sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A cidadania, a democracia e a manifestação de 26 de marco - Augusto de Franco

DAGOBAH
Augusto de Franco - NL 0041 - 16/02/2017

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Está sendo convocada uma manifestação nacional para o dia 26 de março de 2017. Essa manifestação faz sentido porque há uma insatisfação geral com um velho sistema político que apodreceu. Não é apenas uma insatisfação com a demora na punição do chefe da organização criminosa que comandou o governo que sofreu impeachment em 2016. Nem é somente uma insatisfação com o governo Temer que o sucedeu por força do que reza a Constituição. É uma insatisfação com o sistema como um todo, do modo como está organizado e funciona. A situação atual lembra mais a de 2013 do que a de 2015 e 2016. Em 2013 também havia uma insatisfação com o sistema como um todo – não com o governo do PT em particular – sintetizada pelos cartazes dos manifestantes de junho:

“Vocês não nos representam” 

Por mais que o governo Temer seja refém da mesma base fisiológica que sustentou, durante uma década, o PT no governo, o presidente da República, em particular, não teve tempo de cometer, no exercício do seu mandato, tantos desatinos que justificassem uma ira popular contra sua permanência no cargo. A não ser para o PT, que inventou a falsa narrativa de que o impeachment foi golpe e quer se vingar daquele que ele mesmo escolheu para ser vice de Dilma, aproveitando a oportunidade de baixa popularidade de Temer para instaurar um clima de caos que possibilite sua volta ao poder em 2018, reconduzindo Lula à presidência como uma espécie de redentor, nos braços do povo. E também para a direita que – capitaneando a ingenuidade dos moralistas e analfabetos democráticos – gostaria de varrer o país, limpar a política, separar definitivamente os maus dos bons por meios autoritários e anticonstitucionais.

O fato é que grupos antidemocráticos, de esquerda e de direita, estão querendo pautar a manifestação convocada para 26/03/2017. A esquerda quer enfiar o Fora Temer, Contra as reformas da Previdência e Trabalhista, Contra a privatização da Cedae e outras maluquices. A direita, por sua vez, quer enfiar suas sandices de sempre, como Intervenção militar, Fim do estatuto do desarmamento e sabe-se lá mais o quê.

Para os democratas, as únicas coisas razoáveis neste momento são: Apoio à Lava Jato e Fim do foro privilegiado. Sim, é preciso apoiar a Lava Jato, não porque ela esteja sendo vítima de uma conspiração de cinema, mas de uma coalizão tácita de interesses de sobrevivência dos velhos atores políticos que compõem a base fisiológica do governo Temer e que já compunham a base fisiológica do PT. Renan, Sarney, Collor, Eunício, Jader, Jucá, Moreira Franco e tantos e tantos outros não apareceram agora no cenário político, nem eram da base da oposição ao governo do PT. Eles pertenciam ao governo que foi deposto, não apenas no Legislativo, mas também no Executivo: vários, inclusive, foram ministros de Lula e Dilma. Ora, esses velhos atores têm aguçado instinto de sobrevivência e zero de vocação para o suicídio.

Igualmente é preciso pedir o fim do foro privilegiado porque ele assegura, na prática, a impunidade dos parlamentares e governantes que cometeram crimes.

As tentativas de barrar ou domesticar a Lava Jato e de manter a impunidade dos que estão sendo investigados revoltam a população e contribuem, diretamente, para aumentar a insatisfação das pessoas com o velho sistema político.

Sem as ruas, muito provavelmente, a Lava Jato será desidratada. É inevitável que um sistema político que apodreceu tente se proteger da Lava Jato. Se as pessoas não saírem às ruas novamente, parece obvio que tudo tende a se acomodar nos tribunais superiores, mais uma vez em nome da governabilidade. Choverão recursos sobre recursos e os julgamentos finais vão ficar para muito depois de 2018. Boa parte dos processos prescreverão. Por isso é tão importante sair às ruas em 26 de março de 2017.

É claro que há muito mais do que isso. A crise do velho sistema político é, no fundo, a crise da forma Estado-nação e do seu padrão de relação com a sociedade. Há uma crise do modelo representativo, vulnerável ao discurso inverídico e ao uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia. Por isso as pessoas dizem – e se não dizem, pensam: vocês não nos representam. E o fato das instituições do Estado de direito estarem funcionando não é garantia alguma de que elas funcionarão de acordo com o que as pessoas consideram ser justo. A estrutura e a dinâmica das instituições que temos não estão sintonizadas com o que queremos. Daí decorre muita coisa a ser modificada. Uma pauta para corrigir todos os problemas decorrentes da inadequação dos sistemas atuais de governança às aspirações da sociedade seria quilométrica. Não pode servir de convocação para uma manifestação.

Na verdade, porém, as pautas formuladas por grupos ideológicos que convocam manifestações não são tão importantes quanto se pensa. Se a manifestação adquirir a dinâmica de um enxameamento – independentemente do que querem ou pensem os grupos organizados no seu interior – seu efeito será sentido pela sociedade e pelo Estado. Se acontecer um swarming – como vimos em junho de 2013, em março, abril e agosto de 2015 e em março de 2016 – é sinal de que a manifestação se descolou completamente das intenções particulares dos grupos que tomaram a iniciativa de convocá-la. Se não acontecer tal fenômeno, ela terá pouca influência no comportamento dos atores.

Uma manifestação de alta interatividade – capaz de constelar multidões – é sempre convocada de modo distribuído, por iniciativa de miríades de pessoas, agrupadas ou não em torno de uma pauta (ainda que possam existir vários grupos querendo convocá-la centralizadamente). Por isso ela quase sempre expressa sentimentos, programas e plataformas difusos. É impossível evitar que, entre as pessoas que a convocam, por iniciativa própria, sem pedir autorização a ninguém, existam as que têm as propostas mais descabidas do ponto de vista da democracia. Na concentração da praça Maidan, em Kiev, no final de 2013 e início de 2014, havia de tudo, de neonazistas a anarquistas. O sentido geral do movimento, entretanto, foi o da liberdade (contra a dominação da ditadura de Putin sobre a Ucrânia).

Então o importante mesmo é o que se configura a partir da interação. A verdadeira pauta é um resultado, não uma intenção prévia. Temos 40 dias para observar o bamboleio dos fluxos interativos. E, mesmo assim, tudo dependerá mais do que ocorrer no próprio dia 26 de março do que das tentativas anteriores de direcionar o fluxo.

Uma coisa – e é a mais importante – não se pode negar: há uma insatisfação geral com um sistema político que, além de estar defasado da sociedade atual, apodreceu. Vamos ver até que ponto isso será suficiente para ensejar a manifestação de um fenômeno interativo de grandes proporções. Querer canalizar essa insatisfação para a realização de pautas particulares, pegando uma carona no sofrimento das pessoas, não é apenas errado de um ponto de vista ético-político (posto que revela uma tentativa de instrumentalização): é inútil.

Durante o período que antecede a manifestação, entretanto, há uma disputa política pelo seu sentido. E o sentido deve ser o da transição democrática pós-PT (que ficou perigosamente inconclusa). Os democratas devem interagir nesse processo, para garantir que ele não seja conduzido por ideias autocráticas, sejam de esquerda ou de direita.
Augusto de Franco
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