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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O Milei não é nem o Bolsonaro argentino nem ultradireitista’, diz Helio Beltrão (Estadão)

 O Milei não é nem o Bolsonaro argentino nem ultradireitista’, diz Helio Beltrão 


Para o fundador do Instituto Mises Brasil e um dos principais pregadores das ideias libertárias no País, é ‘surpreendente e excitante’ a possibilidade real de o candidato à presidência da Argentina se tornar o primeiro presidente anarcocapitalista do mundo 

 O fundador e presidente do Instituto Mises Brasil, Helio Beltrão, é um dos principais pregadores das ideias libertárias no País. Formado em engenharia elétrica pela PUC do Rio de Janeiro, com MBA em finanças pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Beltrão, de 56 anos, é um fiel seguidor do pensamento do economista Ludwig von Mises (1881-1973), um dos expoentes da chamada Escola Austríaca, que defende o ultraliberalismo na economia, centrado no poder soberano do mercado na formação dos preços de produtos e serviços. Nesta entrevista ao Estadão, Beltrão analisa a real possibilidade de o economista Javier Milei, candidato do partido Liberdade Avança à presidência da Argentina e também entusiasta das ideias da Escola Austríaca, vencer as eleições no país, cujo primeiro turno ocorre neste domingo. “Para mim, é algo absolutamente surpreendente e excitante que an Argentina tenha um candidato anarcocapitalista como favorito nas eleições”, diz. 

 Ele fala também sobre as principais propostas econômicas e de costumes de Milei, a quem conheceu de passagem num evento realizado na Argentina em meados da década passada, e comenta os rótulos políticos que lhe são atribuídos no Brasil, como “Bolsonaro argentino”, “ultradireitista”, “ultraconservador”, “extrema direita” e “populista”. “O Milei não é nada disso”, afirma. Qualquer pessoa que conhece um pouco de libertarianismo e anarcocapitalismo sabe que não tem nada a ver com ultradireita Como o sr. vê a ascensão de um candidato anarcocapitalista, como o Javier Milei, na Argentina e a possibilidade de ele chegar ao segundo turno das eleições e eventualmente se tornar o próximo presidente do país? Para mim, é algo absolutamente surpreendente e excitante que an Argentina tenha um candidato anarcocapitalista, que defende as ideias da Escola Austríaca de Economia, como favorito nas eleições. Eu não esperava que já houvesse viabilidade política para que um libertário como o Milei – que vai até o extremo na ideia de que é o mercado privado que tem de dar conta de todos os serviços, de toda a governança da sociedade – pudesse disputar as eleições com reais condições de sair vencedor. 

Se ele ganhar, será o primeiro presidente anarcocapitalista da história. Isso para mim será inacreditável. O que explica, em sua opinião, essa receptividade às ideias libertárias defendidas pelo Milei na Argentina? Eu atribuo isso ao caos econômico, ao caos inflacionário argentino. Pela primeira vez na história, os níveis de pobreza na Argentina estão maiores do que os do Brasil. A pobreza na Argentina já atinge mais de 40% da população e o nível de pobreza absoluta está acima dos 10%. No Brasil, a pobreza total atinge cerca de 30% da população e a pobreza absoluta está em torno de 8%. Hoje, an Argentina, que tinha o dobro da renda per capita do Brasil até pouco tempo atrás e já chegou a ter muito mais do que isso, está numa situação dramática. Houve um colapso do poder aquisitivo, da renda, do nível de emprego. 

O país quebrou e teve de recorrer novamente ao FMI (Fundo Monetário Internacional). Foi o oitavo ou nono calote da Argentina na história. Acredito que tudo isso convenceu a população de que eles precisam de soluções novas. Eles viram que não dá mais para seguir com os kirchneristas, os peronistas. Até o (Mauricio) Macri (ex-presidente da Argentina), que prometeu ser um pouco mais liberal, mas não foi, deu com os burros n’água. E quem é o novo? É o Milei. Então, eles resolveram apoiá-lo. Não sei se é tanto pela sua visão doutrinária, mas pela percepção de que ele apresenta uma solução realista para an Argentina. Agora, desde que o Milei venceu as primárias, em agosto, ele tem sido chamado de tudo aqui no Brasil: “Bolsonaro argentino”, “ultradireitista”, “ultraconservador”, “extrema direita”, “populista”. 

