Um trabalho rapidamente composto a partir de reflexões efetuadas ao início do poder companheiro.
Paulo Roberto de Almeida
A grave crise de governança no Brasil
Duas ou três coisas que eu sei dela e algumas maneiras de
superá-la
Paulo
Roberto de Almeida
Um problema grave de governança
O Brasil enfrenta atualmente uma
das mais graves crises econômicas de toda a sua história, sendo que ela mesma,
reconhecidamente, está na origem de outra grave crise, de natureza política,
que teve início nas próprias eleições de outubro de 2014, e que se acentuou
desde o primeiro dia do governo atual, inaugurado em janeiro de 2015 (sem prazo
certo para terminar). Na verdade, quero demonstrar que, independentemente dos
contornos mais ou menos graves dessas duas crises, a econômica, e sua
consequência “natural”, a política, o país tem, sim, uma séria e grave crise de
governança, que:
(a) paralisa a máquina pública;
(b) aumenta a volatilidade do
ciclo econômico;
(c) diminui a confiabilidade do
(e no) sistema judiciário; e
(d) influencia de modo negativo
o quadro político-institucional.
Essa situação redunda:
(e) no acirramento dos conflitos
entre os poderes, essencialmente entre o Executivo e o Legislativo, mas
envolvendo igualmente o Judiciário; e, obviamente,
(f) na redução dramática das
perspectivas de melhoria da mesma governança política.
Desejo, desde já, sublinhar o
adjetivo “grave”, pois o quadro compromete a possibilidade de quaisquer
políticas de correção parcial dos problemas existentes, uma vez que, no centro da
crise, se situa a incapacidade completa da mais alta autoridade do Executivo de
encaminhar, de modo racional e legítimo, soluções razoáveis às duas crises setoriais
referidas. Não há governança porque não há governante legítimo, sendo que o
atual perdeu a confiança de mais de quatro quintos da cidadania, que já
demonstrou ter preferência pelo impeachment ou pela renúncia. No momento em que
escrevo, não existem perspectivas muito claras quanto ao desenlace das crises
conjugadas, ou sequer o vislumbre de uma solução positiva quanto à falta
completa de governança política, por incapacidade própria e por uma visível carência
de legitimidade da atual incumbente do poder político.
A crise latente em perspectiva histórica
Os contornos da crise econômica parecem evidentes no país. Registra-se,
de forma aparentemente delongada, um ciclo de crescimento negativo do PIB, de
aumento do desemprego, de fragilidade continuada nas contas públicas, de
depreciação crescente da moeda nacional e de incapacidade do atual governo de
enfrentar novas demandas por recursos públicos por parte dos agentes públicos e
da própria sociedade. Tudo isso se reflete em indicadores negativos que nos
remetem às semanas e meses de outro ciclo de falta de confiança que foi aquele despertado
pela conjuntura eleitoral de 2002, quando o mesmo grupo dirigente da atualidade
apresentou-se para dirigir o país, prometendo mudar tudo e alterar
profundamente as regras do jogo.
O cenário, naquela conjuntura, era complicado por causa dos
problemas existentes em escala regional, a partir da crise argentina do regime
de conversibilidade, que se manifestava desde antes da derrocada fatal das
políticas econômicas em curso no país vizinho, no final de 2001. O próprio Brasil
tinha problemas de fragilidade interna e externa desde alguns anos,
praticamente desde a fase da redemocratização – que jamais produziu anos de
crescimento sólido e sustentável – e vinha penosamente, ao longo dos anos 1990,
tentando colocar em ordem esses desequilíbrios, com base em políticas consistentes
e adeptas do rigor fiscal, com maior ênfase a partir da mudança no regime
cambial em 1999.
Quando o Brasil, finalmente, parecia ter colocado a casa em
ordem, no decorrer do ano seguinte, a crise argentina e uma crise interna de
abastecimento energético, ambas em 2001, vieram novamente testar a capacidade
das lideranças políticas em conduzir políticas adaptativas e corretivas dos
desafios mais prementes. Mais grave ainda, as promessas econômicas
esquizofrênicas da oposição companheira ameaçavam desfazer o edifício
macroeconômico das políticas que vinham sendo montadas para tentar colocar
novamente o Brasil no itinerário de um processo de crescimento sustentado:
flutuação cambial, regime de metas de inflação, Lei de Responsabilidade Fiscal
e, conectado à ela, liberação de superávits fiscais para o pagamento da dívida
pública, de acordo com entendimentos mantidos com o FMI, que sustentou o
esforço fiscal e de reequilíbrio do balanço de pagamentos mediante acordos stand-by que se desenvolveram em várias
etapas desde 1998. Em meados de 2002, em plena campanha presidencial, o governo
de FHC negociou mais um acordo de sustentação financeira com o FMI, que foi
acatado por todos os candidatos no processo eleitoral, inclusive o de oposição
ao governo, que acabou sendo eleito poucos meses depois, em outubro.
