seria fácil, mas custoso, pois primeiro precisaria demonstrar, com outros números à mão, que eles fazem "comparações" com base em valores nominais, não deflacionados, ou não corrigidos, que eles retiram as estatísticas do contexto para simplesmente agitar dois números discrepantes, que eles constroem, enfim, dados que não existem sem as muletas da má-fé e da distorção quantitativa.
Eu conheço isso de longe, e já assisti desde o início.
Aliás, todos nós, ou quase todos, saudamos o advento da era da justiça social, da ética na política e de todas aquelas promessas que iriam, finalmente, redimir o país da desigualdade, da corrupção, do fisiologismo, enfim, das trapaças habituais dos políticos.
Mal sabíamos o que nos esperava, que aliás começou em seguida, com a tal história da "herança maldita", uma das coisas mais sórdidas e mais desonestas que eu já vi, sendo proclamada o tempo todo, contra todas as evidências.
A desonestidade continuou, durante todo o primeiro mandato daquele que passou a ser chamado de Apedeuta, por Janer Cristaldo (a quem pago o copyright pela criação da expressão). Na campanha de 2006, os petistas soltaram uma das brochuras comparativas mais mentirosas que me foi dado ver com estes olhos de simples professor de economia, acostumado a lidar com os números das contas nacionais e das transações externas todos os dias, por força de ofício e de interesse intelectual.
Essa brochura, que devo ter ainda entre meus pertences me convenceu, em definitivo, que estávamos em face de um partido e de pessoas profundamente desonestas, que não hesitariam diante de nada para falsear a realidade para suas finalidades políticas.
Escrevi, então, o texto que vai abaixo, que ficou praticamente sem divulgação na ocasião, e que recupero agora de meus arquivos eletrônicos. Lamento não ter achado a brochura original do PT, para demonstrar como o exercício de mistificação era realmente escandaloso.
A partir daí, confesso que cansei de desmentir os companheiros, inclusive porque seria inútil: eles continuam, como vimos ainda agora, na campanha de 2014 (e foi assim também na de 2010), a mentir sobre a base de construções estatísticas manipuladas, e distorcendo os números.
Creio que por força do Apedeuta, eles têm uma obsessão pscicológica contra o FHC, pois não adianta estarmos há mais de 12 anos distante daqueles anos, eles voltam repetidamente a falar dos anos FHC, como se tivessem sido o horror na Terra, e eles tivessem vindo para inaugurar o Eden. Deve ser algum problema mental do chefe, um ódio incontido do sociólogo ex-presidente, que só o Apedeuta pode explicar de onde vem exatamente.
Em todo caso, parei de desmentir bandidos dessa laia, pois não adiantaria muito.
Mas, como passei metade da noite, hoje, tentando justamente educar um ingênuo, e tendo achado este texto nos meus arquivos, permito-me transcrevê-lo aqui apenas como registro histórico, já que ele fala de uma patifaria de oito anos atrás (mas elas continuaram no mesmo estilo, até piorando).
Fico por aqui, mas prometo escrever um dia um ensaio de cunho kafkiano, para tratar da questão.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2/11/2014


Desconstruindo o Brasil: como iludir com números

Paulo Roberto de Almeida 

A liderança do PT na Câmara dos Deputados anunciou o lançamento, em 12 de julho de 2006, do livro “Governo Lula: a construção de um Brasil melhor - a verdade dos números”. Com ele, a bancada do PT na Câmara pretende fazer, com fins nitidamente eleitoreiros, um balanço das realizações do governo Lula, comparando-as com os dois mandatos do governo FHC.
Já se sabia que o PT, em geral, e Lula, em particular, eram obsecados por uma suposta herança “maldita” que lhes teria sido legada pelo antecessor de oito anos. O que não se sabia era que eles se dedicariam a arranjar números e a fabricar comparações para “provar” que o governo atual faz muito melhor do que tudo que se fazia antes, aliás, desde o descobrimento do Brasil.
