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sábado, 3 de setembro de 2022

Sobre a conjuntura política brasileira no momento do Bicentenário - Paulo Roberto de Almeida

Sobre a conjuntura política brasileira no momento do Bicentenário

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

 Nota sobre a miséria da política brasileira a partir da corrupção do PT e da inépcia danosa do atual presidente.

   

Uma simples constatação, mas que também é um julgamento de valor:

Vamos reconhecer uma característica essencial da atual divisão do Brasil e das dificuldades específicas do próximo escrutínio eleitoral do ponto de vista da cidadania consciente.

Lula e o PT ganhariam fácil estas eleições de 2022 se não tivessem roubado tanto entre 2003-2016 e se não tivessem jogado o país na maior crise econômica de sua história em 2014-15, da qual ainda não nos recuperamos, e que produziram a ascensão de um fascismo vulgar (sem doutrina e sem programa), sob o comando do mais inepto e doentio personagem da nossa política, um psicopata execrável, mas que faz parte da atual conjuntura.

A partir da megacorrupção conduzida por uma organização criminosa (apud Ciro Gomes), partindo do Mensalão, passando pelo Petrolão e que se estendeu por inúmeras outras “frentes de trabalho”, o estamento político predatório do Brasil ganhou impulso para novas aventuras no universo da roubalheira institucionalizada, sobretudo na forma que tomou sob o desgoverno do psicopata, que é a substituição do processo orçamentário normal (ou quase) por um estupro fiscal permanente e extremamente danoso para a sociedade.

Não teríamos tanta gente agrupada no antipetismo — que juntou pessoas normais da classe média com a escória da política — se Lula e o PT não tivessem conduzido os dois processos descritos: a megacorrupção e a crise econômica. 

Estamos pagando o preço da incompetência e da imoralidade dessa vertente supostamente esquerdista da classe política brasileira, que reforçou os elementos extremados da direita conservadora, que sempre foi dominante na miséria política e social do Brasil.

Os liberais verdadeiros, não muitos dos que se pavoneiam por aí, são uma pequena tribo desimportante no cenário político das elites brasileiras, incapazes de determinar o curso das grandes políticas nacionais, macroeconômicas ou setoriais.

Esta foi sempre a nossa tragédia nacional, a ausência de verdadeiras elites políticas liberais e democráticas, mas o cenário se agravou tremendamente com a falência de um estrato social-democrata responsável no Brasil.

Vamos continuar nos arrastando penosamente em direção da modernidade, com os tropeços inevitáveis à esquerda, no centro e à direita.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4227: 3 setembro 2022, 2 p.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Economia tem pouco a comemorar no Bicentenário - Alexander Busch (Deutsche Welle)

Economia tem pouco a comemorar no Bicentenário

Alexander Busch

O Brasil teve forte crescimento em apenas 50 dos 200 anos que passaram desde que se declarou independente de Portugal. No resto do tempo, a economia ou estagnou, ou encolheu. Qual é o motivo para esse desempenho fraco? 


Este ano, em 7 de setembro, o Brasil comemora os 200 anos de sua independência. Do ponto de vista econômico, o balanço desses dois séculos é modesto. Mário Mesquita, economista-chefe do Itaú Unibanco, demonstrou recentemente esse fato com uma análise estatística, segundo a qual o Produto Interno Bruto da população brasileira, de cerca de 5 milhões de pessoas em 1822, equivalia mais ou menos à metade do PIB dos americanos no mesmo ano. Um terço do povo brasileiro era escravizado.

Cem anos depois, a população cresceu para cerca de 30 milhões de pessoas. Com o café e a borracha, o Brasil viveu um boom de exportações. Mas a produção econômica havia encolhido para parcos 18% do PIB americano.

A partir de 1930, com o início da industrialização, começou a fase de crescimento mais longeva do Brasil até hoje. O país foi industrializado, aberto para a infraestrutura, cidades brotaram, também no interior. O Estado investiu maciçamente em megaprojetos como a Usina de Itaipu ou a fabricante de aeronaves Embraer. Alguns desses projetos tiveram sucesso. Muitos fracassaram.

Essa fase de crescimento durou meio século, até 1980, ano no qual foi registrado o pico do rendimento dos brasileiros em comparação com o dos americanos. Mesquita estima que o PIB per capita dos brasileiros era de 30 a 40% em comparação com o dos americanos. Desde então – principalmente nos últimos dez anos –, voltou a encolher para cerca de 25% do PIB americano.

O economista-chefe do Itaú Unibanco vê a abertura inexistente do país e o consequente protecionismo como motivo decisivo para o fraco desempenho do Brasil no contexto internacional.

No jornal Valor Econômico, Mesquita escreve que "o modelo de crescimento acelerado baseado em substituição de importações e liderado pelo Estado, que selecionava, protegia e financiava os chamados 'campeões nacionais'" é a razão para a estagnação econômica.

Eu vejo as coisas de maneira um pouco diferente.

Certamente, o isolamento de sua economia e a subvenção de empresas individuais é um motivo importante para explicar a falta de dinâmica na economia brasileira. Mas não é o motivo decisivo.

É que modelos similares já funcionaram relativamente bem na Ásia, a exemplo da Coreia do Sul. Com incentivos estatais direcionados a "campeões nacionais" e longos anos de substituição de importações, Seul criou uma indústria com capacidade para alto desempenho. O PIB per capita no país deixou o brasileiro para trás.

Mais decisivo, na minha visão, é que o Brasil sempre só incluiu uma pequena parte da população em sua economia. Isso começou nos tempos coloniais, com a escravidão. Até hoje, porém, a maioria da população é excluída ou participa da economia apenas marginalmente.

Há poucas possibilidades de ascensão para a maior parte dos brasileiros: a má qualidade do ensino público e do sistema de saúde, a segurança pública ausente e a infraestrutura fraca impedem que a maioria da população tenha chance de se integrar na produção econômica.

Isso vale principalmente para a grande fatia afrodescendente da população (56%) e também para os 30 milhões de brasileiros que têm apenas até um salário-mínimo à sua disposição. Quem não consegue obter uma educação também ganhará pouco dinheiro e nunca conseguirá consumir de forma a catalisar um salto de desenvolvimento na economia.

Enquanto a elite brasileira – ou seja, as classes média e alta – dividir entre si os cargos públicos administrativos e nas empresas estatais, além dos postos nos conselhos administrativos e cargos de diretoria nas empresas privadas, o Brasil continuará crescendo abaixo de seu potencial.

Apesar de todos os avanços e tentativas das últimas duas décadas, o Brasil está cada vez menos preparado para a transformação digital da sociedade e da economia que acontece atualmente no mundo todo.

Há pouco a comemorar nas celebrações do bicentenário da Independência.

--

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.



terça-feira, 11 de janeiro de 2022

O programa da Cátedra José Bonifácio da USP para 2022 - Rubens Ricupero

Ideias preliminares sobre a Cátedra José Bonifácio -USP

2021-2022


Rubens Ricupero


         O próximo período da Cátedra José Bonifácio coincide com o Bicentenário da Independência do Brasil. O patrono da cátedra foi a figura principal da independência, ao lado de Dom Pedro I. A dupla circunstância do aniversário nacional e do papel central nele desempenhado pelo Patrono da Independência quase que impõem de forma natural que a reflexão sobre o Bicentenário ocupe espaço central nos estudos e pesquisas da cadeira neste ano.

