terça-feira, 20 de abril de 2021

O que teria feito Merquior se não tivesse precocemente falecido em 1991? Minha imaginação - Paulo Roberto de Almeida

 O trecho final de meu prefácio a esta brochura: 

3894. José Guilherme Merquior: um intelectual brasileiro, Brasília, 19 abril 2021, 322 p. Coletânea de textos de e sobre o grande intelectual diplomata. Versão abreviada, com links remetendo a pdfs em Academia.edu: 187 p. Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/46954903/Jose_Guilherme_Merquior_um_Intelectual_Brasileiro_2021_); divulgado no blog Diplomatizzando (20/04/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/04/jose-guilherme-merquior-uma-homenagem.html).

(...)

De minha parte, adoto o seguinte ponto de partida no seguimento do imenso trabalho desenvolvido por Merquior – se isso é possível – e que deveria ter tido continuidade nos 30 anos seguintes ao ano de sua morte, em 1991: o que teria ele escrito depois de Liberalism, Old and New? Quais teriam sido os seus novos temas, ou como teria ele enfrentado as novidades da terceira onda de globalização, depois da implosão da União Soviética e da irresistível ascensão da China? Como ele estaria contemplando, hoje, a ascensão da nova direita, burra, até estúpida e autoritária, sendo que ele defendia um social-liberalismo esclarecido, economicamente responsável, culturalmente aberto e tolerante, totalmente receptivo às grandes tendências nos terrenos dos costumes e das preferências individuais? 

Ele talvez se sentisse decepcionado com os destinos do Brasil, uma vez que ele era basicamente impulsionado pela ideia da razão, e acreditava, sinceramente, que um diálogo aberto e bem informado entre partidários e militantes de diferentes tendências – econômicas, políticas, culturais – poderia conduzir o país na direção da adoção de políticas simplesmente racionais tendentes a diminuir o grau anormalmente elevado das iniquidades brasileiras, das misérias preservadas ao longo de cinco séculos de nação e de dois séculos de Estado nacional independente. Na diplomacia, na esfera política, no âmbito acadêmico ou na vida cultural, ele teria certamente continuado a oferecer novas e instigantes contribuições a um debate de alto nível sobre nossos problemas mais cruciais. Fomos privados desses aportes intelectuais pela Parcas, como já lamentava em 1991 seu grande amigo, mentor e companheiro de tertúlias Roberto Campos, quem lhe permitiu escapar do aborrecido trabalho burocrático (geralmente inútil) da embaixada em Londres, para conduzir sua tese com Ernest Gellner, um dos trabalhos que mais o distinguiram entre colegas acadêmicos de nível mundial. 

Aliás, basta olhar o sumário da obra de 2001 (O Itamaraty na Cultura Brasileira, organizada pelo embaixador Alberto da Costa e Silva), sobre os diplomatas intelectuais, para saber que eles não foram lembrados exatamente por enfadonhos despachos ou por telegramas de instruções rotineiras, mas por suas obras construídas paralelamente às ocupações triviais de chancelaria. A inteligência lhes foi um atributo que pode ter sido facilitado pela vida diplomática, mas não foi esta que moldou seus pensamentos, e sim a própria vida intelectual de cada um deles. Merquior foi um dos grandes, um gigante no terreno que ele próprio escolheu, não o da poesia, exatamente, ou o da literatura, enquanto ofício, mas o da crítica das ideias, em literatura, em poesia, em filosofia, em política, um terreno no qual ele dialogou, debateu, diretamente ou à distância, com os grandes pensadores do seu tempo, sem deixar de retomar as ideias de grandes predecessores, todos os iluministas, desde os séculos XVII e XVIII, até seus modernos sucessores nos salões da academia ou nos cenáculos da política. 

De minha parte, já inclui Merquior entre as quatro dezenas de pensadores brasileiros que, desde o início do século XIX, participaram da construção da nação, pelo menos em ideia e intenção, pois que muitas das propostas por eles formuladas, nos campos da governança, da economia, da política, da vida universitária e cultural, nem sempre foram concretizadas na prática, o que se torna evidente pelo estado quase estagnado do país. Cem anos depois da Semana de Arte Moderna de 1922, duzentos anos desde a independência, o Brasil ainda segue avançando aos trancos e barrancos – como diria Darcy Ribeiro, um dos muitos “esquerdistas” que aprenderam a respeitar Merquior –, ainda continua progredindo aos “tiquinhos”, como pretendia Mário de Andrade pouco depois da semana que organizou, para quem o progresso também “é uma fatalidade”. Merquior preferiria dizer que o progresso é uma construção de homens racionais, como ele tentou ser durante toda a sua vida adulta. 

Ao lamentar que tenhamos sido privados de sua colaboração nestas últimas três décadas nas quais ele poderia ter estado ativo, nosso dever é continuar sua obra de defesa de ideias e de propostas de ação. Este volume, que coloca certo número de trabalhos pouco conhecidos à disposição de um número maior de interessados, pode estar atuando nessa direção e colaborando com sua obra pedagógica de Aufklärung, de esclarecimento, e sobretudo de inteligência. 


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20 de abril de 2021

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