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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

As promessas quebradas de JB - Deutsche Welle

Bolsonaro's broken promises
One year ago, right-wing populist Jair Bolsonaro was elected Brazil's president. But he has failed to fulfil many of the promises that helped bring him to power.
DeutscheWelle, 29/10/2019

"Our country became incredibly polarized in October 2018," says Brazilian political scientist Jairo Nicolau of Rio de Janeiro's Fundacao Getulio Vargas (FGV) university. "Families would fight over politics." But he now has the impression that things have calmed down somewhat. Sociologist Demetrio Magnoli tells DW that while debate "on social media is still pretty heated," in society at large, "tensions have abated somewhat and social polarization has declined as well, in step with [President Jair] Bolsonaro's popularity ratings."
According to the latest figures from Brazilian pollster Ibope, Bolsonaro's approval ratings have dropped from 49% when he took office in January to 31% in September. About a third of respondents said they were disappointed with the president's record so far – up from just 11% in January. Magnoli describes the loss as "dramatic." But the president counters this trend with ever more biting comments on social networks: "The government ramps up its rhetoric the more it loses in popularity," Magnoli says. "That is not a particularly good strategy." 

A weak president

Magnoli says the Brazilian government has achieved very little. The executive appears surprisingly feeble. After all, it was Congress and not Bolsonaro's government that came up with the recently passed pension reform. Magnoli says the government isn't driving economic policy-making either. He says that the parliament will probably devise the next economic reforms as well — even though, technically speaking, the Brazilian president holds a uniquely powerful position in the country. Magnoli, therefore, believes that "today we no longer have a presidential system but a semiparliamentary one."  
Bolsonaro is almost powerless against the parliament's strength. During the election campaign, he pledged to rid state schools of ideologies, make abortion laws stricter and allow all citizens to buy guns. Minorities, in particular, were scared of losing their rights. But very little has come of this, as parliament has blocked most of the president's plan

Brazil's left-wing opposition remains paralyzed

But during this time, Brazil's opposition has not been particularly strong. Philosopher Vladimir Safatle says the "political left has collapsed, which is unprecedented in the history of Brazil." He says the reason for this is that they never managed to get over their electoral defeat and have been unable to make a fresh start.
Between 2003 and 2016, Brazil had been governed by the left-wing Workers' Party (PT) — longer than any party in the country's history. But when protests broke out in 2013, the PT lacked an adequate response to them. It was blamed for the economic crisis, and found itself mired in corruption scandals. In 2016, it was voted out of power. But the party never conducted a post-mortem, says Safatle: "They love to tell everyone they failed because of their virtues, not because of their mistakes." But, he says, Brazilian ex-President Luiz Inacio Lula da Silva — or Lula for short — had created a power structure replete with internal contradictions that ultimately led to its implosion. Safatle says "the political left has since then struggled to formulate a new agenda."
The opposition's paralysis means Bolsonaro can keep governing, even though his popularity is waning. "Bolsonaro is supported by only 30% of the population, a minority," Safatle says. "But it is better to have the backing of a small organized group than that of a large,
Bolsonaro had promised the Brazilian people a conservative revolution. In Safatle's view, it was one that would "turn the clocks back 100 years in Brazil, which would have catastrophic consequences, among other things for environmental policies." He says the Bolsonaro government has refused to draw lessons from the recent ecological catastrophes, such as the mass deforestation of the rain forest, the hugely destructive Amazon fires and the oil spill in the country's north. 
Safatle says that Bolsonaro is also creating a social order that will lead to "further income concentration." He says that these are the kinds of policies that are causing Chile's current unrest. "And they will also lead to a real explosion here, though it will take longer for this to happen," he predicts. He also points out that Bolsonaro has cultivated an "extremely authoritarian and militant atmosphere," something that manifests itself in growing police brutality, among other things.

What's next for Brazil?

So, what will Brazil's future look like? Magnoli believes that if ex-President .Lula is released from jail sometime soon, this could "shake up Brazil's political landscape." But he thinks "Lula's release could even ironically play into the government's hands, as Bolsonaro's support derives largely from people's rejection of Lula and the PT".
But political scientist Jairo Nicolau is certain that the Brazilian people will grow more accepting of the PT, in part because of revelations indicating that the trial against Lula was possibly manipulated, but also because Bolsonaro has so far delivered little of what he promised before taking office. Nicolau explains that "people wanted a change, but when that change does not materialize, people may reconsider; Lula will probably be seen in a more positive light today than he was a year ago."
For this reason, sociologist Magnoli gives a mixed assessment one year after Bolsonaro's election: "There is certainly hope that Brazil's economy will get back on track — but the government may also continue to grow more and more unpopular."

PS: Com meus agradecimentos ao Pedro Luiz Rodrigues pela seleção da matéria.

sábado, 14 de setembro de 2019

A preparação de um diplomata brasileiro - Deutsch Welle

BRASIL

Como é a preparação de diplomatas no Brasil?

Em meio à expectativa de que Bolsonaro nomeie filho como embaixador, milhares de brasileiros disputam vagas no curso para diplomatas do Instituto Rio Branco. Conhecimentos exigidos vão de idiomas a economia e história.
    
