Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
O que mais me tocou nesta crônica de Arturo Pérez-Reverte, não foi tanto a calma tranquila com que ele fala dos livros que nunca lerá, o que também acontece comigo, tanto que já estou doando, para a Biblioteca do Itamaraty, muitos livros que se acumulam em minhas duas bibliotecas e que nunca lerei (mas onde sei que poderei achá-los quanto precisar, o que já não era mais possível no extraordinário caos da desarrumação dos meus livros). Não foi isso. Foi a menção aos livros que "estavam piscando" para ele, nas banquinhas de rua, os sebos improvisados, na sua tradicional bagunça de livros de todos os gêneros, a preços irresistíveis. Sempre temos a ilusão de que um dia leremos aquela obra famosa, que encontramos por acaso naquela banquinha de passagem. Esse dia nunca chega, mas só o fato de levar para casa já é um grande alívio intelectual, se isso existe. Eu também tinha livros que piscavam para mim, na biblioteca da minha infância: Monteiro Lobato, Emílio Salgari, Jules Verne, Karl May, Hendrik Van Loon, e tantos outros. Impossível resistir: agarrava logo um ou dois, e depois levava mais dois para casa, para ler deitado na cama, a contra luz. Ainda tem vários outros piscando para mim, neste mesmo momento, nas duas estantes em frente da mesa de trabalho. Esses livros são terríveis, impossíveis, incontroláveis... Paulo Roberto de Almeida
Este ensaio, ‘Libros que nunca leeré’, foi originalmente publicado em espanhol nas páginas da XLSemanal. Com toda sua gentileza, don Arturo Pérez-Reverte autorizou a tradução e publicação de seu ensaio aqui em nosso Estado da Arte. Tradução de Gilberto Morbach.……………….
Livros que nunca lerei
por don Arturo Pérez-Reverte
É uma tarde tranquila de inverno, com reflexos do sol sob as árvores. Caminho pela Cuesta de Moyano, detendo-me nas banquinhas de livros de segunda mão que a esta hora estão abertas. São poucas e isso me entristece. Um dia com tão boa temperatura, uma hora agradável, e não há quase ninguém aqui. Paro para olhar os balcões, converso com os livreiros. Em todos, encontro poucas esperanças de que isso tudo sobreviva. Uma veterana, experiente no negócio, diz que “nos restam dois telediarios”,* e eu compartilho do pessimismo. Acabarão colocando aqui, suponho, bares de tapas ou algum tipo de artesanato de rua; e então, seguramente, o lugar estará cheio. No momento, a falta de interesse do público, a indiferença dos políticos, os tempos que passam, tudo isso sentencia a médio prazo esta joia da cultura madrilena; este paraíso dos leitores onde, pelo preço de duas cervejas, é possível levar, se se escolhe com cuidado, duas ou três boas edições de livros espetaculares. Aqui não há desculpas no sentido de que um livro é caro. Enquanto existir lugares como este, quem não lê não é porque não pode. É porque não quer.
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Sou um velho caçador de livros, com todos os modos e instintos para ser. De modo que, nesta tarde, como sempre, movo-me pelas bancas com olhos atentos e dedos rápidos para encher minha bolsa, tão disposto quanto no dia em que, há cinquenta anos, cheguei em Madrid e comecei, livro a livro, a construir a trincheira em que vivo e sobrevivo: a biblioteca que cresceu pouco a pouco, primeiro para reconstruir a dos meus avós e meu pai, e logo se tornando mais pessoal e própria. A que me permitiu compreender o mundo complexo e violento pelo qual caminhei desde muito jovem e que, agora, multiplicada em centenas de estantes e milhares de livros, me permite digerir o quanto vivi. A que, combinada com aquilo que recordo e imagino, me ajuda a contar histórias e interpretar o mundo. Inclusive, a suportá-lo quando não me agrada. Essa biblioteca que é lugar de trabalho, refúgio e, como disse muitas vezes, analgésico: do tipo que não elimina as causas da dor, mas ajuda a suportá-la.
Nesta idade, como digo, é puro instinto. Necessidade compulsiva, ainda que já tenha este ou aquele título em uma edição diferente. Ler o velho papel que outros já leram, tocar as páginas tocadas por outras mãos, encher a bolsa que eu costumo trazer quando venho aqui: Círculo de Lectores, Editorial Molino, Colección Reno, Austral, etc. Já não sinto, claro, a emoção dos primeiros anos; essa vibração quase física de encontrar um título procurado ou descobrir outros que piscavam pra mim, prometendo fazer parte de minha vida e até mesmo muda-la: El diablo enamorado, Cuadros de viaje, La flecha de oro, Vidas paralelas, Sistema de la naturaleza, El buen soldado… Mas o impulso, a necessidade de acumular livros como a pega que busca objetos brilhantes pro seu ninho, isso não mudou. Sigo caçando, rápido, apaixonado, cheio de alegria. Então, em casa, esvazio a bolsa para colocar cada um em seu lugar com a companhia que lhe corresponda. Como esses quatro de Graham Greene que acabo de comprar por dez euros, ainda que já os tenha em outras edições, apenas porque o ex libris ali colocado faz pensar que sua proprietária — uma mulher, talvez já morta —, fosse quem fosse, sorriria consolada se me visse resgatá-los.
Às vezes, alguém que vê minha biblioteca pergunta se já li todos esses livros. A resposta é sempre a mesma: alguns sim, outros não; mas preciso que todos eles estejam aí. Uma biblioteca é memória, companhia e projeto de futuro, ainda que esse projeto não chegue a se completar jamais. Uma biblioteca mobilia, e define, uma vida. Estranho é não perceber o coração e a cabeça de um ser humano depois de um olhar minucioso sobre os livros que tem em casa, ou os que não tem. Por isso, não me lamento por aqueles que não lerei. Cumprem sua função, inclusive ali, quietos, silenciosos, alinhados com seus títulos em suas lombadas. Posso abri-los, folheá-los, percorrê-los devagar, coloca-los na mochila para uma viagem. E ainda que eu jamais chegue a ler muitos deles, terão cumprido sua missão. Sua nobre tarefa. Quando compreendi que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li. Estão ali, e eles sabem quem eu sei. Se sobreviverem ao tempo, ao fogo, à água, ao desastre, à estupidez humana, um dia serão de outra pessoa. E graças a mim, que tive o privilégio de resgatá-los de seus milhares de naufrágios, unindo-os à minha vida.
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Nota:
* Nota do tradutor: No espanhol, quando “le quedan dos telediarios” a alguém, significa que falta pouco para o fim. O Telediario é um tradicional programa de televisão que reúne as principais notícias do dia e dura por volta de meia hora.