Reconstrução do pós-guerra: um exercício condenado, e encerrado?
Paulo Roberto de Almeida
Ao que dizem, estamos em guerra. Diversos dirigentes recorreram a esse conceito para referir-se ao mais ameaçador desafio já enfrentado pela Humanidade desde o encerramento da “segunda Guerra de Trinta Anos”, que devastou quase toda a Europa e metade da Ásia na primeira metade do século XX. Aparentemente, os principais estadistas atuais — alguns tardiamente — já definiram o inimigo a ser abatido, mediram suas dimensões e estão empregando uma variedade de meios e de ferramentas para combatê-lo de maneira mais ou menos eficiente.
No caso do Brasil, no dizer de um humorista, não temos apenas um inimigo, mas dois, o que nos leva para além do terreno técnico-logístico no qual o primeiro inimigo precisa e deve ser combatido, nos obrigando a adentrar num terreno político-institucional, muito mais complicado, uma vez que o segundo inimigo é o próprio núcleo de tomada de decisão.
Azar o nosso, pois ademais dos componentes propriamente econômicos e materiais com os quais se deve levar a guerra, e cada uma de suas batalhas em várias frentes, avulta nesses desafios de grande escopo a qualidade da liderança e a capacidade de manobrar dos responsáveis pela condução geral da contenda: generais e administradores da intendência, certamente, mas também os executivos da inteligência e, acima de tudo e de todos, o chefe das FFAA, que vem a ser o próprio chefe de governo ou de Estado.
Desse ponto de vista, estamos muito mal aparelhados, não só no plano da estratégia geral a ser empregada na condução da formidável guerra, mas igualmente para o planejamento do pós-guerra e o esforço de reconstrução. A essa altura, todos já perceberam que a palavra-R já está encomendada, e o que se especula é quão grande e extensa será a palavra-D: que uma recessão severa já esteja no horizonte, ninguém mais contesta; se especula apenas sobre como minimizar a profundidade da depressão.
Não vamos achar que só nós, parcos de meios e de liderança, falharemos nas duas frentes, a da guerra, propriamente, e a da reconstrução, que deve vir depois, ou talvez, concomitantemente aos esforços que se devem empreender desde para superar ou contornar a depressão. Em outras ocasiões, mesmo grandes estadistas de poderosas e ricas potências falharam miseravelmente na reconstrução para a paz e a estabilidade do pós-guerra. Versalhes e a abordagem punitiva da Grande Guerra praticamente encomendaram a segunda parte da “segunda Guerra de Trinta Anos”, com uma ferocidade vinte vezes maior. Mesmo se admitirmos que a saída por San Francisco foi superior que aquela negociada em Paris, cabe também concluir que o pós-Segunda Guerra não nos trouxe a paz e a estabilidades prometidas pelos conciliábulos de Teerã, Dumbarton Oaks, Ialta ou Potsdam. A Guerra Fria emergiu menos de dois anos depois de encerrado o último grande conflito global de nossos tempos, e trouxe consigo momentos de tensão e algumas caminhadas to the brink, à beira do precipício (talvez menos Berlim, e mais Cuba).
Em Paris, os principais estadistas “vencedores” que conduziram a Grande Guerra estavam na mesa de negociações, mas os resultados não foram muito brilhantes, ao contrário: criaram as sementes da retomada. Ao final da Segunda Guerra Mundial, uma vez derrotados os agressores nazifascistas, os grandes estadistas, ou tinham desaparecido (Roosevelt), ou tinham sido alijados do poder (Churchill e, mais adiante, De Gaulle); sobrou apenas Stalin, para construir seu poderoso “novo espaço vital” em toda a Europa central e oriental; mais adiante Mao substituiria Chiang Kaichek no comando do grande aliado na frente oriental contra o militarismo japonês, e a China passou para o outro lado.
Obviamente, a panóplia nuclear fez com que a guerra entre novos inimigos permanecesse “fria”, com poucas exceções regionais que continuaram nas “proxy wars” durante muito tempo: Vietnã, Oriente Médio, várias partes da África e da Ásia. Instalou-se aquilo que Raymond Aron tão acertadamente constatou ainda antes que a União Soviética lograsse a paridade nuclear: “paz impossível, guerra improvável”. Infelizmente, o mundo perdeu uma oportunidade de construir a paz e a instabilidade tão almejadas por duas gerações de combatentes e povos inteiros desde 1914: centenas de bilhões de dólares foram gastos nos equipamentos e forças militares – e na inteligência, na subversão e sabotagem – em lugar de serem devotados para eliminar miséria e pobreza ao redor do mundo.
O mundo já está tendo a sua “terceira guerra mundial”, atualmente, e mesmo que instituições e arranjos diplomáticos não sejam inteiramente refeitos quanto em 1919 e 1945, o impacto geopolítico da presente “guerra” será tremendo, abrindo novas perspectivas para praticamente todos os países, alguns mais fortalecidos, outros relativamente paralisados, senão em declínio. Já tracei em outro texto – “Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19”; link; https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/consequencias-geopoliticas-da-pandemia.html – considerações sobre o final da guerra fria geopolítica e o ingresso numa guerra fria econômica que já parece ter pelo menos um vencedor, o mesmo que está sendo acusado – como o Império alemão na Grande Guerra – de ter sido o responsável pela atual guerra contra um inimigo invisível.
Não é o caso de retomar aqui o debate, que empreenderei no momento oportuno; prefiro me concentrar sobre o nosso país. O que me parece, observando as coisas num cenário ainda indefinido, é que o Brasil está singularmente desprovido de quaisquer condições – materiais, recursos, inteligência, liderança – para não apenas conduzir um combate bem sucedido contra o inimigo omnipresente, como totalmente despreparado, pela ausência de lideranças efetivas, para levar adiante o trabalho de reconstrução do pós-guerra. Planos nas áreas da economia, da segurança e justiça, e até das “infraestruturas” de saúde, educação e ciência e tecnologia podem estar irremediavelmente comprometidos pela “falência” da direção, pelo menos a que se apresenta pateticamente ate aqui. Nas áreas da educação e das relações exteriores essa falência é visível, crescente e preocupante, mas a descoordenação que se manifesta nos escalões mais altos tornam duvidosos, ou irrisórios, quaisquer esforços para empreender, não apenas nacionalmente, mas globalmente, o imenso esforço de reconstrução do pós guerra que terá de vir de novas e responsáveis lideranças.
Aparentemente, já começamos derrotados desde o início, nos campos de batalha da presente guerra aberta pela pandemia, mas também no planejamento do pós-guerra. Pretendo dedicar minhas próximas reflexões sobre a natureza do duplo exercício que a nação precisaria fazer, agora e mais adiante, como forma de oferecer alguns elementos de orientação a mim mesmo, antes de mais nada, assim como a eventuais interlocutores nos diversos meios com os quais venho interagindo desde algum tempo.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de abril de 2020
Um pouco mais de isenção na análise cairia bem. Uma pitada de otimismo seria também de bom grado. Que suas medíocres previsões não se confirmem...
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