         José Bonifácio se destaca como figura original, quase única, entre os fundadores de nações nas Américas durante a era da independência. Não foi chefe militar, nem era jurista primordialmente. Homem de ciência num país sem ciência, universitário em terra sem educação superior, educado nas melhores universidades e centros científicos europeus, aplicou seu espírito científico a imaginar o que poderia vir a ser a nação cuja existência apenas começava naquele momento. Propôs ideias para resolver praticamente todos os desafios principais do país: a escravidão, o tráfico de escravos, a situação dos indígenas, o acesso à terra, o crédito, o desenvolvimento das minas e da indústria, a educação, a imigração. 

         A mais importante biógrafa moderna do Patriarca, a Professora da USP, Míriam Dolhnikoff, elaborou um livro intitulado Projetos para o Brasil José Bonifácio de Andrada e Silva (São Paulo: Companhia das Letras, 1998), que reúne e organiza todos esses projetos para criar um país moderno e aberto ao futuro. Em fins de 1990, poucas semanas antes de sua morte, José Guilherme Merquior havia feito uma conferência em Paris sobre os grandes projetos históricos de Brasil-nação. O primeiro consistia no que chamava de “Projeto Andrada”, resumido em executivo forte, imigração para substituir a escravatura e crédito do Banco do Brasil para desenvolver o país. 

         Os projetos que o Patriarca sonhou para a nação poderiam servir-nos de inspiração na hora de planejar as atividades da Cátedra JB nos próximos meses. Não para levar avante um programa de estudos históricos sobre a Independência, o que já foi feito de forma magnífica e recente por pesquisadores da USP por meio, sobretudo, do projeto temático Brasil: Formação do Estado e da Nação. Sob coordenação e liderança do professor da USP, István Jancsó, falecido em 2010, o projeto reuniu 22 pesquisadores de dez universidades. Resultou na publicação da obra: István Jancsó (organizador), Brasil: Formação do Estado e da Nação. (São Paulo: Hucitec, Unijuí, FAPESP, 2003).  

         Levando em conta o estudo histórico já realizado, os projetos de Brasil-nação nos fornecem inspiração sobretudo porque, na maioria dos casos, se não na totalidade, os mesmos problemas ou suas sequelas continuam a interpelar os brasileiros na véspera do terceiro século da existência do país independente. Um centenário na vida da nação se presta sempre a duas perguntas inevitáveis: o que se fez? O que falta fazer? As grandes exposições universais do passado se compraziam em inventários exaustivos, balanços que mereceriam o nome de “museus de tudo”: as artes, as invenções, os produtos da indústria, da agricultura, das minas. Nosso propósito, mais realista, se concentraria em partir da situação atual em alguns setores-chaves, poucos e decisivos, como base para reflexão sobre o futuro.

         De fato, o programa da Cátedra se voltaria resolutamente para a frente, para responder, acima de tudo, à questão relativa ao que faltou e falta fazer. A ênfase necessariamente recairá no Brasil, pois é do Bicentenário do país que vamos nos ocupar. Nossa Independência, longe de ter sido fenômeno isolado, constituiu o capítulo brasileiro de um processo global: o fim do Antigo Regime, as revoluções atlânticas, as guerras napoleônicas. Tais causas produziram consequências análogas do México à Argentina, englobando praticamente toda a Ibero-América. A dimensão comparativa com os demais países do nosso entorno geográfico e existencial não poderia, portanto, faltar no programa, o que o insere claramente na característica central da cadeira, o estudo da realidade ibero-americana. 

         Com diferença de poucos anos, os países latino-americanos comemoraram ou ainda devem comemorar seus bicentenários de independência. A Argentina, o mais próximo pela contiguidade e importância, ostenta até dois bicentenários, o da Revolução de 25 de maio de 1810 que derrubou o vice-rei espanhol e instituiu a primeira Junta de Governo e o de 9 de julho de 1816, quando o Congresso de Tucumán proclamou a independência das Províncias do Rio da Prata. Ao escrever sobre o Bicentenário de 2010, o historiador argentino Luís Alberto Romero procurou comparar esse segundo aniversário com o primeiro (1910), no artigo La Argentina en el espejo de los Centenarios, (Nuevo MundoMundos Nuevos, 2010, publicado também em forma mais resumida e com alterações como El espejolejano del primer Centenario, Revista Ñ, Clarín, 26/5/2010). 

         Os dois escritos de Romero podem nos ajudar na necessária reflexão coletiva que deveremos fazer ao longo dos próximos meses sobre o nosso Bicentenário. Não tanto no conteúdo da análise e sim na metodologia, na forma de abordar a questão, tomando de empréstimo, entre outros aspectos, a comparação entre o primeiro e o segundo centenário, o panorama ao fim de cada um dos dois séculos de existência independente. Ele partiu das duas questões incontornáveis, que chama de uma pergunta e um desafio: o que fizemos? O que podemos fazer? Sua resposta é que se deve buscar um objetivo duplo: dar um balançono que se fez ou deixou de fazer e propor um programa para o futuro, para o que falta fazer ou corrigir. 

Tendo de escolher entre um mundo de coisas realizadas em duzentos anos, Romero viu-se obrigado a deixar de lado elementos importantes como a economia e a sociedade. Preferiu concentrar a atenção em três questões: o Estado, a República e a Nação. Esclareço que não proponho reproduzir em relação ao Brasil no programa da cátedra o balanço e o programa que o intelectual portenho levou a efeito sobre a Argentina. Ele escreveu, com efeito, no momento em que se completava, em 25 de maio de 2010, um dos Bicentenários argentinos. 

Em nosso caso, enfrentamos situação bastante diferente. Em primeiro lugar, na cronologia, já que o bicentenário brasileiro em tese se completa apenas em 7 de setembro de 2022, portanto além da data do encerramento do programa. Outra diferença reside na coincidência, no mesmo ano, entre o Bicentenário do Brasil e eleições que decidirão sobre o futuro de governo que representa uma “ruptura de civilização” no curso dos 200 anos da história do país independente. Não seria, assim, possível dispor de balanço definitivo desse período e muito menos de programa de futuro antes de saber o que nos reservam as eleições. Em termos de fato, se não de cronologia, o segundo século brasileiro só termina depois das eleições de 2/30 de outubro de 2022.

Por essas razões, proponho a esta altura somente um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. “Viver”, não “lembrar”, “recordar”, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados, a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo. Outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro. 

Neste caso, temos de viver o processo de dentro, como operários de uma construção em curso. Quanto mais agora que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Dessa campanha deveria fazer parte a discussão de nosso passado e a proposta de razões para crer que o futuro será superior ao presente e melhor do que foi o passado. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino. 

É obrigação de cada um fazer com que a comemoração do Bicentenário supere em muito a do Centenário de 1922 em qualidade e, acima de tudo, em participação universal, sem exclusões, de todos os setores da população que nunca tiveram voz. Quem sabe assim o terceiro século do Brasil será capaz de resgatar a dívida deixada pelos dois primeiros: dar sentido ao mosaico formado pelos incontáveis fragmentos partidos da memória, permitir a cada participante do povo brasileiro uma vida de trabalho digno, igualdade e realização cultural.