Eduardo Bolsonaro com boné que ganhou de apoiadores de Trump em Washington
Eduardo Bolsonaro com boné que ganhou de apoiadores de Trump em Washington
Em meio à expectativa de que a polêmica indicação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para o cargo de embaixador do Brasil em Washington seja oficializada, cerca de 6.400 pessoas prestaram no último domingo (08/09) a prova da primeira fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) de 2019, a concorrida seleção para o Curso de Formação de Diplomatas do Instituto Rio Branco.
anúncio do presidente Jair Bolsonaro de que pretende indicar o filho Eduardo para o posto diplomático, feito em julho, levantou dúvidas sobre quem pode ocupar tal cargo e se não seria necessário que esse titular tenha passado pelo rigoroso curso do Instituto Rio Branco.
Formado em Direito, Eduardo Bolsonaro foi escrivão da Polícia Federal e, desde 2015, é deputado federal pelo estado de São Paulo, tendo sido reeleito para um segundo mandato com votação recorde de 1,8 milhão de votos. Ele não cursou o Instituto Rio Branco, e sua única experiência política com assuntos externos brasileiros foi na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, na qual foi suplente na legislatura passada e que preside desde março.
Consultoria Legislativa do Senado classificou a indicação para o posto em Washington de nepotismo, e críticos consideram o currículo de Eduardo inadequado para o cargo de embaixador – chefe de uma embaixada e a principal autoridade brasileira no país em que está.
Acontece que, diferentemente de outras funções que um diplomata pode desempenhar, a de embaixador pode ser ocupada por alguém que pertença ou não ao corpo diplomático formado pelo Instituto Rio Branco. Cabe ao presidente da República indicar embaixadores, e qualquer cidadão pode ser nomeado. 
"O preenchimento do cargo de embaixador pode ser político, cabendo ao presidente a indicação, e ao Senado, a aprovação", explica Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Apesar de legal, são poucos os casos de indicações políticas à uma embaixada nas últimas décadas, ressalta Ribeiro, e aspirantes ao cargo continuam brigando por uma vaga no Instituto Rio Branco.
A seleção do CACD é considerada uma das mais difíceis e com a maior quantidade de conteúdo exigido entre os concursos públicos do país. "A média de tempo de estudos até ser aprovado no concurso é de três a seis anos, podendo chegar a sete ou oito tentativas. É uma preparação de longo curso", afirma o historiador Rodrigo Goyena Soares, professor de História de um dos principais cursos preparatórios para o concurso.
"A rigorosa seleção da prova é um dos fatores que garante o excelente quadro de profissionais que possui o Itamaraty. O CACD seleciona candidatos multidisciplinares e poliglotas", diz.
Com duração de três ou quatro semestres, o curso para diplomatas do Instituto Rio Branco é oferecido desde 1946. Em 2019, a concorrência bateu recorde: são 320 candidatos por vaga. No ano passado, eram 203. O aumento da concorrência é uma das consequências de uma redução no número de vagas: enquanto em 2017 foram oferecidas 30 vagas, em 2018 foram 26, e, neste ano, são 20.
"Compreensão da realidade de modo complexo"
Quando se formou em Direito, David Beltrão sonhava em ser diplomata. Em 2011, se mudou de Recife para São Paulo para fazer os cursinhos preparatórios para o CACD. Parou de trabalhar para se dedicar integralmente ao concurso e estudava dez horas por dia, todos os dias.
"O CACD exige compreensão da atualidade no Brasil e no mundo, assim como todo o conhecimento histórico do século 18 até os dias de hoje. A quantidade de informação sobre História do Brasil é absurda e a prova de inglês é uma das mais difíceis", diz.
A primeira de duas fases da prova conta com 73 questões objetivas de Português, Inglês, História do Brasil e Mundial, Política Internacional, Geografia, Economia, Direito e Direito Internacional Público. A segunda fase cobra as mesmas disciplinas, mas de forma discursiva, além dos idiomas francês e espanhol. Soares afirma que o grau de exigência do exame supera os níveis de graduação e pós-graduação.
"Em português, exige-se um grau de controle linguístico que beira o conhecimento de um Evanildo Bechara ou de um Celso Cunha, nossos principais gramáticos. Na língua inglesa, pede-se conhecimento nativo: o candidato aprovado poderia escrever um artigo na revista The Economist, por exemplo", explica o professor.
Em 2015, após cinco anos estudando para o Instituto Rio Branco, David decidiu voltar para Recife e seguir carreira acadêmica. "Desisti da carreira de diplomata porque o número de vagas diminuiu ao longo dos anos, e eu não podia mais me manter em São Paulo financeiramente." Atualmente, David é doutorando em Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco.
Apesar da desistência, o pernambucano não se arrepende de ter estudado para o CACD. "A prova oferece aos candidatos a compreensão da realidade de modo complexo. É um conteúdo fantástico e me ajudou muito na vida acadêmica", conta. 
"Uma das diplomacias mais respeitadas no mundo"   
A professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Ana Flávia Barros-Platiau afirma que o Brasil tem "uma das diplomacias mais respeitadas no mundo, fruto de uma formação intensiva e rigorosa ministrada pelo Instituto Rio Branco há mais de 70 anos".
Além da fluência em pelo menos três idiomas, o treinamento de um diplomata envolve conhecimento de relações internacionais, história, política, direito internacional, comércio, economia e funcionamento da cooperação internacional.
"Do mesmo modo, o profissional deve estar a par dos grandes temas da agenda internacional, como direitos humanos, meio ambiente, mudança do clima, sociedade da informação, requisitos sanitários e fitossanitários que afetam as exportações agrícolas e pecuárias, propriedade intelectual, questões de proteção de brasileiros no exterior etc.", completa Barros-Platiau.
O indicado deve estar apto a negociar assuntos de diversas áreas de interesse do Brasil junto ao governo do país em que reside. "Por isso, o embaixador tem de ser capaz de cultivar fontes no governo e junto à sociedade do país em que está", aponta a professora da UnB.
"Também deve ter bons contatos no Brasil, tanto com o governo quanto com a sociedade civil, além de ser capaz de compreender adequadamente os diferentes temas em jogo do interesse nacional."
A importância do posto em Washington
Segundo o coordenador do Laboratório de História Global e das Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da USP, Felipe Pereira Loureiro, das 139 embaixadas do Brasil no exterior, a mais importante é a de Washington. 
"Embaixadores brasileiros em Washington tiveram papel central nos rumos da história nacional", explica o professor.
A criação da primeira siderúrgica brasileira, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), por exemplo, foi viabilizada por meio de acordos entre o embaixador Carlos Martins Pereira e Souza e empréstimos do governo dos EUA, em 1946.
"Outros exemplos de embaixadores brasileiros em Washington de destaque incluem os que atuaram entre os anos 80 e meados da década de 90", aponta Loureiro. "Esses embaixadores tiveram um papel fundamental para o processo de renegociação da nossa dívida externa junto a bancos privados americanos, culminando na adesão do Brasil às diretrizes que viabilizariam o processo de contenção da inflação no país, por meio da implementação do Plano Real, em 1994."
Para o professor da USP, a história demonstra que além de ter bons contatos na política dos EUA, um embaixador em Washington precisa ter "sólido conhecimento sobre a sociedade americana e significativa capilaridade junto a setores sociais, econômicos e culturais do país".
Para que a indicação de Eduardo seja oficializada, o presidente Bolsonaro precisa enviar o nome do filho para o Senado, que vai decidir se o aprova ou não para o cargo de embaixador nos EUA. Em meados de agosto, o presidente chegou a admitir a possibilidade de rever a indicação do filho, para logo depois afirmar que não iria recuar.
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quinta-feira, 4 de julho de 2019

