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sábado, 8 de março de 2025

O Itamaraty na ditadura militar - Ismara Izepe de Souza, Bruno Fabricio Alcebino da Silva (Brasil De Fato)

 O Itamaraty na ditadura militar

 

Por ISMARA IZEPE DE SOUZA & BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*


Brasil De Fato, 8/03/2025

https://www.brasildefato.com.br/colunista/observatorio-de-politica-externa/2025/03/07/entre-a-resistencia-e-a-conivencia-o-itamaraty-e-a-ditadura-militar/


A ideia de que o Itamaraty é uma instituição pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável diante das evidências

 

A ascensão da extrema direita no Brasil, nos últimos anos, veio acompanhada de recorrentes tentativas de alterar a narrativa sobre a ditadura militar (1964-1985). Se no período imediato à redemocratização do país, na década de 1980, se evidenciou junto à sociedade brasileira a herança negativa deixada pelos militares, a partir do governo de Jair Bolsonaro, junto às constantes ameaças à democracia, se acentuaram as investidas para promover uma imagem positiva daquele período.

As polêmicas que envolvem o inegável sucesso de Ainda estou aqui se constituem em um exemplo eloquente disso. O filme retrata, sob a perspectiva de Eunice Paiva, o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo regime autoritário. No dia 2 de março, o longa-metragem fez história ao ganhar o Oscar de melhor filme internacional, fato inédito para o Brasil. Entre efusivas comemorações do campo progressista e da direita moderada e a produção de fake news pela extrema direita, o fato é que a memória sobre esse período continua sendo alvo de disputas.

A política externa parece ser exceção quando se trata das distintas narrativas sobre o regime autoritário, pois existe uma percepção quase generalizada sobre os seus acertos neste período. Nos 21 anos de governos militares, o perfil da inserção internacional brasileira se alterou bastante, não sendo possível falar de uma “política externa do regime militar”. Afinal, o alinhamento automático aos EUA promovido pelo governo de Castelo Branco (1964-1967) foi paulatinamente sendo substituído por uma política externa de teor desenvolvimentista, culminando no pragmatismo responsável do governo de Ernesto Geisel (1974-1979), que guarda, em seu caráter autônomo e altivo, similaridades com a política externa dos primeiros dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).

O Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty, tem características específicas junto à administração pública brasileira. O espírito de corpo que marca a sociabilidade entre os diplomatas fez com que a instituição preservasse uma memória positiva acerca de sua atuação durante os governos militares, veiculando a ideia de que o Ministério das Relações Exteriores esteve alheio aos aspectos mais abjetos da ditadura. A ideia veiculada e corroborada por estudiosos, diplomatas e imprensa foi a de que o Itamaraty continuou a pautar suas ações pelos interesses do desenvolvimento nacional, sem se deixar influenciar pelo que ocorria na política doméstica.

No entanto, na última década, pesquisas realizadas no âmbito acadêmico e àquelas que resultaram no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade demonstraram que o suposto distanciamento do Itamaraty da política doméstica e particularmente do aparato repressivo não existiu. Se a postura oficial foi a de alheamento ao que se passava no âmbito interno, nos bastidores o Itamaraty participou da engrenagem repressiva, auxiliando na vigilância e repressão de brasileiros exilados.

Mas também existiu o outro lado da moeda, ou seja, diplomatas indesejados e perseguidos pelo regime ditatorial, seja por não apresentarem uma postura condizente com o perfil ideal do diplomata, ou por ameaçarem os esquemas de corrupção envolvendo militares e o alto escalão do governo, como denuncia o caso de José Pinheiro Jobim.

Entre a conivência e o apoio

Inspirada nas experiências do Chile e Argentina, a Comissão Nacional da Verdade foi instituída no Brasil durante o governo da presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) com o objetivo de investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar (1964-1985), sendo a própria ex-presidenta uma sobrevivente que foi presa e torturada durante o regime. Entre suas contribuições mais relevantes, a Comissão Nacional da Verdade dedicou um capítulo específico aos crimes cometidos no exterior com o apoio do Ministério das Relações Exteriores, demonstrando o envolvimento direto do Itamaraty na repressão transnacional e na perseguição de opositores políticos fora do Brasil.

relatório final, divulgado em 2014, fornece provas documentais e testemunhais fundamentais para o reconhecimento institucional dessas violações, reforçando a necessidade de preservação da memória histórica e responsabilização dos agentes envolvidos.

