Alca e Mercosul: dois processos paralelos, não divergentes
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
Questão colocada:
“Em retrospectiva, o Brasil deveria ter escolhido a Alca em detrimento do Mercosul?”
Meus comentários:
Desde o início da ONU e de suas várias agências, o mundo do comércio exterior deixou de ser baseado em acordos bilaterais, de país a país, como existiam até a Segunda Guerra Mundial, para passar a ter um sistema multilateral de comércio, ou seja, um acordo geral sobre tarifas aduaneiras e comércio, que regula de maneira uniforme, regras e princípios de um regime aplicável a todos os países, com poucas exceções. As cláusulas básicas do sistema multilateral de comércio são: princípio da nação-mais-favorecida (ou seja, todo mundo é tratado de igual forma); tratamento nacional (ou seja, desde que um produto é importado, e paga tarifa, ele dever ser tratado como se fosse produção nacional); não discriminação (ou seja, nenhum país é tratado de uma forma especial, mas todos recebem o mesmo tratamento, para vantagens ou restrições); reciprocidade (se espera que quem receba um favor, sob a forma de redução de tarifas, por exemplo, deveria fazer alguma concessão a quem fez a oferta).
Dentre as exceções ao princípio da nação-mais favorecida encontra-se precisamente a negociação de acordos de livre comércio ou de união aduaneira entre duas ou mais partes, com o que se viola essa cláusula, justamente, pois apenas as partes ao acordo vão se beneficiar dessa concessão, o que coloca todos os demais em desvantagem relativa. Essa exceção atinge as diferentes formas de acordos comerciais entre os países, numa escala crescente de compromissos, com obrigações e vantagens cada vez mais sofisticados. Uma representação desse esquema evolutivo, pode compreender a seguinte gradação da integração:
1) Preferências Tarifárias (PT): os países negociam redução de tarifas sobre apenas alguns produtos; é a forma mais simples de derrogação ao princípio fundamental do Gatt; e não estava previsto no formato original do Artigo 24 do Gatt.
2) Zona de livre comércio (ZLC): é quando os países reduzem todas as tarifas e medidas não tarifas sobre todos os produtos, ou seja, não existem mais restrições ao comércio em qualquer setor; mas vale apenas para o comércio entre as partes.
3) União Aduaneira (UA): quando os países, além de estabelecerem uma zona de livre comércio entre eles, dão um passo além, e estabelecem uma política comercial comum válida para quaisquer outros países; na prática, significa que não podem mais fazer acordos de livre comércio, ou qualquer outro, de forma individual, e só podem fazê-lo de maneira conjunta e uniforme.
4) Mercado Comum (MC): trata-se de um passo adiante na integração, pois além da ZLC e da UZ, os países consentem em eliminar quaisquer tipos de barreiras ao comércio de bens e serviços, mais movimentos de capitais e fluxos migratórios, ou seja, todos os fatores de produção estão envolvidos nesse formato.
5) União Monetária (UM): com todos os formatos anteriores aplicados de forma totalmente livre entre os membros do acordo, eles decidem também eliminar suas moedas nacionais, e, portanto, o câmbio e a conversibilidade, e adotar uma moeda comum entre eles, que também pode ser única. É o caso do euro, que no entanto não se aplica a todos os países membros da União Europeia, mas apenas aos que decidiram largar a sua moeda nacional para transferir esse poder para uma entidade comum, geralmente supranacional.
Temos diferentes exemplos de cada um desses tipos de integração, desde os mais simples, que são geralmente usados por países em desenvolvimento que estão na primeira etapa do processo integracionista, até a União Europeia, que já passou por todas elas, possui um moeda comum, embora não única, entre aqueles membros que resolveram abandonar suas moedas nacionais e discutem inclusive constituir uma federação, ou seja, possuir poderes comuns entre eles e até instituições compartilhadas, ou seja, na justiça, defesa e relações exteriores (o que também existe, embora de forma mais limitada entre os membros da UE. No meio temos, dezenas, centenas de acordos de livre comércio que existem entre os mais diversos países, como é o caso do EFTA, os quatro países que não foram adiante na integração europeia: Noruega, Suíça, Islândia e Lietchenstein, sendo que o líder do grupo, até 1972, era a Grã-Bretanha. Mas também temos algumas uniões aduaneiras, o que é o caso do Mercosul, criado em 1991, mas que não é o do NAFTA, o acordo de livre comércio da América do Norte, que passou por diversas mudanças recentemente.
Mas era também o caso do projeto americano da Alca, proposto pelo presidente Clinton, e que foi negociado durante quase dez anos, entre quase todos os países do hemisfério americano (menos Cuba), mas que acabou não sendo aprovado e terminou sendo abandonado. Pois bem, o que podemos dizer, portanto, é que não existe contradição entre o Mercosul, que é um projeto de integração de 1991, mais profundo, entre os vizinhos do Cone Sul da América do Sul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – e o projeto americano da Alca, área de livre comércio das Américas, de 1994, e que nunca chegou a existir. Mas o Mercosul poderia, sim, como bloco, ter pertencido a uma Alca, se esta viesse a existir, o que não foi o caso, pela simples razão de que é possível a uma ZLC ter diferentes parceiros, sem qualquer exclusão, ao passo que uma UA exige exclusividade de tratamento entre os membros (ou seja, uniões aduaneiras requerem que todos tenham a mesma política comercial).
A razão é simples: o Mercosul surgiu antes, e resolveu saltar uma etapa do processo integracionista, passando logo para a UA, uma escala antes do MC e uma depois da ZLC, sendo que o Mercosul, conjuntamente, pode negociar acordos de liberalização comercial com muitos outros países, ou até com blocos, como é o caso do acordo entre a União Europeia e o bloco sul-americano, assinado em junho de 2019, mas que ainda não entrou em vigor, e não se sabe quando entrará. Já a Alca, foi apenas um projeto, negociado, durante dez anos, mas que não chegou a ser concluído, por divergências entre os negociadores. Assim, teoricamente, o Mercosul poderia continuar existindo como bloco aduaneiro, fazendo parte de uma ZLC americana, ou hemisférica, o que entretanto não foi o caso, por razões que podem ser examinadas.
Na prática, não ocorre totalmente de maneira uniforma e linear entre os diversos tipos de integração econômica, como pode ser demonstrado pela imensa variedade de esquemas existentes no mundo. Recomenda-se uma visita à página da Organização Mundial do Comércio (www.wto.org), para examinar mais de perto essa questão, que deve ser encarada como expressão os diferentes modelos de integração que os países buscam, em função de suas preferências regionais ou de alianças políticas entre eles.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3894: 21 de setembro de 2021