Politica externa brasileira se tornou altamente imprevisivel - Oliver Stuenkel (DW)

 "Com Bolsonaro, política externa se tornou uma caixa de surpresas"

Entrevista com Oliver Stuenkel por Fernando Caulyt

Deutsche Wellle, 1/07/2019


Em seis meses, governo Bolsonaro provocou ruptura na política externa, marcada por distanciamento do multilateralismo e imprevisibilidade. Mudança gerou preocupação na comunidade internacional, avalia cientista político.

Jair Bolsonaro completa seis meses na Presidência do Brasil nesta segunda-feira (01/07) e, até agora, sua política externa pode ser caracterizada pela maior ruptura vista na política externa brasileira nos últimos cem anos, avalia Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em entrevista à DW Brasil, Stuenkel destaca que o país abandonou uma postura voltada para o multilateralismo e passou a adotar uma política externa altamente imprevisível.

"Há uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China, Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade internacional", afirma.

Para o cientista político, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é "um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de fazer declarações absurdas e causar danos". "Parece-me bastante provável que o país continue passando vergonha com frequência nos próximos anos", comenta.

- DW Brasil: Como você avalia os seis primeiros meses de Bolsonaro em relação à política externa?
- Oliver Stuenkel: Nós vimos uma grande ruptura na política externa. Ela mudou em duas dimensões: o posicionamento externo do Brasil se alterou totalmente, o país deixou de enfatizar o multilateralismo como estratégia preferida da sua política externa e se alinhou mais a países que têm um profundo ceticismo quanto ao sistema multilateral. Assim, o Brasil faz uma rejeição mais ampla ao multilateralismo e tem posturas que colocam o país como parte do campo antiglobalista. Eu diria que é a mudança mais profunda na política externa em pelo menos cem anos.

A segunda grande mudança é que a política externa se tornou altamente imprevisível. Antes, havia uma previsibilidade sobre o comportamento brasileiro no palco internacional. E, agora, em função da briga constante entre três grupos [os militares, os "olavistas" e os tecnocratas], a política externa se tornou uma caixa de surpresas – e isso, no âmbito internacional, reduz muito a capacidade brasileira de assumir liderança e de influenciar outros países. Pouco indica que isso mudará ao longo dos próximos anos. Além da mudança de posicionamentos, há uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China, Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade internacional em relação ao papel e à estratégia brasileira.

- Mas o Brasil sempre se beneficiou do sistema multilateral.
- Toda a lógica da política externa brasileira se baseia na crença de que um sistema multilateral forte é benéfico para o Brasil, porque o multilateralismo, de certa maneira, ajuda a mitigar o impacto da geopolítica. É consenso também que o Brasil tem sido, ao longo das últimas décadas, o país que mais se beneficiou desta ordem multilateral, porque é uma nação que tem forte influência nestas instituições, que conhece muito bem suas regras e sabe interpretá-las para aumentar sua influência. E Bolsonaro iniciou um processo para combater justamente este sistema que beneficiou tanto o país, e este governo não apresentou ainda uma resposta crível às suas alegações de que o globalismo limita a autonomia do Brasil, apesar de Brasília ter uma grande capacidade de influenciar as regras do jogo.

