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sábado, 25 de janeiro de 2020

Holocausto: memória e reflexão - Benoni Belli (OESP)

Holocausto: memória e reflexão

O dia 27 de janeiro é reservado, todos os anos, a uma homenagem que é também um momento de reflexão. O dia internacional em memória das vítimas do Holocausto marca o aniversário da liberação do campo de concentração de Auschwitz, que em 2020 completa 75 anos. Além de ser ocasião de lembrar os milhões que perderam a vida ou foram de algum modo submetidos à máquina mortífera do Holocausto, a data nos intima a deixar de lado a indiferença e a condescendência diante da discriminação, da exclusão e da injustiça.
A reflexão deve ter sempre presente os relatos das vítimas. O testemunho dos que enfrentaram a provação e o horror do Holocausto é o mais poderoso antídoto contra qualquer tentativa de normalizar ou relativizar o significado desse crime atroz e imperdoável.
Em seu relato como interno de Auschwitz, Primo Levi conta que tentou matar a sede com um pedaço de gelo que havia se formado no exterior de uma janela. Uma sentinela nazista, ao assistir à cena, aproxima-se e arranca brutalmente o gelo das mãos de Levi, que, assustado, pergunta: “Warum?” (Por quê?). O guarda o repele respondendo: “Hier ist kein warum” (aqui não há ‘por quê’).
Como o próprio Levi conclui, a explicação é monstruosa, mas simples: tudo naquele lugar era proibido; essa era a razão de ser do campo de concentração. E, no entanto, é justamente esta a indagação que devemos continuar fazendo ainda hoje: Por quê? Como o indizível pôde ter lugar, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico e sofisticação cultural, e a despeito de atrocidades passadas que deveriam ter servido de aprendizado? Por que esse monstro surgiu no seio da sociedade bem pensante, moderna e orgulhosa de seus feitos nacionais e seus avanços econômicos?
Há uma vasta literatura que investiga as causas imediatas e remotas do nazi-fascismo e do Holocausto. Até hoje, a pergunta continua sendo feita sem que uma resposta consensual tenha sido encontrada. Mais do que garantir uma resposta definitiva, a pergunta e o questionamento incessante permitem desvendar alguns mecanismos que tornaram o Holocausto um crime único, sem igual e particularmente repulsivo.
É verdade que outros regimes autoritários e totalitários causaram devastação e número impressionante de mortos e perseguidos. Ao examinar o passado com as lentes e os padrões que o Holocausto nos legou, é também possível encontrar exemplos de massacres que podem ser enquadrados na definição de genocídio. Até mesmo os judeus já contavam com uma longa e lastimável história de perseguição e de pogroms nos séculos XIX e XX. Os crimes nazistas encontraram um terreno propício para deitar raízes no antissemitismo previamente disseminado, o que foi fundamental para o êxito da empresa macabra do Holocausto.
O impacto do Holocausto, pela natureza do crime perpetrado, mudou os parâmetros do direito e da moral pública para medir o grau de civilização de uma sociedade. A própria noção de genocídio e de crime contra a humanidade deriva do esforço empreendido por especialistas e juristas com o objetivo de encontrar tipos penais que pudessem responder ao grau de ignomínia que caracterizou o Holocausto. O antissemitismo elevado à enésima potência e a desumanização de adversários políticos do nazismo foram muito além do conhecido raciocínio instrumental dos fins que justificam os meios.
Muitas atrocidades antes e depois da Segunda Guerra Mundial foram cometidas com objetivos variados relacionados à concentração de poder, recursos e territórios. Massacres no contexto da Primeira Guerra Mundial ou ao longo do século XX, como na Ucrânia, no Camboja, em Ruanda ou em Srebrenica, por exemplo, tiveram elementos de desumanização do outro, utilizando como combustível o ódio irracional a uma identidade étnica, religiosa ou nacional. Um ódio provocado pela manipulação da memória coletiva com fins claramente políticos, em geral criando ou exacerbando artificialmente oposições históricas entre grupos étnicos e nacionais.
Apenas sob o nazismo, porém, uma doutrina de superioridade racial conduziu à redução oficial e explícita de grupos com identidades particulares e variadas (judeus, homossexuais, ciganos, comunistas, socialistas) à condição sub-humana, tornando os integrantes desses grupos totalmente descartáveis, independentemente de qualquer ação prática ou papel social dos indivíduos em questão. Em certos casos, como no dos judeus, bastaria o nascimento para terem arrancado automaticamente seu direito a ter direitos, para usar um termo cunhado por Hannah Arendt. Bastava nascer para ser jogado na categoria de indesejável e estar sujeito à eliminação.