O Centro de Informações do Exterior (CIEX), criado em 1966, foi um dos principais mecanismos de espionagem e repressão utilizados pela ditadura militar brasileira contra opositores do regime que haviam deixado o país devido à perseguição política. Vinculado ao Ministério das Relações Exteriores e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o CIEX foi um centro clandestino que desempenhou papel crucial no monitoramento de exilados políticos brasileiros e na cooperação repressiva com outros regimes autoritários do Cone Sul, especialmente no âmbito da Operação Condor.

Pesquisadores brasileiros da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Instituto Norueguês de Relações Internacionais, realizaram pesquisas que resultaram em um banco de dados com cerca de 8 mil documentos que demonstram que o Itamaraty monitorou mais de 17 mil brasileiros no exterior. Apesar da diplomacia brasileira tradicionalmente se apresentar como neutra diante das políticas de segurança interna, esses documentos revelam que o Itamaraty estava diretamente envolvido na repressão, fornecendo informações detalhadas sobre atividades de exilados, dificultando a emissão de passaportes e concedendo dados estratégicos a outros serviços de inteligência (PENNA FILHO, 2009, p. 44-45).

O CIEX não operava de forma isolada. Ele era parte da Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores (CI/MRE), interligado a outros órgãos repressivos do Estado brasileiro, como o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 179). Esses centros trocavam dados sobre a localização, atividades e contatos de exilados brasileiros na Europa e na América Latina.

A existência do órgão de espionagem evidencia que o regime militar possuía um aparato repressivo sistemático e estruturado, com o Itamaraty como peça-chave na perseguição política dentro e fora do país. Segundo Balbino (2023, p. 11), o Ministério das Relações Exteriores não apenas colaborou com o regime militar, mas integrou-se ao aparato repressivo, fornecendo suporte logístico e burocrático para ações de vigilância e repressão.

Dentre os alvos do CIEX estavam figuras conhecidas, como o ex-presidente deposto João Goulart e o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O caso de João Goulart é um dos mais emblemáticos. Documentos apontam que ele foi monitorado de perto pelo CIEX e por serviços de inteligência de países vizinhos, como Uruguai e Argentina. A preocupação do regime autoritário era que o ex-presidente estivesse articulando um retorno político ao Brasil, o que levou à sua constante vigilância e ao cerceamento de suas movimentações (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 192).

Leonel Brizola, por sua vez, tornou-se alvo prioritário da espionagem brasileira no exterior, especialmente no Uruguai. Registros indicam que agentes brasileiros acompanharam suas atividades, enviando relatórios detalhados sobre suas reuniões políticas e discursos públicos (PENNA FILHO, 2009).

Outro aspecto relevante foi a repressão aos exilados de menor expressão pública, mas igualmente considerados “subversivos” pelo regime. Documentos do CIEX revelam que estudantes, artistas e sindicalistas também eram alvo de monitoramento constante. Muitos tiveram passaportes negados e foram impedidos de retornar ao Brasil, enquanto outros foram presos e entregues às autoridades brasileiras em operações conjuntas com os regimes militares da região (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 194).

O CIEX também desempenhou um papel fundamental na chamada Operação Condor, a rede de cooperação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), que permitia a troca de informações sobre exilados e facilitava sequestros e assassinatos (PENNA FILHO, 2009, p. 48-49). Segundo documentos analisados pela Comissão Nacional da Verdade, o Brasil participou ativamente desse esquema, fornecendo dados sobre refugiados políticos e auxiliando na captura de opositores nos países vizinhos (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 220).

Além disso, o apoio do Brasil ao golpe no Chile, em 1973, foi articulado por meio do Itamaraty e outros órgãos do aparato repressivo. O embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto desempenhou um papel crucial nesse processo, fornecendo informações estratégicas e apoio logístico aos militares brasileiros que planejavam a deposição de Salvador Allende. Segundo Roberto Simon (2021), o Brasil, sob o comando do presidente militar Emílio Garrastazu Médici, não apenas auxiliou os conspiradores chilenos nos meses que antecederam o golpe, mas também contribuiu ativamente para consolidar o regime ditatorial de Augusto Pinochet.