- Quais são as consequências dessa falta de rumo na política externa para a região e a comunidade internacional?
- Fica evidente que é cada vez mais difícil contar com o Brasil, porque, como o posicionamento brasileiro não está totalmente claro e nunca se sabe qual grupo interno irá se impor, Brasília é chamada cada vez menos para iniciativas. Um exemplo recente é a lançada pela Alemanha e pela França em defesa do multilateralismo, à qual foram chamados países como Argentina, Austrália, Canadá e Coreia do Sul – quer dizer, potências médias que têm interesse em defender o multilateralismo. O Brasil não foi chamado, e isso é inédito. Brasília participará menos de novas iniciativas, porque até mesmo países antiglobalistas, como os EUA, têm dúvidas sobre a capacidade de Bolsonaro implementar políticas de maneira coerente no âmbito externo.

Os seis primeiros meses do governo foram caracterizados por declarações polêmicas – como a de que o nazismo foi de esquerda – e manobras para cumprir parcialmente promessas eleitorais, como a abertura de um escritório comercial em Jerusalém em vez da transferência da embaixada brasileira para a cidade.

Essas afirmações mostram que, além do radicalismo do governo, há também claramente uma falta de preparo. Isso aumenta a frequência de gafes e erros crassos na política externa, como viajar para um país e articular uma preferência clara em relação à política interna dessas nações, como foi o caso da Argentina e EUA. Não há problema nenhum em ter uma preferência, mas articular de uma maneira tão explícita gera um problema quando esse seu lado preferido perde a próxima eleição. E isso afeta negativamente a relação bilateral. Nós vemos uma acumulação de erros desnecessários que não são posicionamentos que geram algum valor para o Brasil. A solução seria colocar um chanceler experiente que possa controlar o presidente, mas acho pouco provável que isso aconteça. Então me parece bastante provável que o país continue passando vergonha com frequência nos próximos anos.

- Como você avalia a atuação do chanceler Ernesto Araújo?
- Ele simboliza a ruptura radical que muitos eleitores desejaram ao votar em Bolsonaro. O chanceler articula essa "mudança de verdade" com uma postura que gera muita tensão interna e dificuldades de o Brasil fazer cooperação com outros países. A grande maioria do Itamaraty discorda dos posicionamentos dele, e isso afeta gravemente a reputação do país no exterior. Ele tem concorrentes dentro do próprio grupo político [dos antiglobalistas], e os interlocutores dele têm muitas dúvidas sobre o poder que ele tem de verdade, o que é péssimo para um chanceler. Ele é um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de fazer declarações absurdas e causar danos.

- Como você vê as alianças de Bolsonaro com ultranacionalistas como Donald Trump e Viktor Orbán, e a postura do brasileiro de contrariar parceiros de longa data no Oriente Médio ao se aliar com Israel?
-
De certa maneira, essas alianças deixam muito claro para onde esse governo quer ir e facilitam o entendimento da comunidade internacional sobre quais são as intenções de Brasília. Porém, isso causa problemas para o interesse nacional brasileiro, porque esses países, do ponto de vista econômico, agregam muito pouco: o valor do comércio do país com Israel, Polônia, Hungria e Itália é relativamente pequeno. Por isso que existe aí uma preocupação profunda entre representantes da economia brasileira sobre o possível impacto negativo que essas mudanças podem ter para a economia do país.

- Berlim e Brasília têm uma parceria estratégica desde 2002, mas ela esfriou principalmente após as turbulências do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Antes da reunião do G20 da semana passada, a chanceler federal alemã, Angela Merkel, e Bolsonaro trocaram farpas. Como você vê o futuro da relação entre os dois países?
- O espaço para a cooperação bilateral diminuiu bastante, porque em várias áreas importantes, como mudança climática e multilateralismo, o Brasil mudou radicalmente de direção. O ministro do Exterior alemão, Heiko Maas, esteve neste ano no país para avaliar como é possível continuar com essa parceria estratégica, mas certamente será necessário adaptá-la às novas circunstâncias e ser muito mais modesto a possíveis resultados.

- Como você avalia o alinhamento do Brasil com os EUA? Até agora, quais foram os ganhos para Brasília?
- Houve ganhos pontuais, ou seja, o Brasil faz parte agora dos países aliados fora da Otan, o que facilita a cooperação militar. Mas com as duas questões fundamentais que Washington quer de Brasília, que são o apoio para resolver a crise na Venezuela e a ajuda para limitar a influência chinesa na América Latina, o Brasil não conseguirá contribuir. Em função disso, parece-me que a relação dificilmente se aprofundará da maneira que o governo brasileiro espera.

- Como você vê o futuro das relações do Brasil com a China e com a Europa?
- No momento há algo interessante acontecendo: uma parte do governo quer se aproximar dos EUA e, a outra, manter os laços com a China. Em breve, o Brasil terá que tomar decisões muito importantes que dificultam uma estratégia de ficar bem com os dois lados: a primeira é se Brasília fará parte ou não da iniciativa "One Belt One Road". Washington quer que o Brasil não participe; já a China, obviamente, tem a expectativa de que isso ocorra. A segunda questão é em relação ao 5G: os EUA pressionam para que o Brasil possa banir a Huawei, e grande parte dos técnicos quer que a empresa participe da construção da rede brasileira.

Em relação à União Europeia, a relação vai se aprofundar devido ao fechamento do acordo de livre-comércio com o Mercosul. Mas sempre há a ressalva de que os líderes europeus têm plena consciência da hostilidade do governo brasileiro em relação ao projeto europeu, e isso, fora o âmbito comercial, vai limitar qualquer tipo de cooperação.