Rubens Ricupero

São Paulo, 15 de novembro de 2021


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Embaixador Rubens Ricupero será o novo titular da Cátedra José Bonifácio - Jornal da USP (Nov 2021)

Jornal da USP, 18/11/2021 

https://jornal.usp.br/institucional/embaixador-rubens-ricupero-sera-o-nono-titular-da-catedra-jose-bonifacio/

(Da esq. p/ dir.) O assessor da Reitoria, Gerson Damiani; 
o professor Pedro Dallari; o embaixador Rubens Ricupero 
e o reitor Vahan Agopyan – 
Foto: Marcos Santos/USP Imagens



 





O diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, será o próximo titular da Cátedra José Bonifácio. O convite foi oficializado pelo reitor Vahan Agopyan ontem, dia 17 de novembro, em uma reunião que contou com a presença do coordenador do Centro Ibero-Americano (Ciba), Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, e do assessor da Reitoria, Gerson Damiani.

Ricupero substituirá o atual titular da Cátedra, o economista colombiano José Antonio Ocampo Gaviria, que encerra as atividades em dezembro, com o lançamento do livro Governança internacional e desenvolvimento, que reúne os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores da Cátedra entre os anos de 2020 e 2021. (Os sete volumes da coleção Cátedra José Bonifácio já publicados estão disponíveis gratuitamente, em versão digital, no Portal de Livros Abertos da Edusp.)

“Para 2022, a opção do reitor e do comitê que define as personalidades que ocuparão a Cátedra era escolher uma grande personalidade brasileira, já que este é o ano do Bicentenário da Independência do Brasil e a Cátedra leva o nome do patrono da Independência, José Bonifácio”, explica Dallari.

Inspirando-se nas ideias e projetos de José Bonifácio para o Brasil, a Cátedra deverá refletir sobre os dois séculos do Brasil independente, considerando os acertos e erros para elaborar propostas para o futuro.

“Proponho um roteiro e um método para o exercício de reflexão que deveremos empreender como forma ideal de viver o Bicentenário. ‘Viver’, não ‘lembrar’, ‘recordar’, pois uma coisa é trazer à memória acontecimentos passados e acabados – a assinatura do Tratado de Petrópolis, a batalha do Riachuelo; outra, bem diversa, é evocar um processo vivo em pleno andamento, inacabado, que necessita de nossa ação para que se tente imprimir-lhe sentido de criação do futuro. Quanto mais agora, que teremos pela frente um bicentenário coincidente com campanha eleitoral decisiva. Longe da posição do analista de fora, somos autores, sujeitos de um processo que se confunde com nosso próprio destino”, explica Ricupero.

O futuro catedrático também ressalta que a independência do Brasil não foi um fenômeno isolado, mas fez parte de um processo global que envolveu praticamente toda a Ibero-América; portanto, as reflexões não se restringem ao Bicentenário brasileiro e abrangem toda a região.

Uma vida dedicada ao Brasil

Jurista, diplomata, ministro de Estado e professor universitário, Rubens Ricupero formou-se na Faculdade de Direito da USP, em 1959, e concluiu o curso preparatório do Instituto Rio Branco, do Itamaraty, em 1960, iniciando sua carreira diplomática.

Em mais de quatro décadas de serviço diplomático, foi embaixador do Brasil em Washington e Roma, representante do Brasil junto à ONU em Genebra, chefe da delegação brasileira da Rodada Uruguai do GATT e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).

Rubens Ricupero será o nono titular da Cátedra José Bonifácio – 
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Também ocupou diversos cargos no governo federal. Foi assessor dos presidentes Tancredo Neves e José Sarney, subchefe da Casa Civil e ministro da Fazenda, sendo um dos responsáveis pela implantação do Plano Real, em 1994. Também atuou na implantação do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, definindo como prioridades o desenvolvimento sustentável da Amazônia, a preservação da Mata Atlântica e a criação de parques e reservas ecológicos.

Atualmente é diretor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), presidente do Conselho Editorial da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), presidente honorário da Japan House e do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.

A Cátedra José Bonifácio

Criada em 2013, a Cátedra José Bonifácio é uma iniciativa do Centro Ibero-Americano (Ciba), núcleo ligado à Pró-Reitoria de Pesquisa e ao Instituto de Relações Internacionais (IRI), que, com apoio financeiro do Banco Santander, convida uma personalidade do mundo ibero-americano para ministrar atividades acadêmicas na Universidade durante um ano letivo.

Os catedráticos desenvolvem estudos na temática referente à sua especialidade, liderando com um grupo de pesquisadores da USP de diversas áreas, previamente selecionados. No final do período, para encerrar os trabalhos, os pesquisadores produzem uma coletânea de artigos que são reunidos em um livro publicado pela Edusp. Também são realizadas conferências abertas à comunidade e, até mesmo, específicas para docentes e discentes.

Ricupero é o nono ocupante da cátedra, que já teve como titulares o ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos (2013); o secretário-geral da Secretaria-Geral Ibero-Americana, Enrique Iglesias (2014); a escritora Nélida Piñon (2015); o ex-primeiro-ministro da Espanha, Felipe González Márquez (2016); a embaixadora do México no Brasil, Beatriz Paredes (2017); a ex-presidente da Costa Rica, Laura Chinchilla (2018); o economista Enrique García (2019-2020); e o também economista José Antonio Ocampo (2020-2021).


segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

José Murilo de Carvalho sobre o Bicentenário

 Basicamente correto, com alguns deslizes econômicos: a desigualdade certamente é uma das tragédias brasileiras mais relevantes, consequências do regime oligárquico transformado, no qual vivemos há 509 anos. Mas a desigualdade seria certamente menor se tivéssemos mais educação e menos pobreza e oligarquias.

Alta taxação sobre os rendimentos dos muito ricos pode não significar maior redistribuição de renda e menor desigualdade social se o padrão oligárquico-corporativista do Estado brasileiro continuar como é hoje o nosso caso, no qual o antigo patrimonialismo de extração lusitana se converteu praticamente num patrimonialismo gangsterista.

Paulo Roberto de Almeida 

200 anos de Independência do Brasil: pouco a celebrar, muito a questionar 

JOSÉ MURILO DE CARVALHO 

O Estado de S. Paulo,  2/01/2022


Olhando para a frente, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza      

O Brasil não tem sorte com seus centenários. O primeiro, em 1922, teve de conviver com os restos da devastação causada pela gripe espanhola, chegada ao País em 1918. Calculam-se em cerca de 35 mil as mortes causadas no País, concentradas no Rio de Janeiro e São Paulo. Entre elas não estava, como se costuma afirmar, o presidente eleito, Rodrigues Alves, embora tenha morrido antes de assumir. O ano de 1922 foi ainda marcado pela primeira revolta tenentista e pela decretação do estado de sítio pelo presidente Epitácio Pessoa, destinada a garantir a posse do presidente eleito, Artur Bernardes. Nas celebrações, destacou-se a Exposição Internacional de que participaram 14 países. O segundo centenário, a ocorrer ano que vem, virá na cauda de outra pandemia, a da covid-19, chegada ao País em 2020 e que já matou cerca de 620 mil brasileiros, embora também sem matar presidente. Junto com a pandemia, temos hoje um país às voltas com um tumultuado mandato presidencial que gerou dúvidas sobre a solidez de nossa jovem democracia e, mais ainda, com o imenso drama social do desemprego, da desigualdade, da exclusão, da fome. Até agora, não há indicação de que haverá alguma importante celebração oficial, ficando os registros da efeméride a cargo da mídia, das instituições e do meio acadêmico.