A retomada de um processo de crescimento sustentado,
compatível com as taxas historicamente registradas no passado, dependia então
da manutenção daquelas políticas, o que entretanto tinha sido colocado em
dúvida na conjuntura eleitoral de 2002. O Brasil pagou um alto preço em função
da campanha demagógica do candidato principal, que prometia mudar tudo, o que
se refletiu nos juros, no câmbio e nos valores dos títulos governamentais da
dívida externa brasileira. Cabe reconhecer que a democracia tem um preço, em
termos de aumento da cacofonia no processo decisório e de volatilidade das
políticas de curto prazo, mas ela sempre é, em qualquer hipótese, infinitamente
mais saudável, inclusive no plano econômico, do que qualquer sistema
autoritário de debates (restritos) e de tomada (arbitrária) de decisões, como
era o caso durante o período militar.
O sistema político precisaria estar preparado para acomodar qualquer
aumento na dispersão de opiniões, típico nos regimes democráticos, mas é um
fato que qualquer melhoria na institucionalidade do Estado depende
dramaticamente da qualidade dos homens públicos, fator notoriamente carente na
tradição social e cultural brasileira. Não se pode sempre dispor de condições
ideais para o processo de desenvolvimento, mas as improvisações e voluntarismos
podem por vezes custar caro.
Foi o que o Brasil passou a enfrentar a partir de janeiro de
2003, quando uma nova equipe chegou ao poder e começou a alterar de maneira por
vezes radical a forma de funcionamento do Estado e suas políticas setoriais. O
Estado, aliás, foi tomado de assalto por uma horda de militantes obedientes,
disciplinados às ordens superiores, mas claramente incompetentes para fins de
administração pública. Esse aparelhamento tinha inclusive um sentido
“orçamentário” para o partido companheiro, pois cada um dos disciplinados
militantes e, a partir de então, dos novos “funcionários” públicos, passou a
contribuir para o partido com um percentual de seus salários individuais,
enquanto outros deixavam uma parte dos subsídios adquiridos a título de cargos
de confiança. Reconheça-se, de imediato, que a política econômica permaneceu
praticamente intocada, uma vez que, sem dispor de pessoal competente, o partido
companheiro teve de admitir a continuidade de alguns membros da equipe
anterior, bem mais realista, preparada e competente, e inimiga declarada de
qualquer improvisação ou magia econômica.
Ao longo do tempo, no entanto, a equipe foi sendo alterada, e
a qualidade das políticas econômicas, macro e setoriais, foi sendo erodida, com
um aumento contínuo nos gastos correntes – vários tornados permanentes –, o
crescimento da máquina pública, o aparelhamento do Estado pelos companheiros de
formação muito tosca, o que se refletiu na deterioração da governabilidade em
várias áreas da administração pública, e em todos os demais setores que
dependem do governo, como os de saúde, educação, infraestrutura, segurança,
justiça e processo legislativo. A deterioração administrativa e o descalabro econômico
se tornaram bem mais acentuados a partir do segundo governo companheiro, a
partir de 2007, mas as raízes do problema já tinham sido colocadas desde o
início, aliás refletidas nos primeiros escândalos que começaram a pipocar ainda
em 2004.
O sistema político-partidário, assim como o próprio regime
representativo apresentam, no Brasil, baixa qualidade intrínseca e baixíssimos
níveis de eficiência, assim como não se teve, ao longo dos anos, qualquer melhoria
em seu funcionamento, especialmente no Legislativo. As relações entre o
Executivo e o Legislativo passaram a se caracterizar por uma chantagem
recíproca, o que ficou evidente no curso do Mensalão, que se acreditava,
naquele momento (2005), ser o maior caso de corrupção da história política
brasileira. Todos, a começar pela alta cúpula do Judiciário, que começou a
investigar o processo do Mensalão, a partir de 2006, e só veio a conclui-lo em
2012, consideravam que o Mensalão seria um marco corretor da governança
política no Brasil, o que se revelou de uma ingenuidade exemplar. Paralelamente
se desenvolvia um outro processo ainda mais insidioso de corrupção mafiosa na
alta cúpula do Estado, que só seria revelado a partir de 2014, com os primeiros
passos da Operação Lava Jato. O chamado Petrolão superou exponencialmente o
Mensalão e já se converteu, não apenas no maior caso de corrupção da história
brasileira, como também numa ocorrência de dimensões gigantescas, aparentemente
ainda não rivalizado em qualquer outro país.