- O governo Bolsonaro reduziu o papel político do país no Mercosul e na crise da Venezuela. Quais são as consequências de Brasília com menos influência regional para o futuro da região?
- O Brasil não tem uma estratégia clara nem para o Mercosul nem para a América do Sul. Em função disso, a região não sabe como responder à postura brasileira, e há um vácuo de liderança na América do Sul. Isso é agravado pelo fato de o Brasil ter que encarar muitos desafios internos e ter muita dificuldade de governar. Isso significa que nenhum projeto regional irá avançar nos próximos anos, e a região continuará à deriva, sem um plano brasileiro crível para resolver a crise da Venezuela ou, pelo menos, exercer uma influência positiva naquele país.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Todos os filhos do presidente - Deutsche Welle

Análise: Todos os filhos do presidente

Deutsche Welle, 19 FEV 2019 

Interferência, escândalos e "fritura". Como a prole de Jair Bolsonaro vem exercendo influência e transformando o governo em uma operação familiar.O processo de desgaste e a saída barulhenta do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, explicitou mais uma vez o que já vem se tornando uma marca do governo Bolsonaro: a influência e a disposição dos filhos mais velhos do presidente em causar instabilidade no governo. 
Controvérsias envolvendo parentes de presidentes não são exatamente novidade na recente história republicana brasileira. A ex-primeira-dama Rosane Collor nomeou parentes e se viu alvo de suspeitas de corrupção envolvendo a antiga Legião Brasileira de Assistência (LBA). Um dos filhos de Lula enriqueceu de maneira suspeita durante o governo do pai. Fernando Henrique Cardoso foi acusado de nepotismo quando nomeou o genro para a Agência Nacional do Petróleo.
Mas nunca desde a redemocratização houve registro de parentes de um presidente exercendo tanta influência e ganhando tanta visibilidade em assuntos de governo. Nem mesmo os filhos de José Sarney, chefe de um clã político notório, desempenharam com tanta desenvoltura no governo do pai um papel tão barulhento como "01", "02", "03" - a forma como Bolsonaro se refere aos filhos: o senador Flávio, o vereador Carlos e o deputado Eduardo.
Oficialmente, nenhum dos filhos tem cargo na administração federal, mas isso não vem servindo de empecilho para que eles assumam protagonismo, seja na condução da diplomacia brasileira, da articulação política, da comunicação do governo ou da "fritura de ministros" como Bebianno. A preponderância da prole tem despertado inquietação entre aliados e membros do governo, entre eles a ala militar. 
Por enquanto, Jair Bolsonaro não demonstrou disposição para frear ou desautorizar os filhos de maneira sistemática. Pelo contrário. No caso da demissão de Bebianno, deixou claro que está disposto a agir em concerto com a ambição dos filhos.
Após Carlos ter chamado o agora ex-ministro e rival de mentiroso nas redes sociais, o presidente reforçou os ataques até que a situação se tornasse insustentável para Bebianno. Apenas em algumas ocasiões, Bolsonaro se limitou a dar reprimendas pontuais nos filhos, a quem se refere como "garotos".
Eduardo, o chanceler informal 
Em diferentes momentos desde a metade do ano passado, quando Bolsonaro se projetou como o favorito para vencer o pleito presidencial, os filhos se revezaram na eclosão de episódios que provocaram instabilidade para a candidatura e para o governo do pai.
Em outubro, na reta final da campanha, foi revelado um vídeo em que Eduardo, o "03", afirmava que seria fácil fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo ele, bastava "um soldado e um cabo" para a tarefa, avaliando ainda que o fechamento não causaria comoção pública. 
Logo após a vitória do pai, Eduardo também passou a posar como uma espécie de chanceler informal do Planalto e promotor da extrema direita pelo mundo. Em novembro, durante viagem aos Estados Unidos, se encontrou com Jared Kushner, genro do presidente americano, e se deixou fotografar com um boné em que se lia "Trump 2020".
Ele também tem feito elogios a líderes internacionais como o húngaro Viktor Orbán, se encontrado com opositores venezuelanos e dialogado pelo Twitter com outros políticos de direita estrangeiros, como o italiano Matteo Salvini.
Vem ainda promovendo com entusiasmo propostas que ainda dividem setores do governo, como a mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Também foi o único parlamentar a acompanhar Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
O próprio processo de escolha de Ernesto Araújo para chefiar o Itamaraty teve influência decisiva de Eduardo, e a nomeação foi encarada como um trunfo pessoal.
Já na política interna, Eduardo tentou influenciar a eleição do novo presidente da Câmara. Algo normal para um deputado federal, mas, em uma mensagem de Whatsapp que vazou para a imprensa, Eduardo disse que estava agindo em nome do pai. Em novembro, afirmou que o governo "talvez não consiga" votos para aprovar a reforma da Previdência, gerando apreensão entre investidores.
Flávio, o encrencado
Se Eduardo havia atingido a campanha com suas declarações sobre o STF, o primogênito do presidente, o senador Flávio, levou tensão para a equipe de transição e, desde janeiro, para o governo.
No início de dezembro, a imprensa revelou a partir de uma investigação do Ministério Público que um assessor de Flávio e amigo pessoal de Bolsonaro, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, movimentou 1,2 milhão de reais de maneira suspeita enquanto o filho do presidente cumpria mandato como deputado estadual.