Essas características odiosas do nazismo explicam o Holocausto como um crime único, e como consequência de um sistema de pensamento que disseminava o ódio e a necessidade de eliminação física de seres considerados nocivos e previamente marcados por sua identidade étnica e racial. Passados 75 anos, é preciso seguir perguntando por que isso ocorreu e por que a sociedade bem pensante não conseguiu construir uma contenção eficaz contra o colapso moral generalizado. Como e por que pessoas comuns, e não necessariamente monstruosas, tornaram-se veículos, pilares ou engrenagens úteis de um sistema que encarnou o mal extremo?
Nem todos sucumbiram à ordem injusta imposta pela força ou à ideologia nefasta. Foi o caso, por exemplo, dos dois “justos entre as nações” brasileiros, ambos do Itamaraty, Luiz Martins de Souza Dantas e Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, que, para salvar judeus das garras do nazismo, descumpriram instruções superiores. Houve outros como eles, que tiveram coragem para desobedecer ordens superiores com o objetivo de salvar vidas. Pessoas realmente extraordinárias, que arriscaram sua posição e seu conforto para defender os valores da humanidade, em circunstâncias em que era mais fácil e cômodo permanecer inerte frente ao opróbrio das vítimas inocentes.
No prefácio de seu livro “Homens em Tempos Sombrios”, Hannah Arendt lembra que a humanidade como um todo passou por diversas experiências trágicas. Esses momentos sombrios não seriam uma raridade. Arendt nota que todos os países e sociedades têm sua parcela, passada e presente, de crimes e catástrofes. Inspirada no exemplo dos que resistiram ao Holocausto, ela considera que mesmo no tempo mais sombrio “temos direito de esperar alguma iluminação”, que pode bem emanar “menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra”.
Esses indivíduos que mantiveram a capacidade de pensar e julgar, mesmo quando tudo à sua volta demandava a adesão cega aos códigos vigentes e às palavras de ordem totalitárias, foram capazes de manter a chama da humanidade acesa. Mais do que esquemas conceituais, a resistência prática à desumanização permitiu iluminar o caminho em meio à escuridão.  Talvez aí resida uma das chaves para evitar novas recaídas e colapsos morais em sociedades que se consideram destinadas ao progresso. Não é preciso ser herói para se insurgir contra a injustiça e a discriminação, basta cultivar a empatia e o compromisso com a dignidade humana, e pautar-se por esses valores nas esferas pública e privada.
Quando recordamos o Holocausto, dois sentimentos se avivam na alma. Em primeiro lugar, a compaixão pelas vítimas, em particular as que tiveram suas vidas ceifadas, desestruturando famílias, abreviando sua contribuição à sociedade, privando parentes e amigos de entes queridos, deixando uma dor incalculável. Ao lado desse sentimento, emerge também a esperança de que o exemplo das vítimas e sobreviventes constitua uma lição permanente na prevenção da desumanização do outro, qualquer que seja sua identidade e sua condição social. A provação e o sofrimento dos que sobreviveram e não perderam a esperança, assim como o exemplo dos que resistiram, são um farol que projeta sua luz sobre o presente e o futuro. 
Saberemos agir animados por esses sentimentos de compaixão e esperança? Utilizaremos esses sentimentos e a memória do Holocausto para manter o mundo livre dos abusos, da violência odiosa do racismo e da discriminação? Saberemos identificar, na sociedade dita bem pensante e respeitável, o insidioso vírus da desumanização do outro, a ameaça da retirada do direito a ter direitos inerente à cidadania, antes que degenere em um colapso moral mais amplo? Diante das pequenas e grandes injustiças, teremos a empatia e, sobretudo, disposição e coragem de dizer “basta”? Seremos capazes de perguntar “por quê”, exigir explicação e reparação, quando seres humanos forem submetidos ao arbítrio ou quando novas manifestações de antissemitismo e racismo baterem à porta?
A melhor forma, hoje, de rememorar o Holocausto e homenagear suas vítimas é responder sim a essas perguntas. Um forte e retumbante sim, para que a luz que emanará de nossos atos e palavras, ainda que seja bruxuleante como a de uma vela, ajude a iluminar o caminho e afaste as trevas. E para que jamais tenhamos de nos curvar ao “Hier ist kein warum” que sufoca o pensamento e nos transforma em meros autômatos de uma máquina infernal, cujo rastro será sempre de destruição e sofrimento humano. Que a memória das vítimas do Holocausto não nos deixe esmorecer na defesa de nossa humanidade comum.