Assim, o CIEX representou um dos pilares da repressão política no exterior, demonstrando que a ditadura militar brasileira não limitou sua ação ao território nacional, mas expandiu sua vigilância e perseguição a nível internacional. Ao colaborar ativamente com outros regimes autoritários e ao vigiar ininterruptamente seus opositores, o CIEX contribuiu para a perpetuação de um sistema de terror que marcou a história recente do Brasil. A análise de seus arquivos e de suas atividades é essencial para compreender a extensão da repressão política no período e reforça a importância de preservar a memória histórica para evitar que tais episódios se repitam. A ditadura não é “página virada”.

Diplomatas indesejáveis

Existiu o outro lado da moeda: a repressão sofrida por muitos diplomatas que não se adequaram ao comportamento considerado ideal pela ditadura. Menor em termos quantitativos se comparada a outros ministérios, a depuração também ocorreu no MRE. Logo após o golpe militar, os ministérios foram autorizados a iniciar investigações internas para identificar suspeição ideológica e afastar os servidores críticos ao novo regime.

Em 1964, o Itamaraty obteve especificidade ao poder criar uma comissão própria, sendo a Comissão de Investigação Sumária (CIS) conduzida por Vasco Leitão da Cunha, diplomata escolhido por Castelo Branco para chefiar o MRE. A CIS resultou em 97 diplomatas investigados e 20 exonerados (CARMO, 2018, p. 60).

Em 1968, no auge da repressão política interna, uma nova comissão foi formada, incidindo sobre condutas consideradas desviantes e recomendando a exoneração dos homossexuais. Segundo Gessica Carmo, houve a obrigatoriedade de exames médicos para atestar hábitos e ações íntimas, colocando esses diplomatas em condições vexatórias (2018, p. 65). Outros foram afastados por serem boêmios demais e por terem comportamentos avaliados como inadequados. O caso mais conhecido talvez seja o de Vinicius de Moraes, que foi afastado e posteriormente integrado aos quadros do Ministério da Educação e Cultura.

Cabem também algumas considerações sobre o diplomata José Pinheiro Jobim, vítima do regime militar por esboçar a intenção de registrar um esquema de corrupção relacionado à construção da Usina de Itaipu. No início da década de 1960, José Pinheiro Jobim foi designado pelo presidente João Goulart para conversar com autoridades paraguaias sobre o aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná. O projeto saiu do papel durante os governos militares, mas os valores empenhados na suntuosa obra foram absurdamente maiores do que inicialmente se previa.

Em 1979, já aposentado, José Pinheiro Jobim afirmou junto a um círculo pequeno de conhecidos que estava preparando um livro sobre as irregularidades na construção da hidrelétrica binacional. Dias depois seu corpo foi encontrado e mesmo com indícios da farsa montada, a versão oficial foi a de suicídio. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, ao reavivar o caso, reconheceu que o regime foi responsável pela tortura e a morte de José Pinheiro Jobim. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 2018, determinou que sua certidão de óbito fosse retificada, reconhecendo a morte violenta causada pelo Estado brasileiro.

O Ministério das Relações Exteriores entre a política de governo e a de Estado

Servidores de carreira do Ministério das Relações Exteriores contribuíram com o aparato repressivo através de uma estrutura burocrática de proporções grandiosas, no entanto, muitos deles foram vítimas das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar. Os casos aqui apresentados evidenciam que as explicações polarizadas, que apontam toda a diplomacia brasileira genericamente como vítima ou como partícipe do aparato repressivo, não dão conta de uma realidade complexa e multifacetada.

Sendo assim, não se trata de demonizar ou enaltecer de forma exagerada o Ministério das Relações Exteriores. Como ocorre em qualquer instituição, os diplomatas são suscetíveis a assimilar interesses provenientes de espectros políticos e ideológicos distintos, havendo certamente entre eles os que ficaram satisfeitos em contribuir com a repressão e os que se indignaram e se arriscaram a combater as arbitrariedades cometidas pelos militares.

 O Itamaraty é reconhecido internacionalmente por formar excelentes quadros que já demonstraram capacidade de representar com maestria os interesses brasileiros. Nesse sentido, a instituição tem seus méritos na seta do tempo, ao preservar algumas tradições, como a defesa do multilateralismo e da solução pacífica de controvérsias. Mas junto às ações próprias de uma política de Estado caminham decisões condizentes com as prioridades dos governos de plantão, o que comprova que a política externa é também uma política de governo. A ideia de que o Itamaraty é uma instituição pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável diante das evidências.