Nesses registros, naturalmente, haverá retomadas de temas estritamente históricos, mas é importante que sejam também usados como oportunidade para uma avaliação dos 200 anos de nossa vida independente. Quero dizer com isto examinar a natureza do percurso feito, verificar onde acertamos, onde erramos e como chegamos à situação atual. Baseados neste exame podemos também perguntar sobre o que nos pode esperar no futuro próximo. Mao Tsé-tung dizia ser ainda cedo para avaliar adequadamente o impacto da Revolução Francesa. Para nós, no entanto, que sofremos de Alzheimer coletivo, dois séculos já são tempo suficiente para fazermos um balanço do que fizemos e perscrutarmos nosso futuro próximo.

As mudanças nesses 200 anos foram enormes. Passamos de um país de cerca de 5 milhões de habitantes, dos quais um milhão de escravos e 800 mil indígenas, para outro de 214 milhões; de um país com cerca de 10% de população urbana em 1822 para outro de 85% hoje; de um país de economia totalmente agrícola em 1822 para outro com larga participação industrial hoje; de uma população formada exclusivamente por indígenas, africanos e lusos para outra muito mais diversificada pela entrada de italianos, espanhóis, alemães, sírios, libaneses, japoneses; de uma população concentrada na região costeira para outra que cobre todo o território nacional. No entanto, todos os analistas que se encarregaram do tema de nossa trajetória, como Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Nestor Duarte, Raimundo Faoro, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, entre outros, reconhecem que há mais continuidades do que rupturas. Somos um país sem revoluções. O que chamamos de revolução, como a de 1930, não passou de ajustes entre grupos dirigentes. O povo só entrou no sistema político a partir da segunda metade do século 20, tendo sido logo contido por uma ditadura.

Quando falo do drama social que desautoriza celebrações me refiro, naturalmente, ao problema da  desigualdade, que é de todos conhecido, mas sobre o qual, a meu ver, mais se fala do que se faz. Lembro alguns dados de amplo conhecimento. Segundo dados do IBGE, o auxílio emergencial criado para atender os mais necessitados, adicionado aos recursos do agora extinto Bolsa Família, abrangeu cerca de cem milhões de pessoas, quase a metade da população. Somos o oitavo país mais desigual do mundo e ocupamos a 84.ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Em 2010, o 1% mais rico da população detinha 44% da riqueza nacional. Ao mesmo tempo, há três décadas, estamos crescendo a taxas medíocres incapazes de gerar os empregos necessários e viabilizar políticas sociais mais substanciais. No entanto, apesar de termos uma das mais altas franquias eleitorais do mundo ocidental (16 anos), temos sido incapazes de aprovar no Congresso medidas redistributivas de renda, como o aumento do imposto sobre heranças, a taxação de dividendos, a alteração nas faixas do Imposto de Renda. Distribuímos, mas não redistribuímos.

Nossa faixa mais alta de Imposto de Renda é de 27,5%. Nos Estados Unidos, ela é de 37%, no Chile, é de 40%, em Portugal, de 48%, no Japão, de 56%. Estamos acumulando uma enorme massa de desempregados, subempregados e não empregáveis sem perspectiva realista de solucionar o problema. Olhando agora para a frente, mesmo que em prazos mais curtos do que os dos chineses, digamos uns 30 anos, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza.

A hipótese pode soar apocalíptica, mas talvez estejamos a brincar, ou a brigar, na praia, alheios ao tsunami que se delineia no horizonte.


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Vale a pena comemorar o Bicentenário da Independência? - Rubens Ricupero

 Vale a pena comemorar o Bicentenário da Independência?

The past is never dead. It’s not even past”

(William Faulkner, Requiem for a Nun). 


Notas sobre o programa da Cátedra José Bonifácio da USP

Rubens Ricupero


Iª parte – A questão das comemorações em nossos dias

Quem se interessa pelo Bicentenário?

 

Falta pouco, menos de um ano, para o Bicentenário da Independência. Em condições normais, já se deveria conhecer em linhas gerais o programa das comemorações. No primeiro centenário, por exemplo, durou anos a preparação da Exposição Universal que seria inaugurada em 7 de setembro de 1922. Já agora sente-se uma apatia generalizada, uma completa falta de interesse, uma atitude de indiferença da parte da população. Em âmbito oficial, o panorama é igualmente moroso: algumas comissões foram criadas aqui e ali, no Senado, na Câmara, umas poucas publicações foram editadas no Congresso, alguma coisa seguramente haverá de ser feita pela Biblioteca Nacional, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pela Academia Brasileira de Letras. Nada, no entanto, comparável com o estado de espírito de cem anos atrás, ao menos até agora.

Poderia ser diferente no momento em que ainda não conseguimos virar a página da catástrofe da Covid-19? Quando continuamos a chorar as mais de 600.000 mortes causadas em parte pelo pior governo brasileiro em 200 anos? Pode-se acaso esperar ânimo celebratório de um povo profundamente marcado pela desesperança, pelo sentimento de fracasso nacional, de crise interminável na economia, na política, na autoestima coletiva? A data oficial do Bicentenário cai algumas semanas antes das eleições de 2 de outubro de 2022. Terá de concorrer com a reta final da campanha. Será que alguém vai se interessar por uma efeméride histórica em vez de concentrar a atenção numa eleição decisiva

 

Há sentido em comemorar?

Alguns desses motivos de apatia se fazem sentir não só no Brasil, mas em toda a parte: a pandemia, a consciência da angústia com o aquecimento global, o temor do aniquilamento da vida. Caberia, assim, indagar, em termos amplos, se existe ainda, em nossa época conturbada e sofrida,algum sentido em manter vivo o gosto das comemorações que se herdou sobretudo do século XIX. Curiosamente, a resposta tem sido afirmativa: assiste-se no mundo afora a uma tendência comemorativa em aumento. NEra das Comemorações, capítulo final de sua obra monumental Os Lugares da Memória, Pierre Nora comentava em 1992 que a França havia ingressado numa “fase de alta frequência comemorativa”. Os projetos de comemorações de todos os tipos se atropelavam uns aos outros. Tentando imprimir alguma ordem, o gênio burocrático francês chegou a criar uma repartição pública, a “Delegação das Celebrações Nacionais” (Délégation aux Célébrations Nationales)

Longe de restrito à França, o fenômeno apresenta dimensões mundiais, de modoque essa entrada na era das comemoraçõesvale, segundo o historiador, para “todas as sociedades contemporâneas que se vivem como históricas. A intensificação da paixão comemorativa se manifesta nos processos complexos de preparação das celebrações, por meio de comissões que trabalham durante anos, dispondo de vultosos orçamentos e envolvendo historiadores, promotores culturais, especialistas em turismo e marketing.  