O líder petista naquela casa legislativa pretende que são “dados à prova de balas” e que o PFL e o PSDB pretendem deles fugir “como o diabo foge da cruz”. Ele esqueceu-se apenas de mencionar que a maior parte dos dados negativos no período imediatamente anterior à eleição e posse de Lula pode ser justamente explicada pela deterioração sensível experimentada pela economia brasileira em face da perspectiva da vitória eleitoral do partido que prometia “mudar tudo isso que (estava) aí”, inaugurando uma era de ruptura econômica e de revisão fundamental dos compromissos externos do Brasil. 
O livro talvez seja mais relevante pelo que ele NÃO mostra do que pelo que ele efetivamente mostra, ou seja, um conjunto de dados estatísticos e de séries históricas habilmente arranjados – em gráficos, histogramas e tortas coloridas – para dar essa impressão de progresso notável nos números e nas tendências nos últimos três anos e meio. O PSDB vai provavelmente arranjar outros números e um conjunto alternativo de fatos para “provar” que muito do que se apresenta hoje como sucesso econômico  e conquistas sociais representa, na verdade, uma herança “bendita” das sementes plantadas anos atrás, com o que os dois principais partidos brasileiros terão dado sua contribuição original para a velha arte de enganar com os números e de iludir com argumentos construídos.
A arte da comparação é sem dúvida alguma um velho procedimento das ciências sociais e, mais ainda, das mágicas eleitorais, bastando, no entanto, que seus praticantes se dediquem, efetivamente, a comparar elementos comparáveis entre si – isto é, “animais” pertencentes a uma mesma “família” – e que eles consigam construir argumentos que não ofendam o leitor pela sua apresentação especiosa e, sobretudo, que eles não incidam naquilo que se poderia chamar de desonestidade intelectual.
Ora, ao pretender que a “análise criteriosa dos dados mostra que o Brasil mudou para melhor de 2003 em diante”, o líder do PT na Câmara quer nos fazer acreditar que o Brasil, até então obstruído pelo mar de sargaços do não crescimento e da desigualdade social absoluta, despertou em 1º de janeiro daquele ano para um destino glorioso de desenvolvimento econômico e social, com crescimento acelerado dos empregos e a distribuição generosa dos frutos de um crescimento que só o partido do presidente Lula foi capaz de prover. A desfaçatez só é comparável à ignorância deliberada que o PT continua a exibir em relação aos “recursos não contabilizados”, ao esquartejamento das agências regulatórias, ao loteamento do Estado e à alienação de soberania em diversos lances de sua diplomacia partidária. Aliás, vários dos dados compilados foram extraídos do livro do líder do PT no Senado, Aloizio Mercadante, “Brasil Primeiro Tempo: análise comparativa do governo Lula”, no qual já compareciam muitos dos golpes de ilusionismo econômico que a liderança na Câmara pretende agora nos impingir.
Por acaso, uma única frase do líder petista na CD deve receber nosso total assentimento, a de que “o Brasil de hoje, o Brasil de julho de 2006, é bem melhor que o de 1º de janeiro de 2003, quando o governo Lula iniciou-se". 
De fato, o Brasil de hoje não apresenta todo o cortejo de números negativos que foram sendo criados ao longo de 2002, a partir da ameaça de vitória, concretizada em outubro, do candidato do partido que sempre prometeu alterar fundamentalmente os dados da economia brasileira. O que ocorreu, naquele ano, utilizando-se de conhecida metáfora brasileira, foi a introdução de um “bode” na sala; sua retirada gradual, a partir de janeiro de 2003, melhorou sensivelmente o ambiente na “casa Brasil”, tornando-o mais respirável e sobretudo menos sombrio, tal como então se antecipava, em função da eventual perspectiva de que os novos inquilinos pretendessem “chutar o pau da barraca”.
