“Ernesto Araújo enganou o presidente”, diz embaixador demitido
Paulo Roberto de Almeida
Entrevista com
o jornalista Caio Junqueira, da revista Crusoé (5/03/2019)
O embaixador
Paulo Roberto de Almeida (foto) recebeu na manhã de segunda-feira, 4, um telefonema
de Pedro Wollny, chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores, Ernesto
Araújo. A ligação era para demiti-lo do cargo de presidente do Instituto de
Pesquisas de Relações Internacionais, órgão acadêmico ligado ao Itamaraty. O
motivo: uma postagem em seu blog pessoal na noite anterior com artigos críticos
à política externa atual.
A demissão
chamou a atenção de diplomatas. Muito mais pelo histórico do demitido do que
pelos artigos em si. Almeida é um antigo opositor do petismo, que caíra no ostracismo
por reprovações feitas à diplomacia dos governos Lula e Dilma Rousseff. Em
entrevista a Crusoé nesta terça-feira, 5, ele
diz que Araújo só passou a defender teses da direita por oportunismo, e critica
os padrinhos do chanceler: o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do
presidente Jair Bolsonaro, e o escritor Olavo de Carvalho.
Diplomata de
carreira desde 1977, Almeida foi ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em
Washington e trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República. Ele afirma que quem está
mandando mesmo nas questões envolvendo o Brasil com outros países são os
militares. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como foi sua
demissão?
Eu publiquei
no domingo uma postagem no meu blog remetendo a um PDF que montei com base em
três documentos sobre política externa do Brasil: uma palestra do Rubens
Ricupero, um artigo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre a
Venezuela e um artigo do chanceler Ernesto Araújo. Juntei os três e convidei os
leitores a fazer um debate sobre política externa. Isso foi usado na
segunda-feira pela manhã para me exonerar. O chefe de gabinete (Pedro Wollny)
me ligou e disse que eu tinha demonstrado inconveniência ao postar os documentos
no meu blog pessoal. Ora, fiz isso ao longo de todo o lulopetismo e talvez para
o meu próprio prejuízo, porque fiquei no ostracismo completo. Durante os dois
anos do governo Michel Temer, quando fui finalmente chamado para exercer um
cargo no Itamaraty, postei constantemente. Coloquei no blog tudo o que achava
relevante sobre política externa. Fui tomado de surpresa agora, por ter sido
dispensado a mim o mesmo tipo de tratamento que tive no passado, de censura,
isolamento e, de certa forma, punição.
O sr.
acredita que foi essa postagem que gerou sua demissão?
Na verdade,
o que foi levado em conta foram comentários anteriores que fiz no blog e no
Twitter sobre o Olavo de Carvalho, que acho um personagem nefasto para a
política externa brasileira. É um inepto em relações políticas internacionais e
vem se pronunciando sobre essa fantasmagoria do globalismo, que parece que
contaminou o nosso chanceler.
Qual sua
avaliação sobre o chanceler?
O Ernesto
nunca, jamais, em nenhum momento da história anterior e do regime lulopetista,
se manifestou contra o marxismo cultural, contra o apoio a governos
esquerdistas. Ele se aproveitou dessa onda antipetista e contra a esquerda para
ascender. Como fez o Samuel Pinheiro Guimarães (secretário-geral do
Itamaraty e depois secretário de Assuntos Estratégicos no governo Lula),
que no final do governo FHC começou a falar contra a Alca (Área de Livre
Comércio das Américas idealizada pelos Estados Unidos e cuja participação
brasileira Lula barrou), contra o Mercosul neoliberal, e se tornou um dos
principais gurus do lulopetismo. O Ernesto farejou essa ascensão da direita. E
sendo ou não conservador, religioso ou direitista, aderiu completamente a ela.
Criou um blog em que apoiava abertamente Bolsonaro e se pronunciava em tons ásperos
contra os marxistas e contra os esquerdistas. Contra a China maoísta, algo que
não existe há mais ou menos 40 anos. E contra o climatismo. Tem muito de
construído aí. Eu o considerava um diplomata normal. Competente, como são os
diplomatas em geral. Essa transformação de burocrata normal da diplomacia para
arauto da luta contra o globalismo é uma construção artificial e feita de forma
um pouco oportunista para entrar nessa onda bolsonarista e da direita. Ele
enganou os olavistas verdadeiros e o próprio presidente para conquistar esse
cargo.