Benoni Belli é diplomata de carreira. Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Bicentenário da Independência - Benoni Belli (OESP)

Bicentenário da Independência: Diplomacia e Sentimento Nacional no Brasil
A diplomacia foi instrumento privilegiado para negociar com Portugal 
os termos da Independência, obter o reconhecimento de outros países 
e superar definitivamente as controvérsias territoriais

por Benoni Belli
Estado da Arte
O Estado de S. Paulo, 29 de agosto de 2019

Em 2022, comemoraremos o bicentenário da Independência. Ao contrário do que aprendemos na escola, a Independência não se esgotou no grito do Ipiranga, nos idos de 1822. Aquele foi o ponto de partida de um processo que se estende até nossos dias e se projeta no futuro. Foi o momento inaugural, a certidão de nascimento do país, um evento cuja importância ninguém discute, mas uma gesta que tem sido e deve continuar sendo afirmada e reafirmada continuamente ao longo do tempo, seja simbolicamente, seja por meio da luta constante pela criação e manutenção das condições que permitam ao país seguir se fortalecendo. A independência é sinônimo da construção de um país soberano, que busca o desenvolvimento e o bem-estar de seu povo, capaz de projetar na região e no mundo seus valores e interesses, animado por um sentimento comum de união na pluralidade.


Em nossa trajetória como país, a diplomacia foi fundamental desde os primórdios. Bem antes da ruptura protagonizada pelo príncipe-regente, a diplomacia desempenhou papel de destaque por meio da figura de Alexandre de Gusmão, que teve, como secretário particular de Dom João V, atuação crucial na negociação do Tratado de Madri de 1750, garantindo o território então ocupado pelos súditos do Império português. A diplomacia foi instrumento privilegiado para negociar com Portugal os termos da separação (ainda que tenha exigido também derramamento de sangue), obter o reconhecimento de outros países – a começar pela hegemônica Inglaterra – e, mais tarde, superar definitivamente as controvérsias territoriais. Já no início do Século XX, graças à diplomacia, o país consolidava seu território. Desde então, a diplomacia tem sido também veículo para buscar a inserção soberana na região e no mundo.
A atuação da diplomacia no processo de Independência respondeu ao sentimento de nacionalidade em formação. Um sentimento que surgiu inicialmente da percepção das elites locais das contradições entre seus interesses e os da metrópole e espraiou-se pouco a pouco, produzindo a convicção de que o Brasil independente estaria destinado a percorrer uma trilha que o levaria a espelhar a exuberância de sua própria natureza. Joaquim Nabuco captura esse sentimento uma conferência proferida em 1908: “O Brasil sempre teve consciência do seu tamanho e tem sido governado por um sentimento profético de seu futuro”. Há um certo determinismo saudável nesse sentimento quando se toma o cuidado de não descambar para o ufanismo, empregando-o na dose certa para estimular a coesão social e a unidade de propósito na busca de um país mais próspero e justo. 
Esse futuro que habita o referido sentimento profético, contudo, não será alcançado inevitavelmente por mandamento divino. Essa noção de futuro só faz sentido como um objetivo a ser construído laboriosamente, fazendo nosso dever de casa internamente e negociando nossa interação com o mundo exterior com o objetivo de minimizar riscos e buscar influenciar processos negociadores em um sentido que nos favoreça. A concepção de Independência como um processo traz embutida a insatisfação com o que logramos em comparação com o que desejamos alcançar. Desde que não perca de vista os êxitos e sirva para superar as injustiças e iniquidades, esse é um sentimento positivo. Queremos celebrar avanços cumulativos, que cada geração vai agregando, mas tendo presente que a realização progressiva do ideal compartilhado de país demanda esforço contínuo. É uma obra aberta.