À margem dos muitos números, figuras e gráficos otimistas, uma única comparação – que seria absolutamente singela – não é jamais feita na pequena brochura montada pelos “economistas” do PT: a de que a política econômica conduzida pelo governo Lula é fundamentalmente diferente – em mecanismos, instrumentos, natureza e orientação – da política econômica neoliberal que eles diziam combater na era FHC. Se esses economistas conseguirem provar, a todos nós, leitores da brochura ou simples cidadãos, que a atual política econômica difere radicalmente em propósitos, nas modalidades e no ferramental utilizado daquela que era aplicada antes de sua gloriosa assunção ao poder, então eles merecem um prêmio Nobel de economia, ou melhor, talvez um prêmio de lata de prestidigitação econômica.
O fato é, como sabem todos, que em nenhuma das políticas macroeconômicas tidas como fundamentais – na área monetária, fiscal ou cambial – ocorreu qualquer ruptura com tudo o que “estava ali antes”. Se mudanças ocorreram, nas políticas setoriais, elas foram para pior, quando não para o absolutamente negativo em termos de desempenho ou de regulação de setores importantes para o crescimento do Brasil: na área agrícola, houve ameaça sobre ameaça de “desconstrução” do agronegócio, com os constantes ataques do ministro do subdesenvolvimento agrário à agricultura de exportação e as frequentes ameaças de invasão de terras pelos neobolcheviques do MST; na área da pesquisa agrícola, os impasses criado pelos opositores fundamentalistas dos transgênicos foi dramática para o progresso dos experimentos no setor; na infraestrutura, todos assistiram á tragédia das estradas esburacadas e aguardam apreensivos a possibilidade de um novo apagão energético; todas as agências reguladoras foram literalmente castradas em seu poder de monitoramento e de implementação de normas apolíticas, substituídas estas por decisões governamentais que deixam os investidores sem condições de se precaver contra a possível volatilidade e o caráter errático das novas regras.
Nada na brochura nos lembra a não-reforma política, a não-reforma trabalhista, a não-reforma previdenciária, a não-reforma educacional (a não ser para constranger as universidades privadas e introduzir critérios dúbios de “justiça social”, de caráter racial, nas públicas. Em nenhum momento se diz que a carga fiscal, já pesadamente aumentada na gestão anterior, foi ainda mais reforçada, sem que qualquer reforma tributária no sentido do alívio impositivo tenha sido ensaiada nestes últimos três anos e meio. Tampouco se menciona o crescimento expressivo das despesas públicas, muito acima da inflação e da própria taxa de crescimento, tão pífia quanto ela tinha sido na administração tucana.
A brochura tampouco menciona que a política externa “ativa e altiva”, como gosta de repetir o chanceler a serviço da diplomacia partidária absolutamente canhestra e amadora do PT, sofreu derrota após derrota em todas as suas pretensões terceiro-mundistas e integracionistas. Quando Lula assumiu, a prioridade estava com o reforço do Mercosul e a “união da América do Sul”, para melhor negociar a – na verdade opor-se à – Alca. Não é preciso sequer mencionar o estado atual do Mercosul e a efetiva desunião regional para evidenciar o fracasso dessa política de “liderança” brasileira na região, recusada por todos e obstaculizada por muitos. Todas as candidaturas brasileiras para organismos internacionais – OMC, BID e sobretudo a obsessão com uma cadeira permanente no CSNU – sofreram derrotas fragorosas, causadas sobretudo por aqueles que tinham sido aprioristicamente definidos como “parceiros estratégicos”, a começar pela Argentina e pela China. A alienação da soberania nacional e a rendição a interesses estrangeiros da diplomacia petista tornaram-se patentes quando foi um governante estrangeiro – no caso o presidente Chávez – que definiu onde se instalaria uma nova refinaria de petróleo (e não estudos técnicos conduzidos no próprio Brasil) e quando o governo dobrou-se vergonhosamente à imposição da nacionalização dos recursos energéticos da Bolívia, em frontal oposição a tratados assinados entre os dois países e a acordos concluídos entre aquele governo e a Petrobras.