Quais são os elementos da crise de
governança no Brasil?
Retomando a caracterização central adotada na presente
análise, não parece haver dúvida em afirmar que o atual cenário brasileiro não
se caracteriza por uma “simples” crise econômica, ou por sua deriva inevitável
para o terreno político, ainda que possam existir indicadores preocupantes na
primeira vertente e “ruídos” (atualmente muito mais “ruidosos”) na segunda. O
que parece, sim, constituir o núcleo central e o vetor principal dos atuais
problemas brasileiros é o dramático quadro de falta de governança política, já
caminhando para um cenário de anomia institucional, cujos elementos principais
podem ser registrados a partir de agora.
Constitui um dos truísmos da vida prática, e até da teoria
política, o fato de que o poder especificamente político, na sua esfera
executiva, não pode ser dividido, nem deve ser dispersado, devendo existir de
forma concentrada numa única fonte de autoridade. Esta tem de deter, legítima e
incontestavelmente, por delegação dos eleitores, o comando do processo
decisório, que deve então funcionar de maneira eficiente a partir dessa fonte
unitária de decisões. Não é uma revelação inédita o fato de que, no Brasil
atual, as fontes de poder estão dilaceradas em vários centros de decisão, e
relativamente dispersas, ainda que de maneira informal. Sobre a incumbente
atual, e esse quadro não vem da presente conjuntura, paira uma imensa sombra de
poder, que parece sugar as forças da mandatária.
Não se trata de situação dos últimos meses, neste primeiro ano
do segundo mandato da atual incumbente, mas de um cenário que se desenvolve
desde antes do início do terceiro mandato companheiro, desta vez por delegação
claramente reconhecida, depois de dois mandatos aparentemente bem sucedidos do
demiurgo salvador que se considerava acima de quaisquer outros líderes brasileiros
do último meio século. O líder populista se considerava um segundo Getúlio
Vargas, talvez até com pretensões de alcançar um reconhecimento inigualado na
história política brasileira. Desejoso de continuar seu reinado por preposto
devidamente mandatado, o carismático sindicalista encarregou-se de selecionar
ele mesmo seu sucessor, fora das fileiras tradicionais do partido companheiro,
aliás, de maneira a assegurar que sua vontade seria feita em quaisquer
circunstâncias, independentemente de sua ausência (temporária?) do poder.
Não surpreende, assim, que as fontes legítimas e reconhecidas
de poder passaram a estar diluídas em diversas instâncias, o que parece ter
sido aceito como “natural” pela atual incumbente. Sua figuração no comando
central do governo apresentou-se, assim, exatamente como uma figuração, o que lhe
fragilizou as bases de seu poder político desde o início do primeiro mandato. Havia
ministros da cota do ex-presidente, outros que foram designados por partidos e que
a incumbente sequer conhecia (e que nunca chamou para despacho) e vários que se
revelaram envolvidos em falcatruas desde sempre, e que foi preciso demitir não
por vontade própria, mas por pressão da imprensa. Ou seja, um governo saqueado
por aventureiros políticos, fragmentado pela coalizão heteróclita que lhe
garantia uma grande base de apoio congressual – aliás ainda maior do que a anterior,
sob o chefe inconteste do jogo político
– e um potencial imenso para o desgoverno econômico e a confusão política.