O sentimento nacional, nesse diapasão, não se confunde com o chauvinismo, fenômeno que se manifestou em diferentes contextos e países. Tampouco deve minimizar o sacrifício dos povos indígenas e a experiência da escravidão, que deixaram feridas ainda não totalmente cicatrizadas no nosso tecido social. Deve ancorar-se numa identidade construída ao longo de séculos em torno da nossa terra e cultura, que aprendemos a amar, e que plasma o modo de ser e sentir propriamente brasileiro, sem abrir mão da visão crítica de uma sociedade ainda profundamente injusta. Um nacionalismo aberto e destemido, que tem todo o direito de orgulhar-se de nossa contribuição à cultura universal, sem escorregar para a crença deletéria em uma essência imutável, atemporal e unívoca de brasilidade cuja existência mítica deve ser celebrada por meio de ritos que cristalizam uma memória coletiva edulcorada.
O nacionalismo, para ser uma força positiva, deve valorizar a força de nossa cultura e nossas tradições como ferramentas para construção de um país mais equilibrado e generoso, em um contexto de liberdade e respeito aos direitos de todos. Sabemos que o nacionalismo já se prestou a justificar o injustificável, inclusive limpezas étnicas e atrocidades mundo afora. Por isso, é preciso combinar nacionalismo com tolerância à diversidade e respeito à diferença. Por essa mesma razão, o sentimento de brasilidade, ao evitar idealizações nocivas – da “democracia racial” à ideia de povos indígenas assimilados romanticamente à sociedade branca e portuguesa hegemônica –, precisa manter-se alerta para que o sentimento de pertencimento à Nação não leve à diluição das contradições que precisam ser reconhecidas e devidamente tratadas para que todos, sem exceção, possam auferir os benefícios da cidadania.
O nacionalismo que interessa ao Brasil deve ser compatível com as liberdades, percebendo a Nação como uma comunidade em que a identidade comum é motivo de orgulho porque compatível com o pluralismo. Essa “comunidade imaginada” – para usar a noção de Benedict Anderson – é também uma poderosa ideia que move as pessoas, que lhes dá a segurança de pertencer a um grupo distinto, mas sem necessariamente diminuir ou depreciar os vizinhos e os estrangeiros. O fato de termos expandido e consolidado o “corpo da Pátria” por meio, sobretudo, da negociação, ao contrário de outros países que empregaram a guerra de conquista e a aquisição forçada de territórios como métodos predominantes, conferiu ao nosso sentimento de nacionalidade uma marca de origem, em que a solução pacífica de controvérsias e a preferência pelo direito e pelas regras negociadas ajudaram a moldar a identidade nacional e sua projeção externa. 
Ao refletir sobre nossa trajetória, é preciso não esquecer que muitos países cresceram, atingiram altos patamares de poder para depois tomar uma trajetória de decadência, seja por erros internos, seja por conta da hubris em suas aventuras internacionais. No nosso caso, o futuro desejado existe claramente como potencial muito mais alcançável do que para outros, já que nosso país é dotado de tantos recursos, resolveu seus problemas territoriais definitivamente no início do século XX e consolidou um patrimônio diplomático baseado na solução pacífica das controvérsias e no respeito ao direito internacional. Temos uma sociedade injusta, é verdade, mas que exige cada vez mais igualdade de oportunidades, e contamos com imensa diversidade que é fonte de criatividade para superar os desafios na busca do desenvolvimento e do bem-estar.
Saberemos fazer bom uso dos recursos humanos e materiais do país para realizar plenamente nosso potencial? A história brasileira demonstra que, apesar de oportunidades perdidas ao longo do processo, é possível dizer que nossa trajetória tem sido, em grande medida, positiva. As condições internas e internacionais mudam sem cessar, então esse esforço precisa ser atualizado continuamente, de modo a lidar com novos fatores e riscos. O sentimento de nacionalidade que nos anima não deve turvar a visão dos desafios que devemos enfrentar, mas funcionar como um estímulo para que realizemos nosso potencial e para que o Brasil não seja sempre o país do futuro. Tampouco deve se traduzir em palavras de ordem e códigos de conduta automáticos, que sufocam o pensamento crítico. Ao contrário, o sentimento de nacionalidade deve liberar o espírito para enfrentar uma realidade ainda longe do ideal cantado em prosa e verso.
