Militar
condenado na Lava Jato diz que foi preso por interesse internacional
Folha de S. Paulo, 7/11/2017
Acusado
de receber propina de R$ 4,5 milhões de empreiteiras que tinham obras em Angra
3, o ex-presidente da Eletronuclear Othon Luiz Pinheiro da Silva ficou preso
por dois anos e recebeu uma das maiores condenações da Lava Jato: 43 anos de
prisão por corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização
criminosa. Considerado um dos mais importantes cientistas brasileiros e o pai
do programa nuclear do país, o almirante Othon, 78, como é conhecido, ficou
isolado em uma cela e diz que aprendeu a comer com as mãos. Solto no mês
passado, ele pouco sai às ruas e chora com frequência.
Folha
- Como o senhor se aproximou da empreiteira Andrade Gutierrez?
Almirante
Othon - Em 1994, quando fui para a reserva, a primeira coisa que fiz foi
prestar um concurso para o Instituto de Pesquisas Nucleares da Cnen (Comissão
Nacional de Energia Nuclear). Havia duas vagas para pesquisador. Concorri com
16 doutores e tirei primeiro lugar. Mas nós estávamos em 1994, numa fase de
muita globalização. E eu não fui chamado. A minha cara é nacionalista. E eu sou
mesmo. Como não deu certo, montei uma empresa de consultoria, a Aratec. No
início de 2004, um camarada da Andrade Gutierrez, o senhor Marcos Teixeira,
apareceu lá.
E
o que ele queria?
Ele
disse: "Nós [construtora] temos um contrato de 1982 [para as obras civis
da usina nuclear de Angra 3]. Mal começamos a mexer na fundação e ele foi
interrompido". Eles achavam que eu poderia ajudar [na retomada das obras],
por ter influência militar. Eu disse "não tenho mais, saí [da Marinha] faz
tempo". Aí veio a ideia de fazer um estudo para eles. Eu não estava no
governo e nem imaginava que ia voltar [Othon foi convidado para presidir a
Eletronuclear um ano depois, em 2005].
O
Ministério Público Federal considerou que o estudo assinado pelo senhor para a
Andrade Gutierrez era simplório e entendeu que ele é fictício.
É
um desconhecimento total ou uma vontade de não querer reconhecer [a importância
do trabalho]. São anos de pensamento sobre o Brasil. O que ocorreu no país, e
sobre o que falava no meu estudo? O consumo de energia cresceu e o estoque de
água das hidrelétricas estacionou na década de 80. Antes disso, o Brasil
poderia passar por vários anos "secos" porque tinha estoque de água.
Mas isso mudou e veio o apagão. O Brasil agora precisa de energia térmica de
base. Termelétricas têm que ser [movidas a] carvão ou [energia] nuclear. E
nuclear é melhor para nós porque temos reservas [de urânio] correspondentes a
50% do pré-sal. Nós temos que aproveitar o que a natureza nos dá. Ah, se eu
tivesse mais [usinas] nucleares. O custo do investimento é maior mas o do
combustível é menor [do que o de outras alternativas]. No caso da hidrelétrica,
o custo [do combustível, a água] é quase zero. E no caso da nuclear, é pequeno.
Se eu tiver a energia nuclear, eu economizo água e não chego nessa situação [de
apagão]. A energia nuclear não compete com a hidrelétrica. Ela complementa. Era
isso o que o estudo mostrava.
Depois
o senhor foi para o governo e a obra de Angra 3 foi retomada.
Em
julho [de 2005], eu soube que tinha uma lista [no governo Lula] para escolher o
presidente da Eletronuclear. Eu não queria. Mas aí eu fiz a grande bobagem da
minha vida. Fui convidado. Bateu a vaidade e eu aceitei. Em outubro de 2005,
assumi o cargo.
E
como passou a receber dinheiro da empreiteira?
Tudo
o que eu fazia na época [em que prestava consultoria] era na base do sucesso. E
coincidiu que fui para o governo e houve a decisão [de retomar Angra 3]. Quem
decidiu foi o Conselho Nacional de Política Energética, do qual eu não fazia
parte. Como presidente, eu apenas executei as diretrizes. Mas passei a fazer
jus [à remuneração] do trabalho [estudo para a Andrade] que eu fiz antes.
Quanto
passou a receber?