De fato, o primeiro mandato já tinha sido caracterizado por
problemas de governança, que foram sendo disfarçados pela tradicional
mobilização das ferramentas de comunicação social – setor onde são gastos
recursos superiores a diversos programas sociais – e pelo apoio congressual a
despeito de tudo, já que sempre comprado a golpes de subsídios aos projetos e
emendas provincianas dos parlamentares da base de sustentação do governo, cuja
elasticidade é medida exatamente em função dessas transferências de verbas e de
cargos que alimentam a promiscuidade política no país. O que não se sabia, ou
não se conhecia exatamente a extensão, era a promiscuidade mantida com os meios
empresariais, e que só veio completamente à tona com o deslanchar da Operação
Lava Jato, revelando a enorme devastação companheira conduzida pelos
companheiros pela maior empresa estatal do país. Mas também esse episódio
revela a enorme diluição das bases do poder presidencial da incumbente, uma vez
que a partilha dos despojos econômicos associados ao poder se fazia com o seu
mero consentimento, mas não sob a sua direção ou total conhecimento. As bases
do poder mafioso sobre a Petrobras tinham sido implantadas desde o início do
governo companheiro, tinha passado incólume pelo episódio grotesco do Mensalão,
e continuou se desenvolvendo, livre, leve e solto, durante todo o segundo
mandato do demiurgo e no primeiro da incumbente.
Além de ser o retrato perfeito da corrupção companheira, o
processo de sangria, drenagem, esquartejamento e dilapidação dos recursos da
Petrobras constitui igualmente o espelho da fragmentação de poder sob a qual
vive o Brasil desde 2011, pelo menos. Não será fácil sanar essa grave problema
de governança, pois faltam totalmente à atual incumbente condições para
corrigir sua total falta de poder sobre áreas inteiras de administração
estatal, ainda sob o controle dos verdadeiros chefes da organização criminosa
que tomou de assalto o Brasil em 2003.
A recomposição de uma única autoridade central e a existência
de um comando político reconhecido constituem, obviamente, condições
indispensáveis para a superação da atual crise de governança no Brasil. Sem
isso, todo o mais, em termos de políticas públicas e setoriais, está e ficará
comprometido pelo resto do período de governo (qualquer que seja ele). Não é
preciso dizer que autoridade não se proclama, e sim se exerce, de modo claro e
direto. Nas atuais condições de governança, em que o jogo político e as
principais decisões da área econômica fogem completamente ao controle da
incumbente, não se pode esperar que tal autoridade possa ser exercida, em
qualquer extensão significativa para enfrentar os graves desafios colocados ao
país.
Mas o quadro é ainda mais grave quando se passa da autoridade
“para dentro” para a autoridade “para fora”, isto é, em direção de fontes
concorrentes de poder ou no âmbito do exercício real da autoridade legítima,
delegada pela sociedade e pelo sistema constitucional, para o cumprimento das
leis. Ora, não é preciso muito esforço visual, para se constatar que diminuiu
enormemente o respeito à lei e aos contratos nos últimos anos. Sem considerar
questões partidárias ou mesmo de cunho ideológico (e persiste uma certa
confusão aqui), deve-se reconhecer que essa situação faz aumentar,
tremendamente, a volatilidade do cenário econômico, além de agregar custos
reais ao funcionamento do sistema como um todo e de contribuir para agravar o
quadro de anomia social e de desrespeito generalizado ao quadro legal no País.
A justiça, em si, já constitui um ônus terrível, direto e
indireto, para o sistema econômico, diminuindo o PIB potencial. Mas o
desrespeito à lei, endossado inclusive por ministros de Estado, constitui um
imenso desincentivo aos investimentos (estrangeiros e nacionais) e à iniciativa
privada, únicos capazes de criar empregos e disseminar renda no país. É
dramático saber, por exemplo, que juízes de província podem criar obrigações
para o Executivo sem qualquer amparo na legislação em vigor, que governadores
podem promulgar leis anticonstitucionais ou que os mandatários, em geral, se
eximem de fazer cumprir a lei em casos claríssimos de violação de direitos dos
cidadãos (como as muitas invasões de propriedades). O desrespeito à legalidade
chegou a níveis preocupantes no Brasil, mas isso não parece preocupar nem o
sistema judiciário nem o próprio Executivo.
A desgovernança
existente aparece em primeiro lugar na própria máquina pública, hoje
ineficiente e descoordenada ao ponto da paralisia. Algo pode ser debitado aos
custos do aparelhamento, ao cabo do qual parte da tecnocracia foi substituída
pela militância, dedicada e entusiasmada com a causa da mudança, mas nem sempre
habilitada a lidar com as reais complexidades da administração pública. Se o
ministro da área não possui competências executivas, ou não dispõe de prévia
experiência anterior no seu setor, o quadro pode ficar ainda mais dramático,
dando a impressão de que os ministérios atuam em ordem dispersa, cada um com
suas próprias prioridades políticas e um escasso comprometimento com as
diretrizes gerais do governo (quando elas existem).