 

*Ismara Izepe de Souza é professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

 

Referências:


BALBINO, Camila Estefani de Andrade Simphrônio. O Itamaraty e suas conexões com o aparato repressivo durante a Ditadura Militar (1964-1985). Trabalho de Conclusão de Curso (Relações Internacionais) – Universidade Federal de São Paulo, Osasco, 2023.

CARMO, Gessica Fernanda do. Os soldados de terno? Ruptura, crise e reestruturação da diplomacia brasileira (1964-1969). Dissertação (Mestrado), Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, SP, 2018.

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Relatório Final. Brasília: CNV, 2014.

PENNA FILHO, Pio. O Itamaraty nos anos de chumbo – o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no Cone Sul (1966-1979). Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 52, núm. 2, 2009, p. 43-62.

SIMON, Roberto. O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

sábado, 18 de janeiro de 2025

O Auto da Compadecida 2 - Bruno Fabricio Alcebino da Silva; Introdução de Maurício David

Apresentação de Maurício David:

 A lembrança mais remota que tenho na memória é de, garoto de calça curta passando de ônibus pela Praia do Flamengo, no Rio, ter visto nos muros do antigo prédio da UNE cartazes de divulgação da peça de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida”. Tempos depois, soube que fora encenada pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE e que se tornara muito popular nos teatros estudantis que, de quando em quando, espoucavam nas escolas secundaristas do Rio de Janeiro, tocadas pelos estudantes de esquerda. Mas ver mesmo a obra de Ariano, só me ocorreu quando do lançamento da versão do Guel Arraes feita pelos estúdios da Globo Filmes (vejam a ironia da História, a Globo do Roberto Marinho, a arqui-reacionária emissora de televisão que esteve por décadas por detrás de tudo o que fosse obscurantismo político no Brasil... E o filme em si, filmado pelo brilhante cineasta e diretor de televisão Guel Arraes – filho do cassado ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes e banido do país pelo regime militar. Aliás, Guel vem de “Miguel” , o nome do pai (Miguel Arraes). Foi amor a primeira vista, um filmaço que até hoje me emociona e diverte!

Recomendo muitíssimo a leitura da peça do grande autor Ariano Suassuna, uma obra prima. E também que se vejam as duas sequencias filmadas do Auto (a primeira – pela qual sou apaixonado, que vi em uma das minhas vindas ao Brasil no começo dos anos 2000 (quando ainda estava vivendo no Chile em meu segundo exílio e trabalhando na CEPAL das Nações Unidas ; a segunda ainda não vi e que acaba de ser lançada nos cinemas brasileiros, mas já fiquei fã também pelas criticas positivas que li na imprensa.).

Recomendo então, com ênfase, neste começo de um 2025 alvissareiro, a leitura do livraço do Ariano Suassuna e os filmes que se basearam no seu livro . Boa leitura e se divirtam com os dois filmes do Guel...

MD

P.S.: Uma curiosidade : tenho uma amiga do movimento estudantil de 67/68 que por diversas vezes já mencionei em minhas episódicas memórias : a Ana Célia, que veio a se casar com o saudoso economista Antonio Barros de Castro e que se tornou também um grande amigo.  A Ana é uma amiga de lá se vão seis décadas (perdoe-me, querida Ana, por revelar a nossa idade, mas sei que você é tudo menos vaidosa...), amiga mesmo, daquelas capazes de estender a mão para quem está se afogando e fazer de tudo para salvar a vida do amigo... Certa vez em Paris, batendo papo com um brasileiro também amigo que estava por lá e que havia sido colega da Ana no Colégio de Aplicação da UFRJ, êle me contou que em apresentação teatral da peça O Auto da Compadecida pelos alunos do CAP a Ana Célia havia representado o papel da ... Nossa Senhora !!! Sim, a Nossa Senhora, a mesma que a grande atriz Fernanda Montenegro representou na versão cinematográfica do Guel Arraes... Me diverti muito com a história e sempre achei, depois disto, que a Ana Célia era mesmo a figura apropriada para representar a Nossa Senhora ( a Compadecida...) no teatro... Valeu, minha Nossa Senhora !!!, como repetia o ator – Matheus Nachtergaele - que representava João Grilo no filme do Guel !