Como o sr. analisa isso? Até que ponto esses rótulos têm mesmo a ver com as ideias e as propostas que ele defende? Primeiro, deixe eu pegar o mais chocante, que é chamar o Milei de ultradireitista. Quando começaram a falar o nome dele na mídia, eu estava no ar na CNN e disse: “Pode parar. Ultradireitista nem a pau”. Aí tentei explicar isso, na medida em que eu podia. Acredito que deu certo, porque de repente as pessoas começaram a falar que ele é anarcocapitalista, o que é surpreendente para mim aqui no Brasil, ou ultraliberal, que é mais justo. Qualquer pessoa que conhece um pouco de liberalismo, libertarianismo e anarcocapitalismo sabe que não tem nada a ver com ultradireita.

 O ultradireitista defende o nacional-desenvolvimentismo, com forte interferência do Estado na economia, e neste aspecto é muito parecido com o que a gente vê a esquerda defender no Brasil. O ultradireitista também é contra o casamento gay e a favor da proibição das drogas. O Milei não é nada disso. Em relação a chamá-lo de “Bolsonaro argentino”, qual a sua avaliação? Quanto a “Bolsonaro argentino” até entendo de onde vem a crítica. Ele teve alguns contatos com o Bolsonaro e com o Eduardo (filho do ex-presidente). Falaram-se muito durante o governo Bolsonaro e o Milei tentou navegar nessa onda, mas ele não é Bolsonaro, assim como eu não sou Bolsonaro, mas sei que algumas pessoas acham que eu sou Bolsonaro. Não coloco a minha mão no fogo, mas acredito que ele é muito mais hábil politicamente, menos dogmático e menos radical do que o Bolsonaro. 

Já está construindo alianças, para o caso de vencer as eleições. Também não tem nenhuma identificação com os militares. Aliás, ele conta que, quando tinha 8/9 anos, na época da guerra das Malvinas, tomou uma surra do pai, com quem acabou rompendo, porque falou que a Argentina não tinha de entrar em guerra. Não sei se foi a palavra que ele usou quando falou do assunto, mas ele ficou com um trauma por causa disso e considera que isso representou um aspecto importante da sua formação. O Milei é um cara pacífico. Não é por esse lado de jeito algum. Sobre ele ser chamado de “populista”, qual a sua a visão? Sobre populista também entendo de onde vem, porque o Milei criou essa persona amalucada, que ele não é. É claro que ele não é 100% normal. Não é isso que estou dizendo. Mas é um acadêmico, que criou uma persona, com aquele cabelo despenteado, fazendo quadros histéricos na televisão, para passar a mensagem dele. Isso teve eco na sociedade argentina, porque ele manda bem nessa persona. Embora isso não o caracterize, quando ele faz esse papel, quando usa essa retórica, dá para entender que as pessoas pensem que é um populista. 

Só que ele não está prometendo uma porção de coisas para um monte de gente, que é o que o populista mais faz, sem explicar de onde vem o dinheiro. Ao contrário. Está falando que vai tirar um monte de coisas das pessoas, porque que não tem como pagar, em um debate franco, direto, falando que esse pessoal que tomou conta da política argentina é uma corja, uma casta, como ele diz. Então, neste aspecto, no sentido mais tradicional da esquerda paternalista, que fica prometendo coisas para ganhar apelo popular, o Milei não é um populista. Não acredito que o Milei vai adotar um estilo Bolsonaro de governar Agora, tem uma característica comum entre o Milei e o Bolsonaro que é a postura antipolítica e antissistema. O caso do Milei é um pouco diferente do caso do Bolsonaro, porque o ex-presidente tinha essa retórica, mas estava há 40 anos na política, enquanto ele só se tornou deputado há dois anos. 

Mas isso não contribui para relacioná-lo com Bolsonaro? Você tem toda a razão, mas acho que é uma estratégia de campanha. Como falei há pouco, o Milei já está fazendo coalizões. A forma como ele se coloca em relação aos políticos tradicionais, dizendo que vai varrer os peronistas, os kirchneristas, que são uma vertente peronista, sugere uma semelhança entre os dois, mas não me parece que ele vai passar o rodo como o Bolsonaro quis fazer quando chegou lá, porque tinha recebido 57 milhões de votos. Ele me parece bem diferente do Bolsonaro. Não acredito que queira subverter o sistema nem que vá tentar enfiar suas propostas goela abaixo da população e adotar um estilo Bolsonaro de governar. Acho que ele entende as limitações da política. 