A era das exposições universais

Um exemplo de organização desse tipofoi o do Bicentenário da Independência dos Estados Unidos da América. O planejamento começou dez anos antes com a criação pelo Congresso da American Revolution Bicentennial Commission (1966), substituída pela American Revolution Bicentennial Administration (1973), incumbida de coordenar eventos em todo o país. Ocorrendo um ano depois dofiasco da retirada norte-americana da guerra do Vietnã, o governo de Gerald Ford soube instrumentalizar os festejos para reanimar o abatido espírito da nação com uma visão nostálgica e apologética do passado

Um século antes, os norte-americanos haviam organizado em Filadélfia a International Exhibition of Arts, Manufactures, and Products of the Soil and Minecujo nome oficial revelava a intenção de manifestar ao mundo que, dez anos depois da Guerra Civil, os Estados Unidosse sentiam mais pujantes do que nunca. A inauguração, em 10 de maio de 1876, teve a presença do Presidente Ulysses Grant e do Imperador Dom Pedro II, que acionaram, no Pavilhão das Máquinas, o gerador a vapor que forneceria energia à mostra. Nessa ocasião, ocorreu também a famosa demonstração do telefone feita a D. Pedro por Alexander Graham Bell. Visitada por quase 10 milhões de pessoas, a exposiçãocontou com 37 países participantes

Os eventos e as exposições comemorativas dos dois centenários norte-americanos correspondem à modalidade inaugurada em 1851 no Palácio de Cristal, Hyde Park, Londres, com a Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de Todas as Nações. Ideia do Príncipe Albert, marido da rainha Vitória, destinava-se, conforme sugeria o nome, a celebrar o ideal de modernidade do século XIX: o progresso contínuo da humanidade expresso nas conquistas da ciência, da técnica e da indústria. Além das citadas, destacaram-se pelo impacto na opinião pública mundial a grande exposição de Chicago (1893) e a Exposição Universal de Paris (1889). Esta se caracterizou pela construção da Torre Eiffel e marcou os 100 anos da Revolução Francesa, tendo sido vista por mais de 32 milhões de visitantes. 

Conseguiu superá-la a rainha de todas as mostras, a Exposição Universal de Paris de 1900, soberbo apogeu da Belle Époque, com a pretensão de glorificar os feitos do século XIX que terminava. Atraiu mais de 50 milhões de visitantes, introduziu invenções espantosas para a época como o tapis roulant (a esteira móvel), os filmes falados experimentais, o primeiro gravador magnéticoEnriqueceu Paris de edificações permanentes como o Grand Palais, o Petit Palais, a Gare d’Orsay (hoje Museu do Impressionismo), a Ponte Alexandre III. 

A visão tradicional das comemorações

O século XX, anunciado com tanta fanfarra, estava destinado a desmentir cruelmente o ideário do progresso constante e irreversível que animou as grandes exposições. Duas guerras mundiais interromperam as mostras, que voltaram após pausas compulsórias de anos, sem jamais lograr redespertar no público antigo entusiasmo. Projetaram ainda alguns lampejos declinantes, mas foram aos poucos saindo de moda. Esses tipos de celebração se enquadravam no conceito tradicional de comemoração: “cerimônia oficial organizada para conservar a consciência nacional de um acontecimento de história coletiva e servir de exemplo e modelo”.

Além do caráter burocrático-oficial, visavam, portanto, a uma finalidade edificante e moralizadora, expressavam uma pedagogia cívica de exaltação e reforço de valores coletivos. No ensaioCommémorer en Europe (revista Infléxions, 2014/1, nº 25), Étienne François observava que se destinavam a fortalecer o “desejo de viver juntos” que Ernest Renan descrevia como essência da nação no seu célebre texto Qu’est-ce qu’une nation? (“O que é uma nação?”), de 1882. Dizia Renan:

A nação, como o indivíduo, é o coroamento de um longo passado de esforços, sacrifícios e dedicações. Um passado heroico, grandes homens, a glória (a verdadeira, no meu entender), eis o capital social sobre o qual se assenta uma ideia nacional. Possuir glórias comuns no presente; haver feito grandes coisas em conjuntodesejar realizar novas ainda, eis as condições essenciais para ser um povo”.

A abordagem dominante refletia atitude basicamente apologética do passado e da história, analisada pelo então presidente da veneranda American Historical Association, Tyler Stovall, no artigo Happy Anniversary? Historians and the commemoration of the past (revista Perspectives on History, abril de 2017).Dizia Stovall que o conceito de aniversário,perfeitamente transmitido em uma só palavra em francês (e em português), exigia duas em inglês, a fim de diferenciar obirthday de um indivíduo do anniversary deum evento histórico. O conteúdo positivo seria de rigor para uma pessoa, que festeja o nascimento, não a morte, o casamento, nãoo divórcio. 

Já no caso de um evento histórico maior, não importa se feliz ou infausto, a comemoração pode servir para comparar como diferentes gerações relembraram o mesmo acontecimento ao longo de cem ou duzentos anosNos centenários, em particular, a passagem do tempo raramente deixa intacta a atitude de uma sociedade em relação a seu passadoembora o grau de mudança possa variar da relativa estabilidade reviravoltas radicais na maneira de encarar a história.

A visão crítica das comemorações

O revisionismo crítico tem conduzido a transformações espetaculares na forma pela qual uma sociedade aprecia certos acontecimentos marcantes do seu passado. Nem sempre imparcial, objetivo, cientificamente isento, o revisionismo reflete com frequência conflitos do presente entre classes, grupos, setores políticos, que instrumentalizam a história para suas lutas correntes. Instala-se assim nas comemorações uma dialética que tensiona a memória entre a intensificação da paixão comemorativa, de um lado, e a agressiva contestação, do outro. 

É a visão crítica da história que está na raiz da superação da atitude tradicional de exaltação aos homens e feitos do passado ilustrada por Renan para passar a um “contexto pós-heroico”. A ênfase anterior nos heróis e nas glórias se deslocou para as vítimas de injustiças, perseguições e opressão, os náufragos e vencidos da história. Uma expressão recentíssima da tendência consiste na derrubada e retirada de estátuas e monumentos a heróis ou pseudo-heróis. Ela decorre principalmente, como se viu na sequência do assassinato de George Floyd, da reação contra o racismo estrutural, o que conduz à reavaliação deepisódios e personagens ligados à escravatura, ao tráfico de escravos, à Guerra Civil norte-americana. 

Como ficam no atual contexto crítico de reavaliação do passado os grandes aniversários nacionais, os centenários de independência, das grandes revoluções, das guerras extraordinárias? Os aniversários desse tipo participam de uma das categorias dos “lugares da memória” de Pierre Nora. Confundem-se com frequência com os “momentos fundadores”, turning points, pontos de inflexão nos quais a consciência de uma ruptura com o passado costuma ser acompanhada por uma fragmentação da memória.

A crítica dos grandes aniversários nacionais

Alguns poucos aniversários nacionais como o Independence Day dos norte-americanos ou o Dia da Bastilha dos franceses há muito tempo adquiriram caráter arraigadamente popular. Ao contrário das efemérides burocráticas que para o cidadão comum significam apenasum feriado a mais, o Fourth of July e o 14 Juillet viraram festas do povo, com piqueniques, bailes populares, emoções que inspiram canções e filmes. Nem eles, contudo, escaparaà tendência de reexaminar com olhos críticos o corpo tradicional de ensino relativo aos primórdios da história nacional e, em consequência, ao teor das comemorações desses começos.