Mauricio David

 

Para os amantes do Cine : O Auto da Compadecida 2

 

Ariano Suassuna. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, 208 págs.
O Auto da Compadecida 2.
Brasil, 2024, 114 minutos.
Direção: Guel Arraes, Flavia Lacerda.
Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falcão.
Elenco:Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Virgínia Cavendish, Eduardo Sterblitch, Enrique Diaz, Luiz Miranda, Taís Araújo. 

 

Considerações sobre a peça de Ariano Suassuna e os filmes baseados nessa obra

 

...Auto da compadecida é muito mais do que uma sátira social. É também uma obra profundamente espiritual, que aborda questões existenciais de maneira acessível e tocante. A justaposição entre o cômico e o trágico reflete a própria experiência humana, especialmente no contexto do sertão, onde a luta pela sobrevivência é acompanhada por uma rica vida espiritual e cultural. Essa dualidade é exemplificada na figura de João Grilo, que, apesar de todas as suas falhas e artimanhas, revela uma profunda compreensão da condição humana e um desejo genuíno de justiça e redenção...

 

“Mandou chamar o vigário: / – Pronto! – o vigário chegou. / – Às ordens, Sua Excelência! / Bispo lhe perguntou: / – Então, que cachorro foi / Que o reverendo enterrou? / – Foi um cachorro importante, animal de inteligência: / ele, antes de morrer, / deixou a Vossa Excelência / Dois contos de réis em ouro. / Se eu errei, tenha paciência / – Não errou não, meu vigário, / você é um bom pastor. / Desculpe eu incomodá-lo, / a culpa é do portador! / Um cachorro como esse, / se vê que é merecedor! (Leandro Gomes de Barros, “O enterro do cachorro”, fragmento de O dinheiro).

“Não sei, só sei que foi assim”. Foi assim que cresci, foi assim que me formei, foi assim que vivi. Nasci no sertão do Cariri, no Ceará, mas fui criado em São Paulo, ouvindo minha avó e meu pai contarem os causos tradicionais e quase sempre cômicos que ouviram ou viveram por lá. A vastidão seca e austera dessa região, seus contornos agrestes e seu povo resiliente sempre moldaram minha percepção de mundo.

Ao ler Auto da compadecida (1955), de Ariano Suassuna, fui inevitavelmente transportado para um espaço muito próximo ao meu, ainda que ficcional: Taperoá, na Paraíba. Ali, os cenários e os personagens pareciam falar diretamente às minhas memórias, às vivências de quem conhece as nuances do sertão nordestino, seus dilemas e suas belezas.

O termo “auto”, que dá título à peça, remete a uma tradição literária medieval que encontrou sua expressão mais marcante em Portugal, com autores como Gil Vicente. Os autos, de caráter religioso ou moralizante, eram encenações teatrais que buscavam entreter e instruir, combinando elementos cômicos e dramáticos. Em Suassuna, essa tradição é revitalizada e adaptada à realidade nordestina, compondo um texto que é simultaneamente local e universal, popular e erudito, cômico e trágico.

Logo de início, Auto da compadecida se apresenta como uma obra que transcende fácil categorização. A narrativa, centrada nas figuras de João Grilo e Chicó, é um caleidoscópio de referências culturais, históricas e religiosas. João Grilo, o anti-herói arquetípico, é a personificação da astúcia sertaneja, enquanto Chicó, seu companheiro de aventuras, encarna o imaginário fabuloso e a oralidade tão própria ao povo nordestino. Ambos, através de suas artimanhas e desventuras, questionam instituições e hierarquias sociais, expondo as contradições de uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade e pela hipocrisia.

O auto foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste, como exemplificado pela epígrafe deste texto, que reflete a rica tradição literária e cultural da região, principalmente da literatura de cordel, uma expressão autêntica e profundamente enraizada na cultura nordestina. O cordel, com suas rimas e narrativas envolventes, sempre foi uma forma de resistência e preservação da história e das crenças populares do povo nordestino. Ela surge das vozes anônimas, das experiências cotidianas e das mitologias locais, muitas vezes abordando temas como o folclore, as lendas, os desafios da vida no sertão e as figuras heroicas que se tornam parte do imaginário coletivo.