Vai ser tudo negociado e mediado pelo sistema político. Agora, que ele usa a retórica antissistema na campanha para benefício eleitoral não tem dúvida, mas isso faz parte do jogo. Ainda nessa questão do Milei e do Bolsonaro, ele já se disse admirador do ex-presidente e mantém uma relação próxima com seu filho Eduardo. Se o Milei tem mesmo todas essas características diferentes do Bolsonaro que o sr. diz, o que explica isso? Não sei se ele tem expressado isso ultimamente. Ele realmente expressou um ano atrás. Ele já veio para o Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, é um economista austríaco, que conhece a Escola de Chicago, e um anarcocapitalista. Essa é a sua essência. Se o Milei conversar mais de meia hora com o Bolsonaro vai descobrir que ele é nacional-desenvolvimentista, militarista, não gosta de privatização, acha que tudo é questão estratégica, essas coisas todas. Vai encher o saco dele rapidinho. Agora, eu acredito que, quando você está numa briga em que o outro lado tem uma cabeça intervencionista, defende pautas de classe marxistas e pautas identitárias, não adianta ficar no seu nichinho liberal, tradicional, falando só de economia. 

Não é meramente um colóquio de economistas discutindo as melhores práticas do Consenso de Washington. É uma briga cultural. Acredito que o Milei entende o componente cultural da briga. Não tem medo de discutir política identitária. Vai no âmago da questão quando joga na cara dos peronistas, dos kirschneristas que eles querem tirar dinheiro de Pedro para dar para Paulo. Neste sentido, consigo até entender que o Milei tenha estado próximo do Bolsonaro. Afinal, o Bolsonaro teve êxito até um certo ponto em fazer essa guerra cultural, embora tenha perdido de goleada depois. Hoje, não sei como eles estão. Acho que, hoje, se o Milei é esperto, não está mais falando essas coisas. O Bolsonaro está cada vez mais radioativo. Em relação às propostas de governo, o Milei defende a realização de uma profunda reforma do Estado, que ele chama de “organização criminosa” e diz ser responsável pelo empobrecimento da Argentina. 

O sr. concorda com ele? Ele tem toda razão. Foram as políticas públicas implementadas pelo kirchneristas e antes pelos peronistas, com um pequeno intervalo de Macri, que não teve muito efeito, porque mesmo ele também foi destrutivo em muitos aspectos, que destruíram an Argentina. O Estado é o grande culpado pelo desastre argentino. O efeito mais óbvio é a inflação, que é um reflexo do nível de impressão de dinheiro que se fez no país, para cobrir gastos para os quais não era possível levantar mais recursos em impostos. No fundo, tudo volta para os tais gastos dos programas sociais que eles estão tentando fazer, porque querem dar uma porção de benefícios para ter curral eleitoral. Foi essa política populista que causou o caos na Argentina. 

 O argentino pensa em dólar. Praticamente todo o dinheiro usado na rua já é em dólar Na economia, além de um ajuste fiscal rigoroso, com corte de gastos e redução de ministérios, das reformas trabalhista e da Previdência e das privatizações, o Milei pretende também promover a dolarização e acabar com o Banco Central. Como o sr. analisa isso? Se não me engano, a plataforma dele não previa acabar com o Banco Central logo na largada, mas os fatos o estão levando a defender a dolarização de imediato. 

Os argentinos já decidiram que politicamente eles precisam resolver a questão da inflação e estão escolhendo o Milei, porque querem uma solução anarcocapitalista para a moeda. Como ele diz, o foco é tirar essa casta política e resolver o problema da inflação. Você tem de tirar o poder de emissão de dinheiro das mãos dos políticos e dos burocratas. Se não resolver o problema da inflação primeiro, você não consegue resolver o problema das contas públicas. Neste aspecto, é um pouco parecido com o Plano Real. Precisava ter o foco para debelar a inflação e depois tratar das outras questões, da diminuição do tamanho do Estado.