A desonestidade intelectual transparece, por exemplo, na comparação de  taxas anuais de inflação, quando se menciona que quando Lula assumiu, algumas projeções indicavam que a inflação poderia chegar em 2003 a 42,9% e que agora a inflação de 2006 será de 4,5% ao ano. Desonestidade ainda maior vem associada à lembrança de que em outubro de 2002, o risco-país (calculado com base na aceitação dos títulos do governo brasileiro no exterior) estava em 2.035 pontos. Em maio deste ano [2006], estava em 216 pontos. Não é preciso dizer que não se tratava, absolutamente do risco-Brasil, mas única e exclusivamente do risco-Lula e do risco-PT.
Um outro “esquecimento virtual” comparece na questão cambial: jamais comparece na brochura a noção de “populismo cambial”, antes assacada permanentemente contra o ex-presidente do BC Gustavo Franco, quando a taxa real do dólar, em sua época, estava abaixo, em termos reais, da que hoje é suportada pelos exportadores e setores industriais. Tampouco se lembra que o governo Lula cumpriu obedientemente os acordos com o FMI, aumentando inclusive de forma totalmente voluntária o nível do superávit primário (de 3,75% do PIB para 4,25%), honrando todos os compromissos e terminando por devolver antecipadamente, num gesto claramente demagógico, os empréstimos de baixo custo concedidos por aquele organismo financeiro apenas para lançar títulos no mercado comercial a taxas de juros mais altas.
A questão do emprego é outro sintoma da desonestidade intelectual da brochura do PT, uma vez que se sabe que mais da metade do mais de um milhão de “empregos criados” corresponde, de fato, a empregos existentes que foram simplesmente formalizados, sem que fosse efetivamente gerados novos postos de trabalho. A redução das desigualdades é apresentada como outra das “vitórias” deste governo, quando os estudos indicam claramente que se trata de uma tendência dos últimos doze anos, pelo menos, quando a redução da inflação permitida pelo Plano Real eliminou o “imposto inflacionário” sobre os pobres e investimentos em infraestrutura e em educação do governo FHC contribuíram para a melhoria de diversos indicadores sociais. O coeficiente de Gini baixou sim, mas não exclusivamente em virtude do bolsa-família, esse “mensalão” governamental que está criando um exército de assistidos do tamanho de uma Argentina que mais se assemelha a um curral eleitoral do que a uma comunidade de cidadãos que deveria ser paulatinamente inserida no mercado de trabalho.
A produção agrícola, por sua vez, ameaça novamente entrar em crise neste ano e no próximo, em virtude do pouco caso revelado pelo partido aliado do MST em relação ao agronegócio, que grande parte dos petistas despreza e pretende ver substituído por uma agricultura familiar não mercantil. A cartilha também mente quanto ao número de assentados da reforma agrária de Lula, misturando número de candidatos a lotes com assentamentos efetivos.
Finalmente, nada se menciona quanto à bomba fiscal que está sendo armada para 2007 pelos aumentos irresponsáveis dos salários dos funcionários públicos feitos nesta conjuntura eleitoral pelo governo Lula. Esses aumentos, travestidos de “correções de planos de carreira” para não serem sumariamente vetados pela justiça eleitoral, ofendem claramente os preceitos legais em matéria de legislação eleitoral, uma vez que são aumentos claramente acima dos índices oficiais de inflação, têm por fim contemplar os interesses de várias categorias do funcionalismo nesta época pré-eleitoral e são feitos mediante medidas provisórias, quando nada indica que eles apresentem urgência e relevância substantiva, como recomendariam os preceitos constitucionais regulando a emissão desse tipo de medida. 

Em suma, o PT continua fazendo da propaganda seu principal instrumento político, mediante uma maquiagem nos números dos últimos anos, esperando que a maior parte dos cidadãos se deixe iludir quanto a uma suposta “excelência de resultados” do governo petista. Em matéria de magia eleitoral, para não falar de desonestidade intelectual, não poderia ser mais ilustrativo de tudo o que se tem assistido nos últimos três anos e meio.
Brasília, 14 de  julho de 2006

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