Na superaquecida atmosfera da guerra cultural dos Estados Unidos, duas abordagens se tornaram particularmente controvertidas, transbordando do debate intelectual para a arena política, a Critical Race Theory e o 1619 ProjectVinculadas aos problemas raciais da sociedade norte-americana, tornaram-se pontos de discórdia na campanha presidencial de 2020, gerandoprojetos de lei com vistas a proibir sua propagação nas escolas. Trump criou 1776 Commission para elaborar “um currículo patriótico” de estudo da história, logo suprimida por Biden no dia inaugural de seu governo.

1619 Project, lançado e desenvolvido na redação do New York Times, tem ligação mais direta com o tema da memória, pois visa a reformular a história a fim de colocar a questão da escravidão no centro da narrativa histórica dos Estados Unidos. Uma das iniciativas da qual lhe deriva onome é propor a data da chegada dos primeiros africanos escravizados (1619) como alternativa à versão de que a história norte-americana começa com o desembarque dos Puritanos em 1620 ou a Declaração da Independência de 1776. 

Enquanto nos Estados Unidos a contestação provém do que se poderia chamar da esquerda intelectual, na França o revisionismo nasceu de atitude mais conservadora de crítica em relação à interpretação jacobina ou marxista da Revolução Francesa, hegemônica durante muito tempo na academia e no país. A atitude revisionista ou liberal encontrou sua expressão principal na obra de François Furet e Denis Richet, alimentando polêmicas acirradas no Bicentenário da Revolução em 1989 e depoisAs controvérsias historiográficas se restringiram ao domínio do debate intelectual e não foram até agora capazes de arranhar o forte sentimento celebratório da população, consolidado ao longo de mais de dois séculos de socialização na escola pública, leiga e republicana

Reviravoltas políticas apagam do calendário aniversários que durante décadas haviam substituído as celebrações do Natal e da Páscoa quase como a liturgia de uma nova religião. A Revolução Russa de Outubro de 1917, por exemplo, teve sorte bem mais fugaz que a francesa. Após setenta e poucos anos de festejos triunfais, com gigantescas paradas militares emanifestações de massaseu centenário passou sob envergonhado silêncio no país em que milhões de pessoas haviam perdido a vida por ela ou por causa dela

Até guerras mundiais suscitam reações conflitantes dependendo da perspectiva. Os russos preservaram o direito de se gloriar dos feitos heroicos da Segunda Guerra Mundial, para eles sua “Grande Guerra Patriótica”. Todos os anos, no aniversário do fim da luta, desfilam com retratos dos pais e avós integrantes dos “Regimentos Imortais” que pagaram a vitória com o sangue de 26 milhões de mortos. A mesma guerra, do lado do agressor, condena os alemães a renunciar a qualquer manifestação de orgulho nacional. 

O Holocausto, exemplo por excelência de “ruptura da civilização”, e o nazismo, fazem figura de uma espécie de “mito fundador negativo” para a Alemanha. Projetam sobre a sociedade uma sombra terrível que inibe qualquer possibilidade celebratória. Não podendo honrar os compatriotas mortos por uma causa nefanda, os alemães homenagearam os judeus europeus que assassinaram erguendo um memorial ao lado da Porta de Brandenburg. Converteram em dia de recolhimento nacional a data de 27 de janeiro, aniversário da libertação do campo de Auschwitz-Birkenau pelo Exército Vermelho. 

A concepção alternativa dacomemoração nos obriga a confrontar a história como tragédia, a não omitir aniversários abomináveis, os abismos de iniquidade do nazismo, fascismo, estalinismoda colonização, escravidão, dos genocídios, massacres, das ditaduras erepressões. Essa fusão entre paixão comemorativa e visão crítica veio para ficar como consequência inevitável doesfacelamento da ilusória “comunidade de memória” unificadora da identidade da nação ou do grupo. A realidade é a existência da memória fragmentada entre vencedores e vencidos, dominadores e oprimidos, colonizadores e vassalos, Casa Grande e Senzala

 

 

 

IIª parte - O Bicentenário no contexto ibero-americano

O processo da formação do Brasil autônomo não pode ser abstraído do contexto histórico mais amplo em que ocorreu, o do fim do Antigo Regime na Europa, o das revoluções atlânticas e suas implicações no desencadeamento dos processos de independência nas Américas. A independência do nosso país não ocorreu num vácuo. Foi o capítulo brasileiro, único, específico, de um fenômeno histórico global. Embora com características que lhe são particulares e inconfundíveisapresenta inúmeros pontos comuns ou análogos com o de outras independências americanas, em especial com as experiências mais próximas, a de alguns vizinhos sul-americanos. 

O desafio mais geral de atualizar e corrigir a evocação dos grandes lugares da memória se apresenta de maneira bastante parecida em todas as Américas. Um exemplo notável reside no que antes se denominava de descoberta da América e ora recebe nomes neutros - chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo – ou indicadores do conteúdo do novo conceito. Consagrado há décadas como dia feriado, festejado por desfiles e fogos de artifício, a data de 12 de outubro havia sido elevada na Espanha e países hispânicos ao pináculo de Día de la Raza. Hoje, a data, quando ainda celebrada, coleciona denominações diversas e autoexplicativas:

Día del Encuentro de Dos Mundos (Chile); Día de la Hispanidad, mais recentemente Fiesta Nacional de España (Espanha); Columbus Day (EUA); Día de la Resistencia Indígena, Negra y Popular (Nicarágua); Día de la Resistencia Indígena (Venezuela); Día del Respeto a la Diversidad Cultural (Argentina); Día de la Descolonización (Bolívia); Día de la Identidad y Diversidad Cultural ou Día del Encuentro entre Dos Culturas (República Dominicana); Día de la Interculturalidad y de la Plurinacionalidad (Equador); Día de la Nación Pluricultural (México); Día de los Pueblos Originarios y del Diálogo Intercultural (Peru, não é feriado), além de Discovery Day; Pan-American Day; Día de las Américas. 

O Brasil, um tanto ambíguo e sempre original em coisas das Américas, resolveu o problema intitulando o feriado de 12 de outubro de Dia de Nª Sª Aparecida, por decreto do governo João Figueiredo, apesar da laicidade do Estado. 

A comparação com a Argentina

Em relação aos centenários da independência, a Argentina nos oferece um espelho próximo, mas, ao mesmo tempo desses que distorcem a imagem, uma vez que sua experiência difere da nossa em questões essenciais, na centralidade da escravidão, só para mencionar uma delas. Justamente a metáfora do espelho é empregada em outro sentido, o do cotejo do segundo com o primeiro centenário da independência argentina, pelo historiador Luís Alberto Romero no artigo La Argentina en el espejo de los Centenarios, (Nuevo MundoMundos Nuevos, 2010, publicado também em forma mais resumida e com alterações como El espejo lejano del primer CentenarioRevista Ñ, Clarín26/5/2010). 