A trama, ambientada em Taperoá, entrelaça o cotidiano do sertão com temas universais, como a justiça, a fé e a moralidade. No cerne da narrativa está o julgamento final, onde figuras como o Diabo, Manuel (Jesus Cristo) e Nossa Senhora da Compadecida desempenham papéis cruciais. Esse julgamento é uma síntese brilhante do sincretismo religioso brasileiro, mesclando elementos do catolicismo tradicional com a religiosidade popular. Nossa Senhora, por exemplo, é retratada como a intercessora máxima, dotada de uma empatia profunda pelo sofrimento humano, enquanto o Diabo encarna não apenas o mal metafísico, mas também as injustiças concretas do mundo terreno.

Um dos aspectos mais notáveis da peça é seu uso magistral da linguagem. Suassuna consegue recriar a oralidade nordestina com uma precisão e um lirismo que tornam o texto profundamente autêntico. As expressões idiomáticas, os ditos populares e o humor peculiar do sertão são explorados de maneira a dar à obra uma musicalidade própria, que é ao mesmo tempo cômica e poética. Esse uso da linguagem é também um ato de resistência cultural, uma afirmação da riqueza e da singularidade da tradição nordestina em um contexto histórico marcado pela marginalização dessa região no imaginário nacional.

Outro elemento essencial é o humor, que permeia toda a narrativa e serve como um meio de subversão e crítica. O riso em Ariano Suassuna não é apenas um fim em si mesmo; é uma ferramenta poderosa para desvelar as estruturas de poder e questionar as normas sociais. As cenas envolvendo figuras como o padeiro, a mulher adúltera e o padre ganancioso são exemplos claros de como o humor pode ser utilizado para expor a hipocrisia e a corrupção, sem perder de vista a complexidade e a humanidade dos personagens.

No entanto, Auto da compadecida é muito mais do que uma sátira social. É também uma obra profundamente espiritual, que aborda questões existenciais de maneira acessível e tocante. A justaposição entre o cômico e o trágico reflete a própria experiência humana, especialmente no contexto do sertão, onde a luta pela sobrevivência é acompanhada por uma rica vida espiritual e cultural. Essa dualidade é exemplificada na figura de João Grilo, que, apesar de todas as suas falhas e artimanhas, revela uma profunda compreensão da condição humana e um desejo genuíno de justiça e redenção.

Finalmente, não se pode falar de Auto da compadecida sem destacar seu impacto cultural. Desde sua estreia em 1955, a obra tem sido adaptada e reinterpretada em diversos formatos, incluindo cinema e televisão, sempre com grande sucesso. Essa capacidade de ressoar com públicos tão diversos é um testemunho de sua força artística e de sua relevância atemporal.

Assim, ao revisitar o auto, não apenas reconheci os traços do sertão de Taperoá, mas também enxerguei, refletidos na obra de Suassuna, os dilemas, as esperanças e a grandeza de um povo que, como João Grilo, encontra na astúcia e na fé as ferramentas para enfrentar as adversidades da vida. É uma obra que, mais do que nunca, fala à alma do Brasil.

Entre o sagrado e o profano: Auto da compadecida no cinema

Quando O Auto da Compadecida foi lançado em 2000, ele não apenas adaptou a obra-prima teatral de Ariano Suassuna; o filme redefiniu os limites do cinema brasileiro ao mesclar a comédia popular com um profundo subtexto cultural e espiritual. Sob a direção de Guel Arraes, a narrativa costurou o rico universo da literatura de cordel com um vigor cinematográfico raro, valorizando a oralidade nordestina, a esperteza dos personagens e o sincretismo religioso que define boa parte do Brasil profundo.

Agora, quase um quarto de século depois, a chegada de O Auto da Compadecida 2 apresenta novos desafios e celebra antigas conquistas, refletindo não apenas mudanças nos personagens, mas também no próprio cinema nacional.

A adaptação de 2000 transformou um material originalmente teatral e radiofônico em um dos mais marcantes sucessos do audiovisual brasileiro. O que foi crucial nesse processo não foi apenas a fidelidade à linguagem e ao humor de Suassuna, mas também a habilidade de transportar sua essência para um formato mais dinâmico e visualmente rico. A câmera de Guel Arraes explorou o sertão não como um espaço meramente árido e desolado, mas como um palco vibrante de emoções humanas e conflitos universais. A plasticidade dos cenários e a leveza da montagem ampliaram o alcance da obra, permitindo que João Grilo e Chicó transcendessem suas origens regionais para se tornarem arquétipos da malandragem, da coragem e da sobrevivência em um mundo de desigualdades.