Parte desse dinheiro tinha como origem depósitos feitos por outros funcionários, levantando a suspeita de "rachadinha" ou "pedágio", a prática de entregar parte dos salários a um deputado. Em janeiro, foi a vez de a imprensa revelar que os valores teriam chegado a 7 milhões de reais entre 2015 e 2017. Acuado, Flávio decidiu recorrer ao STF para frear as investigações, apelando para o foro privilegiado, o que contraria o discurso moralista da família contrário à persistência da prerrogativa.
Flávio trouxe a crise para ainda mais perto do Planalto. Ainda em janeiro, uma operação da polícia contra milicianos do Rio de Janeiro mostrou que Flávio havia empregado a mãe e a mulher de um ex-PM suspeito de integrar um grupo de extermínio investigado pela morte da vereadora Marielle Franco. O episódio colocou em nova perspectiva discursos elogiosos e homenagens prestadas por Flávio a milicianos em seus tempos como deputado. Ele afirma que as denúncias são fruto de "perseguição política".
Diante dos escândalos, o pai adotou posturas contraditórias. Primeiro, disse que, se Flávio errou, "terá de pagar". Depois, afirmou: "Não é justo usar um garoto para me atingir".
Carlos, o "pit bull"
Nas últimas semanas, Carlos, o "02", passou a se destacar como o filho mais barulhento. Do trio, é o que mantém mais proximidade com o pai. Nos últimos dez anos, foi responsável pelas publicações de Bolsonaro nas redes sociais. Mesmo após a vitória, o atual vereador do Rio continuou a controlar a conta de Bolsonaro no Twitter, assumindo também um papel de porta-voz oculto do governo.
Em sua própria conta, Carlos também se notabiliza pelo tom virulento. Levantamento do jornal O Globo em 500 mensagens de Carlos mostrou que mais de 70% do que ele escreve são ataques. O próprio Bolsonaro já chamou o filho de "pit bull", como forma de elogio.
Os atritos entre Carlos e Gustavo Bebianno começaram ainda durante as eleições de 2018, quando o ex-ministro e então presidente interino do PSL se tornou o homem-forte da então estrutura amadora da campanha de Bolsonaro.
A situação piorou na fase de transição. À época, Bebianno afirmou em entrevistas que Carlos estava sendo cotado para assumir a função de secretário de Comunicação. As falas foram encaradas por Carlos e seus irmãos como forma de "fritar" seu nome antes que fosse estudada a viabilidade da nomeação. Furioso, Carlos abandonou a equipe em novembro.
Após o episódio, ele comentou no Twitter que "caráter não se negocia". No mesmo mês, escreveu: "A morte de Jair Bolsonaro não interessa somente aos inimigos declarados, mas também aos que estão muito perto", no que foi interpretado como um recado para Bebianno ou para o vice-presidente, Hamilton Mourão.
Bebianno também pressionou para que a comunicação do Planalto ficasse na sua pasta, a Secretaria-Geral da Presidência. Um esboço inicial das funções do ministério chegou a contemplar essa previsão, mas no final a comunicação ficou mesmo com o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos dos Santos Cruz. A mudança foi atribuída à influência de Carlos.
O prestígio do vereador com o pai ficou aparente na posse, quando "02" acompanhou o presidente e a primeira-dama no desfile em carro aberto. A imprensa brasileira também relatou que Carlos já participou de reuniões de governo e teve permissão para ficar com o celular durante um encontro de ministros, enquanto os titulares das pastas tiveram que entregar seus aparelhos na porta.
Segundo o jornal Estado de S. Paulo, Carlos também destacou um primo, Leonardo Rodrigues de Jesus, como seus "olhos e ouvidos" no Planalto. Mesmo sem cargo no palácio, Leonardo já registrou presença 58 vezes no prédio e circula livremente por ambientes restritos.
Quando Bebianno se viu envolvido em um escândalo de direcionamento de verbas do Fundo Partidário para candidaturas laranjas no PSL, Carlos deu o troco e chamou o ministro de mentiroso no Twitter, precipitando sua saída.
Nas redes, militantes de direita têm propagandeado a demissão como parte de uma espécie de faxina ética e que Bebianno seria um "traidor", desconsiderando a disputa de poder entre Carlos e Bebianno. Ignoram ainda que outro ministro, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, também é suspeito de direcionar dinheiro para candidaturas laranjas.
Segundo a imprensa brasileira, vários membros do governo, em especial da ala militar, vêm pressionando Bolsonaro para que o filho deixe de controlar as redes sociais do pai e volte a cumprir seu mandato no Rio. O mesmo ocorre com vários parlamentares do PSL, que ficaram espantados com o novo padrão de "fritura" ministerial estabelecido por Carlos e pelo presidente.
Na semana passada, Hamilton Mourão afirmou "que os filhos são um problema de cada família". "Tenho certeza que o presidente, em momento aprazado e correto, vai botar ordem na rapaziada dele", disse o vice-presidente. Enquanto isso não ocorre, o país espera o próximo capítulo da novela familiar do governo.
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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Marighella: a crítica alemã desbanca o filme - Deutsche Welle

Crítica alemã aponta mitificação em "Marighella"

"Só na América Latina a crença na luta armada parece intocada", afirma jornal berlinense "Tagesspiegel". Para o "TAZ", filme ignora contradições da esquerda e quer criar um monumento para Carlos Marighella.
Deutsche Welle, 17/02/2019
   