Sem nenhuma intenção de insinuar comparação com o Brasil de hoje, simplesmente a título de curiosidade inquietante, permito-me transcrever o parágrafo inicial do primeiro ensaio:

En su Oda a los ganados y a las mieses, escrita en 1910, Leopoldo Lugones celebró la prosperidad argentina y la asoció con el gran crecimiento agropecuario. Su visión optimista sobre el pasado y el futuro argentino fue compartida por otros intelectuales y literatos, como Rubén Darío, y por notorios visitantes extranjeros, invitados a los magníficos festejos del Centenario de la Revolución de Mayo. Les habría sorprendido saber que, cien años después, en la Argentina no se celebraría la prosperidad sino que se lamentaría la miseria y la decadencia. Que en lugar de certezas, solo habría dudas. Más aún, que las esperanzas de recuperar el impulso y el crecimiento seguirían estando puestas, como en 1910, en los frutos de la producción agropecuaria”. 

O historiador argentino começa seusegundo artigo com uma afirmação que se impõe pelo evidente bom senso: “Como todos los grandes aniversarios, los Centenarios provocan en los ciudadanos una pregunta y un desafío: qué hicimos y qué podemos hacer?” 

Sua resposta, apropriada também ao Bicentenário brasileiro, é que se deve buscar um objetivo duplo: dar um balançono que se fez ou deixou de fazer e propor um programa para o futuro, para o que falta fazer ou corrigirNão se trata, é claro, de um balanço enciclopédico, de um museu de tudo, como ambicionavam as grandes exposições do passado. Ao comparar o panorama do fim do primeiro século de existência independente da Argentina com o que deparava no término do segundo século, em 2010, Romero escolheu concentrar sua análise em apenas três questões, mas de caráter geral e determinante: o Estado, a República e a Nação. 

Convém realçar uma diferença cronológica importante com a tarefa que nos espera. O intelectual portenho escreveu no momento em que se completava, em 25 de maio de 2010, o Bicentenário argentino. Ou melhor, um dos bicentenários, uma vez que a Argentina cultiva dois momentos fundadores, esse, da Revolução de 25 de maio de 1810, que destituiu o vice-rei espanhol e estabeleceu a primeira Junta de Governo e o de 9 de julho de 1816, quando o Congresso de Tucumán declarou a independência das Províncias Unidas do Rio da Prata. Quer dizer que ele teve condições de dar balanço em dois séculos de história que já se encontravam completos e encerrados. Não é essa a nossa situação em relação ao Bicentenário brasileiro, ainda em curso.

IIIª parte – O caso do Bicentenário do Brasil

Como comemorar o Bicentenário

Situa-se, portanto, nesse termo da evolução das comemorações de aniversários históricos o Bicentenário da Independência do Brasil em 2022. Não é meu propósito sugerir já a esta altura qual deveria ser o conteúdo ou o programa das celebrações. Tentarei somente aplicar à questão algumas das lições expostas na longa divagação acima a respeito do passado das celebrações. A primeira das lições seria a do ânimo que conviria presidisse ao aniversário. Nem alegria e ufanismo, nem frustração e amargura. Diante de grandes acontecimentos da históriaa reflexão, a sobriedade na avaliação das intenções e consequências é preferível à atitude tradicional de exaltação ou regozijo. 

Por mais cuidado que se tome, é quase tarefa impossível recordar batalhas e guerras sem reabrir feridas não cicatrizadas. O barão do Rio Branco, apesar de haver escrito um grosso volume dedicado às efemérides brasileiras, sabiamente compreendia que “havia vitórias que não se devem comemorar”. Nesse particular, o Brasil até que não se saiu mal. O desafio mais perigoso que enfrentou foi durante o centenário da funesta Guerra da Tríplice Aliança. No longo período entre o fim de 1964 e 1970, os jornais paraguaios dedicavam colunas quase diárias aos combates que tinham ocorrido naquela mesma data, cem anos antes. Do nosso lado, esperou-se até o aniversário do fim da guerra. Em junho de 1970, o ministro do Exército assinou Ordem do Dia sugestivamente intitulada Centenário da Paz com o Paraguai. 

Nela se afirmava: “Mais do que o conflito de um lustro e seus cruéis ensinamentos, é hora de evocar a paz – uma paz majestosa de cem anos – engrandecida e emoldurada pelo patriotismo de cada um daqueles que pugnaram pela honra de sua bandeira. O cuidado com a suscetibilidade paraguaia chegou ao ponto de se ter escolhido para a Ordem do Dia não o aniversário do combate em que Solano López foi morto por tropas brasileiras (1º de março de 1870), mas a data em que se assinou em Assunção o Acordo Preliminar de Paz (20 de junho). Mais surpreendente é que esse esmero na diplomacia da boa vizinhança tenha sido obra do triunfalista governo Medici.  

O mais adequado é partir da etimologia da palavra comemorar, da raiz latina commemorare, lembrar, recordar, ou melhor, com memorar, isto é, lembrar juntos. Deixar para depois, para a conclusão do trabalho de memória, a decisão, se é que cabe mesmo aí, sobre o juízo a retirar da reflexão relativa ao sentido do aniversário

Uma segunda lição deriva da natureza do que se tenciona lembrar, não um acontecimento isolado, o Grito da Independência, o momento da separação de Portugal, do reconhecimento pelo sistema internacional. Em vez disso, o que nos interessa é o prolongado processo que veio depois, com dois séculos de idas e vindas, de avanços e recuos, na formação e crescimento da nação independente, na afirmação gradual, progressiva, da autonomia. Em outras palavras, o processo jamais terminado de construção do Brasil, obra de edificação contínua, um work in progress, um trabalho em curso, em andamento, em evolução permanente. 

Esses dois aspectos, o de processo e o de movimento, conduzem naturalmente a uma terceira lição, a de que temos de abordar o Bicentenário com visão de totalidade, a floresta, não as árvores, o todo, o sistema, não os fragmentos. É neste ponto que o desejo de comemorar tem de estar unido intimamente à visão crítica, a evocação do bem com a do mal, das luzes com as trevas, da justiça com a iniquidade. A comemoração necessita dar voz aos que concorreram com trabalho, sofrimento, perda da liberdade, da própria vida, para a formação de uma sociedade ainda demasiado imperfeita no desequilíbrio, na desigualdade, na injustiça. 

É preciso evitar repetir os erros da celebração dos 500 anos do Brasil no ano 2000, o esquecimento dos povos originários, dos africanos escravizados e seus descendentes, as opressões de gênero, de costumes, no seio das famílias, o escondimento da estrutura de dominação e exploração, os silêncios deliberados, os olvidos seletivos e significativos. Não se perder em desvios secundários, não se deter demais em instantes isolados, favoráveis ou nefastos, não privilegiar um momento estático em detrimento da dinâmica do processo, a fotografia em vez do filme. 

O espelho do primeiro centenário em 1922

Já se observou acima que, em nossa situação, como o Bicentenário termina somente no dia 7 de setembro de 2022o desafio diverge bastante do enfrentado pelos historiadores argentinos. Estes puderam dar balanço ao segundo século depois de concluído. Teremos, ao contrário, que analisar um processo em andamento,que poderá ser influenciado pela nossa ação ou omissão, cujo sentido final dependerá dos resultados mais ou menos alentadores das eleições de outubro de 2022.