Então, no
fundo, foram suas críticas a Olavo de Carvalho que causaram a sua demissão?
Olavo é um
guru distante que pode ter sido influente politicamente, mas não determinante
nas medidas que são adotadas pelo chanceler em relação à Venezuela, ao Pacto
das Migrações, à mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para
Jerusalém. Ele defende a luta contra o globalismo e nosso chanceler encampa
isso. Como eu me pronunciei contra o que eu chamo de “sofista de Virginia”,
isso deve ter chocado muito o chanceler.
Eduardo
Bolsonaro também tem influência sobre o chanceler?
O Eduardo
Bolsonaro também é um personagem nefasto para a política externa brasileira,
porque vive pregando não uma adesão aos Estados Unidos, mas ao governo Trump, o
que é de uma inconveniência total. Ele certamente é o grande responsável pela
aceitação do Ernesto como chanceler, juntamente com o Filipe Martins, que
era assessor de assuntos internacionais do PSL (e atual assessor
especial da Presidência da República).
Filipe é
outra eminência parda na política externa brasileira?
Ele é um
desses verdadeiros crentes que ascenderam na onda da direita e foi guindado a
essa posição por influência dos chamados bolsokids (os filhos do presidente).
Não acho que tenha muita influência, não. O vice-presidente, general Hamilton
Mourão, já mostrou que não dá muita importância a um garoto que já foi chamado
de Robespirralho ou Sorocabannon (termo que une Sorocaba, cidade natal de
Filipe, a Steve Bannon, um dos estrategistas do presidente americano Donald
Trump). Tem lá sua influência porque foi quem fez o desastroso discurso de
Jair Bolsonaro em Davos, de seis minutos, em que o presidente não disse
absolutamente nada. Tem uma influência marginal. Reúne-se sempre com o Ernesto.
Faz parte daquilo que o Ricupero denominou como lunatic fringe: a
franja lunática do governo Trump. É um verdadeiro crente nessa coisa de
olavismo. Uma ideologia muito difusa e confusa, à qual aderem os jovens
carentes de formação mais completa.
Como avalia
a política externa atual conduzida pelo ministro Ernesto Araújo?
Gostaria de
responder positivamente, se houvesse uma política externa do Ernesto Araújo.
Não vejo nenhuma. Não tenho nenhuma exposição clara, abrangente, completa e
sistemática de todos os pontos do que pudesse ser chamado de política externa
do Ernesto Araújo. Se você descobrir e me enviar, agradeço e vou me pronunciar
sobre ela. O que você tem são esses artigos no blog dele e declarações no
discurso de posse que não têm quase nada de política externa. São chamamentos a
uma missão salvadora, de resgatar o nosso Itamaraty do marxismo. Isso é uma
ofensa aos diplomatas, que, na maior parte das vezes, são profissionais
dedicados a questões técnicas da política externa e não a causas
salvacionistas.
Por que é
uma ofensa?
Se tiver
petistas no Itamaraty, são dois ou três. O resto é oportunista, porque
quer promoção, posto, remoção. Se o presidente fosse o Paulo Maluf, eles seriam
malufistas. Com Lula, houve no Itamaraty uma grande adesão às causas
lulopetistas, ao desenvolvimentismo, à política Sul-Sul. Mas diplomatas são
burocratas bem-comportados, no mais das vezes.
Então pode
haver também uma adesão à política externa bolsonarista, não?
Não sei.
Essa adesão à luta contra o marxismo cultural, contra o globalismo… Não sei o
que os diplomatas teriam a fazer porque tudo isso é muito confuso.
Como está o
Itamaraty hoje?
Está parado.
Há uma grande paralisia quanto a definições para saber o que se deve fazer.
Com isso
tudo acontecendo, os militares estão assumindo a política externa?