O primeiro filme equilibrou o sagrado e o profano com uma elegância incomum. A presença de Fernanda Montenegro como a Compadecida não apenas ancorava o filme no imaginário católico, mas conferia gravidade e beleza ao julgamento final, em contraste com as peripécias hilárias de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello). O resultado foi uma obra que conseguia ser simultaneamente crítica e devocional, regional e universal, cômica e comovente.

Por outro lado, O Auto da Compadecida 2 surge em um momento em que o cinema brasileiro enfrenta tanto desafios orçamentários quanto pressões por inovação narrativa. A sequência, dirigida novamente por Guel Arraes e co-assinada por Flávia Lacerda, preserva a essência humorística e o carisma dos protagonistas, mas se revela menos ousada em suas ambições. Se o primeiro filme foi uma celebração da criatividade e do virtuosismo narrativo, o longa de 2024 prefere revisitar fórmulas consagradas, às vezes sem o frescor necessário para reinventá-las.

A escolha de explorar os mesmos arquétipos em uma nova disputa – agora eleitoral – funciona como uma alegoria contemporânea, mas carece da profundidade que tornou o original atemporal. Ao colocar João Grilo no centro de uma disputa entre poderosos locais, o filme aborda questões relevantes sobre manipulação política e ambição, mas muitas dessas reflexões acabam diluídas em uma trama que prioriza o humor fácil em detrimento da crítica social mais contundente.

Mesmo assim, há méritos que não podem ser ignorados. A utilização de animações para ilustrar os “causos” de Chicó é uma inovação que respeita o espírito narrativo original ao mesmo tempo em que explora novas linguagens visuais. Além disso, a introdução de novos personagens, como Antônio do Amor (Luiz Miranda) e a nova Compadecida (Taís Araújo), traz vitalidade ao elenco e prova que há espaço para reinvenções dentro desse universo.

A substituição de Fernanda Montenegro por Taís Araújo no papel da Compadecida sintetiza o maior desafio da sequência: como se apropriar de um legado icônico sem descaracterizá-lo? Araújo entrega uma interpretação que equilibra suavidade e carisma, mas inevitavelmente carrega o peso de suceder uma das maiores atrizes da história do cinema. Sua performance, entretanto, sinaliza uma tentativa de modernização do filme, aproximando a Compadecida de uma figura mais acessível e menos hierática.

Já Nachtergaele e Selton Mello permanecem como o coração da história. A química da dupla é tão marcante que ofusca eventuais problemas narrativos. João Grilo ainda é o malandro irresistível, enquanto Chicó continua o contador de histórias cheio de medos e contradições. Contudo, é notável que o roteiro de 2024, em sua tentativa de reproduzir os acertos de 2000, acabe restringindo a evolução dos personagens. A sensação de repetição é inevitável, especialmente para quem tem o primeiro filme vivo na memória.

Talvez o maior mérito da nova adaptação resida em sua capacidade de reaproximar o público do universo de Suassuna, mesmo que o faça de maneira menos inspirada do que poderia. O filme é um convite à nostalgia, mas não se arrisca o suficiente para ampliar as fronteiras narrativas do original. Em um momento em que o cinema nacional luta por espaço em meio a produções estrangeiras de alto orçamento, a falta de ousadia da sequência é compreensível, mas não deixa de ser frustrante.

Por outro lado, a obra reafirma o poder duradouro dos personagens de Suassuna e o impacto cultural de suas histórias. Mesmo quando não é plenamente inventivo, O Auto da Compadecida 2 prova que o Brasil ainda sabe rir de si mesmo – e, às vezes, essa capacidade é tudo o que precisamos para seguir em frente.

 

  • Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).

 


Ariano Suassuna. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, 208 págs.
O Auto da Compadecida 2.
Brasil, 2024, 114 minutos.
Direção: Guel Arraes, Flavia Lacerda.
Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falcão.
Elenco:Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Virgínia Cavendish, Eduardo Sterblitch, Enrique Diaz, Luiz Miranda, Taís Araújo.