Existem também outroaspectos divergentes decorrentes da notáveldiferença na percepção da experiência histórica entre os dois países. Chama a atenção, por exemplo, o tom nostálgico que perpassa não só pelos ensaios de Luis Alberto Romero, mas praticamente por todos os livros e artigos escritos por argentinos em relação ao primeiro Centenário. Quer se escolha a data de 1910 ou a de 1916, não resta dúvida para nossos vizinhos que a Argentina estava incomparavelmente melhor na data do primeiro do que na do segundo centenário. 

Lembre-se que, na citação transcrita lá atrás, Romero dizia que os atores do primeiro Centenário argentino se surpreenderiam se soubessem que, cem anos mais tarde, não mais se celebraria a prosperidade, mas se lamentaria a miséria e a decadência, que em vez de certezas, haveria somente dúvidas. Não se trata apenas de percepções e sim de números. Em 1910, a Argentina era a décima maior economia do mundo, o sétimo exportador e detinha 7 por cento do comércio mundial. O panorama em 2010 havia piorado tanto que Rosendo Fraga se lastimava: “Este é um país que no segundo século de independência destruiu tudo o que fez no primeiro”. 

Não cabe discutir se haveria exagero nesse julgamento, se a visão apologética de 1910 reflete o ponto de vista dos privilegiados, deixando de fora a repressão ao movimento operário argentino, a Semana Roja de greves e manifestações um pouco antes, a desigualdade de participação na prosperidade. O que se impõe como evidência é que a nenhum brasileiro ocorreria lançar o mesmo olhar nostálgico e apologético ao nosso Centenário. A ideia de apogeu que dá nome até a livros sobre essa era argentina (ver a obra de Juan Archibaldo Lanús, Aquel Apogeo: Política Internacional Argentina 1910-1939soaestranha, implausível, aplicada ao Brasil de 1922, tanto da perspectiva do entorno internacional quanto da situação do país. 

Brasil se aproximou do primeiro centenário no momento em que o mundo acabara de sair da Grande Guerra,destroçado nas estruturas e nas almas. Em 1919, negociava-se o Tratado de Versalhes, Paul Valéry escrevia “nós civilizações sabemos agora que somos mortais [...] sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida”. O ano do nosso centenário coincidiu com a marcha de Mussolini sobre Roma, a primeira conquista de um país pelo fascismo. A década de 1920 se encerraria com o colapso da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. A seguinte assistiria ao sinistro triunfo do nazismo, ao estalinismo, ao estalar da Segunda Guerra Mundial com o cortejo de horrores que se seguiu: o Holocausto, os campos de extermínio, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. 

Ao completar cem anos de vida independente, a sociedade brasileira davabalanço ao passado, espantando-se com o déficit. No importante e praticamente único grande estudo dedicado ao Centenário, A nação faz cem anos, a Professora Marly Silva da Motta mencionava o severo juízo de Capistrano de Abreu, ao concluir em 1907 seus Capítulos de história colonial. O legado de três séculos de colônia teria sido a pobreza intelectual, moral e material, a inexistência de vida social, a incapacidade organizativa. A monarquia escravocrata não havia sido capaz de superar tal herança de modo cabal em 67 anos de crescimento modorrento.

Antes e depois do centenário, o debate intelectual e jornalístico produziria, em 1924, o livro À margem da história da República, coletânea de ensaios organizadapor Vicente Licínio Cardoso. Nascido com a Primeira República em 1889, Cardoso manifestava a decepção dos contemporâneos com os 35 anos do regime em palavras que exprimem, em relação ao acolhimento do primeiro centenário, o contraste entre a atitude brasileira com o triunfalismo argentino: “A grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou. Chegamos quase à maturidade na certeza de que já tínhamos vencido certas etapas [...]resolv(ido) de vez certos problemas essenciais. E a desilusão, a tragédia [...] foi sentir quanto de falso havia nessas suposições”  

Em lugar de se deixar abater por essa impressão, afirmava que o desafio de sua geração consistia em empreender “nova Obra de construção, ou seja, fixar [...] o Pensamento e a Consciência da Nacionalidade Brasileira”, tudo com maiúsculas. Nas palavras de Marly Motta, “ser moderna, eis a aspiração da sociedade brasileira às vésperas do Centenário da Independência”, embora a autora advirtisseque os diferentes atores tinham concepçõesdiferentes da modernidade.

De fato, o que marcaria o ano do centenário no Brasil não seriam tanto as iniciativas oficiais de autocelebração e sim as formas extremamente diversas pelas quais setores da sociedade civil buscariam essa ansiada modernização do país. É significativo que as manifestações se inaugurassem pelo empenho na renovação das bases mesmas da cultura, logo em fevereiro, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo. O que segue são também esforços de reforma cultural e/ou política como o surgimento, por obra de Jackson de Figueiredo, do Centro Dom Vital, núcleo de atualização do pensamento católico, ou a fundação em Niterói do Partido Comunista do Brasil. Em 5 de julho, ocorre o levante e sacrifício dos 18 do Forte de Copacabana, primeira manifestação pública do Tenentismo que, oito anos depois, poria abaixo a República Velha.

A principal iniciativa de cunho oficial foi a Exposição Internacional do Centenário, no Rio de Janeiro, com participação de 13 países estrangeiros. Inaugurada por Epitácio Pessoa em 7 de setembro de 1922, ocupou a imensa esplanada aberta pelo desmonte do morro do Castelo. A fim de tornar possível utilizar o terreno para exaltar os progressos da civilização no Brasil, o governo impiedosamente demoliu os barracos do morro e expulsou seus humildes ocupantes, provocando a denúncia indignada de Lima Barreto. 

 

O carcomido sistema político da República Velha não soube captar os sinais de que a sociedade ansiava por mudanças profundas: a greve geral de 1917, a pulsação dos movimentos artísticos, a inconformidade das baixas patentes do Exército com as fraudes eleitorais. Mostrou-se assim incapaz de deter o processo de autodestruição que culminaria na Revolução de 30. Toda essa história de projetos e frustrações, de intensos debates intelectuais e políticos em torno da celebração do Centenário, revive de forma fascinante na análise perceptiva que a Professora Marly Silva da Motta devotou ao momento em que a nação fez cem anos.  

Sai-se da leitura com o sentimento de que as pessoas que pensaram e viveram o Brasil naquele aniversário nos deixaram o exemplo de como nos caberia enfrentar agora o desafio análogo do segundo centenário. Da mesma maneira que elas em 1922, não temos em 2022 motivo para adotar atitude de complacência, de satisfação autocongratulatória com o estado do país. O futuro não será certamente um longo rio tranquilo, assim como não foi o século que se iniciou para o Brasil em 1922. 

As personalidades que encarnaram o espírito de renovação do Centenário, gente como Mário de Andrade, por exemplo, para simbolizar o melhor da época, souberam extrair do conhecimento sem ilusões da realidade imperfeita da nação o estímulo para edificar uma sociedade melhor da que tinham herdadoÉ esse o dever que nos espera: criar para a juventude razões plausíveis para acreditar que o terceiro centenário encontrará o Brasil melhor que o encontrou em 2022 ou em 1922. 

                                                    Rubens Ricupero

São Paulo, em 19 de novembro de 2021