Não há uma solução
simples a esse problema, pois qualquer estrutura ministerial, grande, média ou
pequena – e a atual é desmesurada –, só pode funcionar bem se a qualidade da
gestão, em suas diferentes vertentes, for razoavelmente satisfatória, com metas
claras e cobranças regulares. A continuidade da atual lógica
político-partidária na montagem ministerial significa a continuidade da
inoperância administrativa na mesma proporção. Seria necessário uma completa
reestruturação ministerial, com todos os custos que isso pode acarretar nas
frentes congressual e partidária. Cabe ao supremo mandatário julgar o que seria
possível fazer para aumentar a eficiência da “sua” máquina executiva.
A ausência de
prioridades claras de governo e sobretudo a dispersão do comando central, têm
atuado para aumentar a volatilidade do ciclo econômico, pois os agentes são
levados a adotar um compasso de espera (seja para precaver-se contra uma
possível mudança de regras, seja no aguardo de medidas que possam representar
uma melhoria relativa das condições da atividade econômica). O problema aqui é
tanto a falta de uma clara manifestação em favor da política econômica atual,
com o engajamento do conjunto do governo, quanto o próprio fato de que agentes
do Estado ainda determinam, por vezes de modo arbitrário, o comportamento de
vários setores da economia, o que obviamente dá margem à manutenção do já
referido quadro de incertezas. Ninguém sabe, com certeza, que tipo de política
econômica se pretende imprimir ao país, à frente e além do processo de ajuste
fiscal que tem necessariamente de ser feito, para evitar o agravamento ainda
mais dramático da situação econômica.
A situação da
justiça e do ordenamento legal é provavelmente um dos fatores mais negativos
que afetam a governabilidade do e no país, aumentando dramaticamente os custos
da atividade econômica. Não me refiro apenas à possível e provável existência
de descoordenação no aparato judicial, com manifestações de corrupção e
nepotismos que podem e devem ser coibidos por alguma forma de controle externo
(como aliás deve ser o caso com qualquer poder: não é possível, por exemplo,
que o Legislativo e o Judiciário possam criar fontes de despesas sem qualquer
tipo de disciplina orçamentária). O que desejo destacar é a própria anomia dos
processos jurídicos, nas três esferas da federação e em vários setores de
atividade (nas relações de trabalho, por exemplo). Mais: controles internos e
externos devem ser implementados para coibir a extraordinária profusão de
medidas liminares, várias dotadas de escasso ou nenhum embasamento legal.
As obsessões obsessivas do incompetente poder
companheiro
O poder companheiro
sempre teve, antes mesmo de ser governo, várias obsessões sociais e diversos
arremedos de políticas setoriais que passavam por grandes estratégicas de
governança, quando constituíam, no máximo, fantasmas de mudanças radicais sem
qualquer consistência intrínseca quanto à necessária adequação entre meios e
fins. O distributivismo exacerbado sempre esteve entre essas obsessões, sem
qualquer noção clara do que fazer para aumentar dramaticamente produção e
produtividade no país, base inquestionável de qualquer programa distributivista
sustentável. À falta disso, o aumento contínuo da carga fiscal financiou os
programas sociais dos governos companheiros, que não representaram, de fato,
diminuição da pobreza, apenas subsídio ao consumo dos mais pobres. As políticas
industriais e as de “inclusão social” também representaram outras facetas
dessas obsessões, todas elas voltadas para a “criação de um amplo mercado
interno de consumo de massas”, como se a atividade exportadora, por exemplo,
fosse contrária ao objetivo do aumento de renda para esse “grande mercado
interno”.
Um governo, qualquer
governo, não é feito para provar teses acadêmicas ou testar programas
partidários. Ele tampouco atua com base em “grandes teorias” (aliás mais
proclamadas do que reais). Ele é eleito, e constituído, para produzir o máximo
de bem estar para os cidadãos, pelos meios os mais pragmáticos e racionais
possíveis. Permanece latente no Brasil, desde 2003, uma luta contra o passado,
para tentar provar a todos que nunca antes de fez tanto e tão melhor em favor
dos subalternos e dos marginalizados. A luta contra o passado se exerce tanto
contra antigos “adversários” (o que é revelado pela tese da “herança maldita”),
como em relação a teses anteriores (o tal de “neoliberalismo”, essa outra
invenção dos companheiros). Derivam dai essas tentativas de formulação de alternativas
de políticas econômicas, muitas das quais – foi o caso da “nova matriz
econômica – levaram ao caos econômico atualmente em desenvolvimento.