Eu
cobrei R$ 3 milhões, em valores de dezembro de 2004 [a Polícia Federal diz que
o almirante recebeu R$ 4,5 milhões em valores atualizados]. Comecei a receber
depois que houve a decisão da retomada das obras. Como era um troço
completamente diferente, eles falaram "vamos pagar através de outras
empresas". Aí virou outro crime. Se fosse hoje, eu exigiria deles
[Andrade] um contrato de confissão de dívida para que me pagassem só depois que
eu saísse. Eu não receberia no cargo. Eu tinha direito, foi um trabalho que eu
fiz antes. Não era imoral nem ilegal. Apenas com a experiência de hoje eu teria
feito diferente.
O
Ministério Público Federal e a Justiça consideraram que era propina.
Não
era propina, não foi mesmo. Eu achava que tinha direito de receber. Agora, tive
o cuidado de não tomar nenhuma decisão [que beneficiasse a empreiteira], não
tem nenhum ato de ofício assinado por mim. Tivemos [ele e a Andrade]inclusive
um atrito inicial, porque eu exigi que o TCU aprovasse os detalhes do aditivo
[para o pagamento do serviço nas obras de Angra 3]. Eles ficaram
irritadíssimos. Fui uma decepção para eles. Houve outras divergências, chegaram
a parar as obras. Oras, se eu tivesse ligação com eles, isso teria ocorrido?
Delatores
da empresa afirmaram que o senhor, na verdade, cobrava percentual sobre os
contratos de Angra 3.
A
Andrade já tinha um ressentimento em relação a mim. E delação premiada é um
processo muito danado. O cara acha que agrada [os investigadores] e senta a
pua. Ele não tem compromisso.
O
senhor diz que sua prisão interessa ao sistema internacional. Que evidência tem
disso?
Como
começou tudo isso? Num depoimento que o presidente de uma empreiteira fazia
sobre um contrato com a Petrobras. Ele mencionou que ouviu dizer algo sobre o
presidente da Eletronuclear estar de acordo com um cartel. Isso serviu de
pretexto para os camaradas vasculharem a minha vida desde garoto. Havia um
direcionamento.
Mas
haveria um comando externo nas investigações?
Não
comando, mas influência forte, ideológica. Não posso provar mas tenho um
sentimento muito forte. Houve interesse internacional.
E
por que haveria interesse internacional em sua prisão?
Porque
tudo o que eu fiz [na área nuclear] desagradou. Qual o maior noticiário que tem
hoje? A Coreia do Norte e suas atividades nucleares. A parte nuclear gera
rejeição na comunidade internacional. E o Brasil ser potência nuclear
desagrada. Disso eu não tenho a menor dúvida.
Há
setores que acreditam que o Brasil deveria desenvolver a bomba atômica. O país
fez bem em abrir mão dela?
Eu
acho que fez. O artefato nuclear é arma de destruição de massa e inibidora de
concentração de força. Mas, no nosso caso, se tivéssemos a bomba,
desbalancearíamos a América Latina, suscitando apreensões. E a última coisa que
a gente precisa na América Latina é de um embate.
O
país, no entanto, não abriu mão da tecnologia. Se necessário, em quanto tempo
faríamos uma bomba?
Em
uns quatro meses. Com a tecnologia de enriquecimento que nós usamos, podemos
fazer a bomba com o plutônio, como a de Nagasaki, ou com o urânio, que foi a de
Hiroshima. Temos os dois porque quem tem urânio enriquecido pode ter o plutônio
também.
Voltando
às investigações, o senhor foi acusado de contribuir para a desvalorização da
Eletronuclear.
Quando
assumi, ela era chamada de vaga-lume. Em poucos anos, passou a figurar entre as
centrais de melhor desempenho do mundo. As ações se valorizaram. Como então eu
contribuí para desvalorizar as ações? Nada disso foi levado em conta no meu
julgamento. O meu passado serviu como agravante. Eu peguei cinco anos de cadeia
a mais porque, se eu tinha aquele passado, eu tinha que ter um comportamento
[exemplar]. É a primeira vez que antecedente virou agravante. Vida pregressa
ilibada virou agravante. Tá lá, escrito [na sentença]. É só ler. Eu li. Me deu
uma revolta tão grande... [levanta da mesa, chora].