Marighella, de Wagner Moura
Cena de "Marighella", de Wagner Moura
Der Tagesspiegel – Carlos Marighella, o bom terrorista, 15/02/2019
A luta revolucionária, como conceito, sofreu muito nos últimos anos. Não só por causa do colapso do império soviético, antes disso o comunismo já havia dado cabo de todos os revolucionários. As ilhas da resistência ficaram cada vez menores: Cuba, Vietnã. No fim, alguns países isolados do mundo árabe. [...]
Só na América Latina e – depois da eleição do populista de direita Jair Bolsonaro para presidente – em especial no Brasil, a crença na pertinência da luta armada parece intocada. Um nome sempre a simbolizou: Carlos Marighella, precursor intelectual do conceito de guerrilha urbana. [...]
O herói de [Wagner] Moura é uma figura trágica. Por mais convincente que ele pareça ser no seu sentimento de injustiça – e a junta militar que tomou o poder em 1964 lhe dá motivos suficientes para isso – nenhum caminho conduz da violência para a benevolência das massas. A não ser que se esteja morto e transformado em lenda. E é exatamente essa mitificação que o filme Marighella pretende. [...]
Moura potencializa a imagem de outsider nobre com o fato de seu protagonista ser o único negro do elenco, e isso apesar de Carlos Marighella, com suas raízes indígenas e africanas, não exatamente se diferenciar de seus compatriotas pela cor da pele. Ele era um mestiço, como 38% dos brasileiros. Apresentá-lo como negro – e transformá-lo em alvo com uma frase como "matar um negro significa matar um vermelho" – é sair do conflito político e transformá-lo num conflito racista. E de uma maneira que todos assim o percebem.
RBB – Epopeia cansativa, 16/02/2019
"Não somos terroristas", grita Marighella aos reféns de um assalto a banco. "Somos revolucionários!" Declarações como essa há um pouco demais no filme. O herói tende a monólogos impulsivos e discussões que, apesar da determinação com que são feitas, soam estranhamente sem vida. Dúvida e ambiguidades não estão previstas em Marighella. Isso vale também, é claro, para o protagonista e seus aliados – e sobretudo para o grande antagonista, o investigador Lúcio.
TAZ – A guerrilha sempre tem razão, 15/02/2019
Wagner Moura quer, inconfundivelmente, criar um monumento para Marighella. E Marighella certamente foi uma personalidade carismática. Só que a carência de domínio e um distanciamento em relação a material histórico e pessoa levaram a uma epopeia. Este filme não conhece contradições, por exemplo não tematiza as teorias imperialistas e capitalistas unidimensionais da esquerda de então. Ele prefere sobretudo desabonar a direita.
O sistema de segurança brasileiro de então, de fato em parte fascista, é extensivamente exibido na figura do agente assassino Lúcio, e a reconstrução de cenas de tortura ultrapassa os limites do cinematicamente suportável. A violência institucional obtusa e de fato existente não precisa ser exibida de forma tão naturalista e duradoura como foi feito neste filme.
A estética "Marighella" de Wagner Moura é assim involuntariamente reveladora. Ela revela sobretudo um corte significativo na mentalidade do populismo de esquerda na América Latina e como este, hoje, ajeita a história a seu gosto.
Penetrante e grotesca é a representação da influência do governo americano nos acontecimentos na América Latina. Até hoje ela serve ao populismo de esquerda local como desculpa para o próprio fracasso.
AS/ots
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sábado, 10 de novembro de 2012