Eles têm uma
determinação maior que a do próprio chanceler. Isso se revelou desde o início,
em temas como a instalação de uma base americana no Brasil, China, embaixada em
Jerusalém e outros elementos da política externa que ficaram sob controle
estrito da ala militar do governo. Há uma espécie de comitê de tutela da ala
militar sobre o chanceler. Isso está muito claro e se revelou agora de novo na
reunião do grupo de Lima (reunião de países formada para debater a crise na
Venezuela), quando o vice-presidente foi o chefe da delegação e expressou
claramente posições dos militares brasileiros contra o chanceler. Há uma
liderança diplomática exercida por militares.
Eles que
mandam de fato?
Não diria
que eles mandam porque tem aí, digamos, um conselho de defesa que se reúne com
militares e o chanceler. O conselho toma posições de substância. Eu imagino que
essas duas próximas visitas do presidente a Israel e aos Estados Unidos estejam
sendo planejadas por um conselho que extravase o Itamaraty. Imagino que a
opinião dos militares será mais determinante do que a do chanceler nessas
questões de acordos, anúncios e declarações.
O Itamaraty
vê com bons olhos a influência militar sobre seu trabalho?
Soldados e
diplomatas sempre se entenderam muito bem em todos os países. São dois grandes
esteios do estado nacional e da defesa e segurança do país. Atuam
conjuntamente. Mas no Brasil está havendo uma inversão. Atualmente, são os
soldados que estão defendendo posições mais diplomáticas, e o chanceler, uma
posição mais dura e de intervenção em assuntos internos dos outros países. Há
uma indefinição quanto às grandes linhas da política externa. Não se sabe o que
vamos fazer, por exemplo, com China, Estados Unidos e Venezuela. E os militares
entram nesse vácuo. São um corpo bem preparado, democrático e consciente dos
grandes desafios do país, ao passo que no Itamaraty há indefinição sobre tudo
isso.
Já há
exemplos da supremacia militar sobre o Itamaraty neste governo?
Sim. Você
começou o ano com o anúncio de uma grande base americana no Brasil, que foi
rechaçada pelos militares. Teve anúncio da mudança da embaixada de Israel de
Tel-Aviv para Jerusalém, descartada por pressão dos agricultores e dos
militares. Teve a demonstração de animosidade em relação à China, tanto do
presidente quanto do chanceler, minimizada pelos militares. Teve anúncio de
retirada do Acordo de Paris, que não se consagrou por ser uma medida inócua,
por ignorância do que representa o acordo sobre mudanças climáticas, algo até
benéfico as políticas do Brasil.
É possível
comparar sua demissão à perseguição que sofreu na era petista?
Pela
motivações autoritárias e censuradoras, sim. Na substância, não. Na era
petista, eu já tinha um passado de comentários sobre a política externa do PT,
sobre as posições do Lula em matéria de política agrícola, de subsídio, ou
sobre a aliança com pobres e oprimidos para enfrentar os vilões hegemônicos.
Eles sabiam bem quem eu era e fui vetado logo no início, até mesmo para exercer
um cargo que não tinha nada a ver com diplomacia: ia assumir o mestrado do
Instituto Rio Branco e fui impedido. E depois fui vetado pelo Celso Amorim em
diferentes cargos no Itamaraty. Ele acabou me oferecendo uma embaixada na Ásia,
que não aceitei. E aí fiquei anos nos corredores sem função, trabalhando na
biblioteca. Hoje é diferente. Você tem uma pessoa insegura (Ernesto Araújo).
Vamos falar claramente: o ministro é uma pessoa insegura, que precisa firmar
sua autoridade, e até para uma perspectiva geracional, ele está trocando todas
as chefias mais antigas por pessoas mais jovens. Precisava se livrar dos mais
velhos. Em algum momento, eu seria substituído. Mas,na verdade, fui
defenestrado por suposta insubordinação ou inconveniência de postar coisas no
meu blog. Acho que o espírito é o mesmo, mas as motivações talvez sejam
diferentes. O petismo sabia bem o que queria fazer, e portanto eu era um
opositor ideológico identificado desde o início. Agora, eles não sabem bem o
que fazer, mas se revoltam contra todos os supostos opositores.
Para onde o
senhor vai agora?
Não espero
nada agora. Vou ficar nos corredores e vou para a biblioteca como sempre fiz.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de março de 2019