Essa obsessão com um
passado mítico, seja para condenar (o dos outros), seja para se justificar (o
seu próprio), ocupa uma parte substancial da atividade retórica do governo, o
que constitui obviamente um grande perda de energia e um desvio do foco próprio
da governança. Mas também existe, hoje, uma grave dispersão de esforços em
diferentes áreas de atividade, mesmo quando elas não são prioritárias para o
aumento do bem estar do povo, em setores concretos sob responsabilidade
governamental.
O exemplo mais
conspícuo é, obviamente, o das chamadas políticas industriais, várias delas
implementadas ao longo dos três mandatos companheiros, não porque as anteriores
estivessem absolutamente erradas, mas porque elas nunca produziram efeitos
tangíveis para o aumento da competitividade brasileira internamente ou
externamente. O fato é que as diversas políticas industriais criaram poucos
empregos (que surgiram bem mais no setor de serviços, de baixa produtividade) e
foram neutras em relação à iníqua distribuição de renda. A criação de mais uma
agência pública nesse setor, a ABDI, junto com a expansão desmedida do BNDES,
representou, por outro lado, mais um cartório de espera para alguns esperançosos
em dádivas públicas, o que continuou influenciando negativamente o quadro de
expectativas microeconômicas no país (ou seja, em lugar do livre
empreendedorismo, o leilão de favores governamentais).
A tentativa de mudar
um pouco de tudo, no Brasil e no mundo, que sempre esteve no centro do ativismo
governamental, inclusive e principalmente na política externa – aliás mais pelo
lado das intenções do que pelo das realizações –, também constituiu um entrave
concreto ao exercício de uma boa governança em favor dos mais pobres e dos
absolutamente carentes. Como as expectativas eram, de modo legítimo, muito
grandes, o governo se esforçou para corresponder a todas elas, dando a
impressão de que iria mudar tudo num curto espaço de tempo. Começou com o Fome
Zero, como todo mundo se lembra, e ele conseguiu ser um fracasso desde o
início, sendo abandonado ao cabo de poucos meses, em favor de um desdobramento
das bolsas sociais pré-existentes e sua junção num único programa
assistencialista chamado de Bolsa Família. A tentativa de se operacionalizar um
“Fome Zero Universal”, com a eventual adoção do malfadado programa brasileiro
pela ONU, constituiu outro fracasso companheiro, o que não impediu o governo de
continuar insistindo nas instâncias internacionais durante vários anos.
O mesmo ocorreu com
inúmeros outros programas de “inclusão social” – Primeiro Emprego, inclusão
digital nas favelas, computadores a 100 dólares, incentivo à leitura, etc. –
todos eles marcados pela improvisação, por um desperdício inacreditável de
recursos para resultados pífios em todas as frentes. O PAC, “Programa de
Aceleração do Crescimento”, sempre foi um slogan vazio, uma vez que
simplesmente deveria fazer parte dos projetos normais de investimentos
setoriais a cargo dos diversos ministérios (mas a propaganda sempre foi o forte
em todos os governos companheiros). O “Minha Casa, Minha Vida”, se enquadra na
mesma categoria, o de subsídios a construtores em projetos apressadamente
costurados, que acabam consumindo muitos recursos pela via estatal quando o
setor privado, aliviado de tributos, poderia fazer muito mais em termos de
oferta habitacional. O mesmo se poderia dizer da substituição tributária da
mão-de-obra por um percentual do faturamento em ramos selecionados da economia,
um típico expediente discriminatório improvisadamente introduzido, para ser
desmantelado ao sabor da crise fiscal. Outros não foram os resultados da
política automotiva adotada para proteger os grandes amigos do poder
companheiros – sindicatos de metalúrgicos e construtoras do setor – e que
terminou por provocar acusações contra o Brasil no âmbito da OMC. Os exemplos
mais recentes consistem no FIES e no Ciência Sem Fronteiras, dois programas
eleitoreiros e demagógicos, que desviam recursos de áreas mais carentes na educação
– ensino fundamental e estímulo real à ciência e tecnologia – por motivos
claramente políticos, sem qualquer consistência sistêmica ou visão estratégica.