O fracasso da ajuda ao desenvolvimento, Deutsche Welle


Documentário alemão reflete sobre erros da ajuda ao desenvolvimento

Jochen Kürten
Deutsche Welle, 10/11/2012
Exibido no 20° Festival de Cinema de Hamburgo, o filme “Doce veneno – Ajuda como negócio” registra as consequências da ajuda ao desenvolvimento equivocada na África, no decorrer das últimas décadas.
Süsses Gift– Hilfe als Geschäft (Doce veneno – Ajuda como negócio) é um documentário que deverá desencadear muitas reações adversas na Alemanha, pois ataca diretamente a ajuda estatal ao desenvolvimento. E, para tal, não propõe teses críticas, nem levanta polêmicas contra a inflação desse tipo de iniciativa, mas simplesmente deixa falarem as pessoas in loco. O resultado é uma maior proximidade e verosimilhança.
Peter Heller trabalha há 40 anos com documentários. Na África, já rodou 30 filmes sobre os mais diversos assuntos, do colonialismo aos problemas sociais do continente. Em seus filmes, porém, o diretor sempre manteve o olhar também voltado para seu país, explorando a relação dos alemães com a África.
50 anos de independência
Essa experiência anterior do diretor é um dos trunfos de Doce veneno. Heller, que já esteve em função de seus outros filmes no Quênia, Tanzânia e Mali, pôde recorrer a muito material de seus trabalhos anteriores. Sendo assim, Doce veneno se tornou uma espécie de documentação de longo prazo, que trata do assunto “ajuda ao desenvolvimento” num contexto histórico mais amplo.
Mas o que inspirou o diretor a retomar o tema exatamente agora? “Há 50 anos, muitos países africanos se tornaram independentes”, contou o diretor depois da estreia de seu filme em Hamburgo. “Sempre me incomodaram a dependência e a letargia em que as pessoas caíam, devido á ajuda ao desenvolvimento.”
Mas o que há de errado na ajuda ao desenvolvimento? O que há de errado com a meta de ajudar às pessoas in loco? Heller esclarece não ter nada contra, por exemplo, a ajuda emergencial em caso de catástrofes naturais, embora também aponte irregularidades nestas doações internacionais. “Muitas empresas na UE, nos EUA e no Canadá fazem bons negócios com isso”, afirma. Em Doce veneno, contudo, Peter Heller aborda sobretudo a ajuda de longo prazo concedida pelos países ocidentais, com base em três exemplos.
No Lago Turkana, norte do Quênia, o diretor se deparou com um caso evidente de ajuda ao desenvolvimento mal conduzida. Lá organizações norueguesas tentam há anos auxiliar as vítimas da seca, através de um programa de relocação. Os nômades turkana foram removidos do interior seco para a região do lago e “treinados” para serem pescadores.
Os noruegueses investiram muito dinheiro no projeto e mandaram construir enormes fábricas altamente tecnológicas para a indústria da pesca. “Eles tinham boas intenções”, ressalta Heller, “e queriam inserir os turkana no mercado internacional, muito antes da globalização”. Só que deu tudo errado.
Vitória do calor africano
A fábrica hipermoderna era grande demais, e não adaptada às necessidades da população local. Além disso, não havia energia elétrica suficiente para manter os frigoríficos gigantescos em constante funcionamento. Depois de apenas seis semanas a fábrica foi fechada.
Outro erro cometido pelos mentores noruegueses da ajuda ao desenvolvimento foi subestimar a mentalidade, os costumes e as tradições dos nativos. Pois tão logo os homens e mulheres iam ganhando um pouco de dinheiro com a pesca, investiam o que tinham em gado e retomavam seus hábitos nômades. Três anos mais tarde, os noruegueses também abandonaram o local.
Como mostra o filme de maneira impressionante, hoje os habitantes tornaram-se permanentemente dependentes da ajuda vinda dos países ocidentais. “Quando os noruegueses brancos vão voltar e trazer para cá o progresso?”, pergunta um ancião camponês no filme. A fábrica, hoje uma ruína enorme e monstruosa, é usada como depósito para peixe seco. Apenas recentemente os investidores voltaram a demonstrar interesse pelas instalações.
Fome “made in Germany”
Outro exemplo drástico foi pesquisado por Peter Heller no Mali. Décadas atrás, empresas alemãs lá construíram uma represa enorme, a fim de garantir o fornecimento de água para a agricultura. As intenções eram as melhoras, mas também aqui o tiro saiu pela culatra: 34 povoados foram inundados e muitas pessoas foram desalojadas para regiões menos férteis.
O projeto foi feito para durar de 10 a 15 anos, mas acabou sendo interrompido depois de três anos. Na Alemanha, ocorreu uma mudança de governo e os novos políticos no poder tinham outras prioridades. Hoje, a maioria dos homens deixou a região para migrar para a Europa, enquanto mulheres e crianças passam fome.
Outro projeto documentado por Doce veneno é uma plantação de algodão na Tanzânia, no fim dos anos 70. Heller presenciou quando tudo começou. “Era um projeto-modelo com tratores alemães e bombas de aplicação de agrotóxicos. Falava-se de uma ‘revolução verde’ na época”, recorda. “Revolução verde”, no caso, tinha um significado muito diferente do que tem hoje. Naquele momento, ainda não se falava em proteção ambiental.
“Diziam para simplesmente colocarmos um lenço de papel duplo sobre o nariz, enquanto os africanos espalhavam a substância tóxica”, lembra o diretor. Mas já nos anos 80, o projeto começou a decair. E nos anos 90, a queda nos preços internacionais do algodão puseram um fim à história. A ideia era produzir em grande escala para o mercado mundial, desde o início – um erro fatal.
Pelo fim da ajuda estatal ao desenvolvimento
No filme, Heller não defende de maneira explícita o fim da ajuda estatal ao desenvolvimento, deixando que isso seja, antes, dito através dos comentários e posições tomadas pelos africanos in loco. Em entrevista à Deutsche Welle, no em tanto, ele citou diversos argumentos contra o procedimento.
A ajuda ao desenvolvimento é, em primeira linha, um negócio para empresas ocidentais; há muito dinheiro envolvido; muitos grandes projetos de ajuda ao desenvolvimento não são ajustados às condições locais, argumenta Heller. Dever-se-ia investir recursos sobretudo no setor agrícola; o certo seria plantar e vender alimentos no local, em vez de importá-los dos países ocidentais; e é preciso apoiar as diversas pequenas ONGs, que têm experiência prática nesse campo.
Por fim, o filme de Heller questiona por que os estimados 600 bilhões de dólares de ajuda ao desenvolvimento investidos nos últimos 50 anos não contribuíram para um progresso visível das regiões em questão. As respostas são dadas por encarregados de ajuda ao desenvolvimento, intelectuais, ativistas políticos e comerciantes.
“A ajuda ao desenvolvimento cria uma espécie de letargia”, diz um jornalista africano, que considera o auxílio internacional nocivo e muito perigoso. Segundo ele, a ajuda destrói toda motivação, por vir de fora e não incentivar o esforço próprio. Um exportador africano de algodão conclui: “Cinquenta anos depois da independência dos países africanos, chegou a hora de assumirmos a responsabilidade, e não só esperar até que a ajuda chegue”.