Ainda que a política externa dependa de nossa capacidade de fabricar soluções para problemas internos que nos afligem, não há dúvida que a interação com o mundo pode ajudar na busca dos objetivos nacionais. Entender as grandes tendências e interesses em jogo no ambiente internacional é condição para utilizar nossas relações exteriores como instrumento de desenvolvimento. Não há nenhuma prioridade nacional que não tenha uma faceta internacional e que, portanto, esteja imune à influência de decisões tomadas em outros países ou a regras adotadas em instâncias internacionais. Daí a importância de uma diplomacia que saiba mover-se em um mundo que hoje é de transição para uma ordem internacional em que a competição entre grandes potências tende a acirrar-se, o que requer estratégia de inserção internacional com clareza de prioridades e definição dos meios para persegui-las.
A nossa diplomacia tem hoje, como teve no passado, papel de grande importância na consolidação da Independência, entendida como um processo contínuo de afirmação e projeção de nossos interesses no mundo. O legítimo sentimento de nacionalidade que deve nos animar precisa estar calcado na combinação de confiança em nossa potencialidade e orgulho diante dos avanços logrados com uma boa dose de autocrítica, fundamental para identificar os erros históricos e as injustiças, como por exemplo a discriminação contra grupos vulneráveis e o patrimonialismo de nossas elites. Sem menosprezar o país que já construímos – uma das maiores economias mundiais, sede de empresas de sucesso, dotado de agronegócio pujante e recursos humanos de alta qualidade, além de uma cultura vibrante e uma sociedade dinâmica e criativa –, a atitude diante do Bicentenário da nossa Independência deve ser de reflexão.
É chegada a hora de realizar um balanço dos erros e acertos, de modo a injetar no sentimento de nacionalidade o ímpeto necessário e a coesão que permitem traçar o caminho do futuro. Ao caminhar na direção do Bicentenário, seria útil investigar também as condições atuais para assegurar uma ordem internacional que seja propícia à ascensão do Brasil e à projeção de seus interesses e realização de suas aspirações. Nesse sentido, a diplomacia deverá seguir sendo, tal como foi nos primórdios de nossa vida independente, importante instrumento para a construção do país que o povo brasileiro, especialmente os segmentos mais humildes, vulneráveis e sofridos, deseja e merece. Uma diplomacia que reflita os valores nacionais e os traduza em relações proveitosas com o mundo, mantendo-se assim à altura das expectativas do povo brasileiro.
Ao iniciarmos a contagem regressiva para o Bicentenário, o principal desafio talvez resida em utilizar o sentimento positivo de nacionalidade que une os brasileiros para superar polarizações estéreis, sem abrir mão do debate plural sobre o que ainda devemos fazer para trilhar o caminho do desenvolvimento. Tudo isso com a consciência de que não estamos sozinhos no mundo, de que temos uma responsabilidade de criar condições internacionais de estabilidade e prosperidade, negociando com vizinhos e demais parceiros soluções para desafios comuns. Essa tarefa hercúlea não deve ser subestimada, mas o importante é não fugir à luta, não esmorecer na defesa de um país acolhedor, generoso, aberto, tolerante e democrático, no qual cada brasileiro possa realizar seu potencial e seja parte integrante e beneficiário da construção diária, contínua e necessária da Independência.

Benoni Belli é diplomata de carreira. 
Este artigo foi escrito a título pessoal, não refletindo posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.