No cômputo global,
as obsessões companheiras representaram poucos progressos na frente social –
ainda assim revertidos a partir do recrudescimento da inflação e dos
desequilíbrios acumulados nas contas públicas, provocados pela gastança sem
limites – e uma dramática deterioração da institucionalidade no país, ao se
combinarem com práticas claramente delituosas que se revelaram tanto no
ambiente congressual quanto na (depois revelada) promiscuidade entre grandes
capitalistas e os “donos do poder”. A Operação Lava Jato, ainda em curso,
promete revelar aspectos ainda mais clamorosos dessa colusão criminosa entre os
principais líderes companheiros e capitalistas promíscuos em busca de altos
lucros obtidos com a manipulação das compras governamentais.
Um pequeno balanço dos desastres companheiros
Depois de três
governos companheiros e do início de um quarto – que não se sabe se ou quando vai
terminar – já está na hora de fazer um balanço (impressionista e ainda
provisório) do quadro da governança companheira, que poderia ser assim
apresentado:
1) Um sofrível, senão desastroso, desempenho
macroeconômico, que se revelou por inteiro no quadro dramático de
deterioração da maior parte dos indicadores internos e externos: inflação,
juros, câmbio, contas públicas, risco Brasil, credibilidade externa (e talvez
desinvestimentos maciços se o país perde o chamado investment grade). A destruição da confiança só não foi total
porque, numa inversão completa do discurso e da prática do terceiro governo,
foram buscar nas hostes “liberais” um típico representante dos “Chicago-boys” para
dar sustentação a uma governança moribunda. Mas, a demanda por magia econômica
contina alta (e não foi coibida) nas hostes companheiras.
2) Um pífio desempenho administrativo, na
maior parte dos ministérios, o que é amplamente reconhecido até dentro dos círculos
governamentais. O inchaço da máquina e a seleção dos titulares por critérios
alheios a preocupações com o desempenho são os responsáveis por esse quadro
lamentável. No início, os governos companheiros tinham um excesso de Antonio
Gramsci e uma carência notável de Peter Drucker. Atualmente, é até difícil
determinar qual a natureza dos problemas, pois todo o governo é uma grande
confusão, sem que saiba exatamente quais são os planos de curto, médio ou longo
prazo (e talvez o governo não tenha nenhum). Talvez, uma boa consultoria
externa, dessas voltadas para a organização e métodos com metas e resultados,
pudesse ajudar um pouco na reorganização da máquina do governo. Mas é duvidoso
que esse governo aceite a suprema humilhação (ainda que ele já tenha sido em
grande medida terceirizado), ou que alguma consultoria respeitável tenha a coragem
de aceitar um encargo impossível.
3) Uma deterioração dramática do quadro
político-institucional, sobretudo no que se refere ao cumprimento da lei, o
respeito à legalidade e à administração de conflitos sociais. O Estado, aos
olhos de muitos, não faz cumprir a lei, ou por falta de vontade, ou por falta
de capacidade, ou por ambas, o que é, reconheçamos, extremamente grave. Uma
caracterização desse tipo, se suficientemente embasada em fatos claramente
delimitados, pode prestar-se a uma acusação de crime de responsabilidade,
contra qualquer um dos agentes públicos, inclusive o mais alto. A experiência
histórica nos ensina que o mais rápido e seguro caminho para a desgovernança
prática começa pelo desrespeito à lei.
Não tenho a
pretensão de oferecer soluções adequadas a todos os problemas de que padece
atualmente (e estruturalmente) o país, em especial na vertente governamental.
Tenho consciência, porém, de que um dos requisitos para encontrar respostas
apropriadas está na correta formulação das perguntas pertinentes e no
oferecimento de um diagnóstico ajustado aos problemas. Creio ter indicado os
problemas que me parecem mais graves no Brasil atual, a começar pela crise de
governança, que resulta ser uma crise da autoridade legal. Minha conclusão é,
infelizmente, totalmente negativa: não vejo como diminuir, nas condições
atuais, o quadro nebuloso que dificulta até mesmo visualizar a perspectiva de
uma retomada da governança no país. Governança supõe, antes de mais nada,
líderes políticos com capacidade de exercê-la, mercadoria dramaticamente
faltante no Brasil.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford,
6 de setembro de 2015
(com
base no trabalho n. 1241, Brasília, 9 de abril de 2004)
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