 Não precisaria ser anarcocapitalista para defender isso. Já foi feito em El Salvador, no Panamá, no Equador. Alguns economistas estão dizendo que an Argentina precisaria de US$ 40 bilhões para fazer a dolarização da economia. Só que o país não tem dólar nem para pagar a dívida externa nem para bancar importações. Onde o Milei vai buscar esse dinheiro? O grande problema da Argentina hoje são as Leliqs (Letras de Liquidez), que são títulos emitidos pelo Banco Central, carregados pelo sistema bancário, e que representam cerca de 90% do passivo da instituição. 

Todo o problema é como equacionar essa dívida do Banco Central, que no fundo é uma dívida do país com os argentinos, porque o resto é automático. No dia seguinte à dolarização, as contas correntes serão automaticamente convertidas em dólar, pelo câmbio paralelo, óbvio, porque o câmbio oficial de 350 pesos por dólar não representa a realidade do mercado. Hoje, 80% das transações, não em número, mas em valor, já são baseadas em dólar. O argentino pensa em dólar. 

Praticamente todo o dinheiro usado na rua já é em dólar. É quase como se o peso fosse usado só para troco, para transações de baixa monta, pela destruição absoluta que fizeram da moeda. Então, eles já estão acostumados com essa realidade. Agora, como obter os dólares para equacionar a dívida do Banco Central? Nos cálculos dos economistas Emilio Ocampo, que acabou de ser indicado por Milei para presidir o Banco Central se vencer as eleições, e Nicolás Cachanosky, autores do livro Dolarización: uma solución para la Argentina’, publicado no início do ano passado, já seria possível bancar as Leliqs com um câmbio de 750 pesos por dólar. Se for no câmbio de mil pesos, que é mais ou menos a cotação atual do dólar paralelo, o chamado dólar blue, será mais moleza ainda. Então, não é que ele vai precisar de dólares, porque os títulos públicos argentinos que dão lastro ao balanço do Banco Central já serão denominados em dólar. 

A questão é que esses títulos estão cotados hoje a 25% do valor de face e têm prazos mais longos do que os das Leliqs. O problema é como casar o que o Banco Central tem no ativo, que são os títulos públicos argentinos, com o que tem ele tem no passivo, que são basicamente as Leliqs. Pelas contas do Ocampo e do Cachanosky, ao câmbio de mil pesos já haveria lastro suficiente para pagar as Leliqs e não seriam necessários esses US$ 30 bi de que estão falando por aí. O Milei está 100% certo de eliminar as tarifas de importação No passado, na gestão do ex-presidente Carlos Menem (1930-2021) já fizeram a dolarização na Argentina e não deu certo. Por que acreditar que, desta vez, vai funcionar? O que foi feito na pelo Menem não era dolarização. Era um sistema parecido com o de Hong Kong. 

Havia um currency board (fundo de estabilização cambial), pelo qual cada dólar que entrava no país gerava um peso correspondente e cada peso que queria sair era trocado por dólar. Enquanto an Argentina manteve esse sistema, funcionou muito bem. O problema foi quando o Domingo Cavallo (então ministro da Economia) resolveu que eles não precisavam lastrear tudo em dólar e que dava para ter um pedaço da base lastreado em títulos públicos denominados em dólar emitidos pela República Argentina. Aí, a coisa foi para o vinagre. O sistema explodiu, porque os políticos trocaram a Lei de Conversibilidade, que dizia que precisava ter lastro em dólar, em título público americano, por uma nova regra, que abriu o caminho para o descontrole monetário. Numa dolarização real, não há uma taxa de conversão. 

As pessoas usam a moeda que o banco aceita como depósito em conta corrente, no caso o próprio dólar ou outra moeda forte. Então, não tem esse risco. No atual cenário econômico do país, em que é urgente atacar a inflação, essa solução não só é a mais sensata como talvez seja a única possível que eles têm na mesa. Sorte do Milei, que está defendendo essa proposta. Outra proposta polêmica é o corte dos impostos de importação. Faz sentido isso? Estou 100% de acordo com a ideia de zerar as tarifas. Mas, se não me engano, ele colocou na página inicial da plataforma de governo zerar tarifas sobre bens essenciais na partida e não sobre bens finais, como fez o Chile, na década de 1990, que veio baixando gradualmente as taxas até ter uma tarifa de 3% pra tudo. No fundo, 3% e zero é quase a mesma coisa, dado o que o Brasil e an Argentina praticam hoje. Então, o Chile já fez isso e países pequenos fazem isso até por necessidade. 

Hoje, há tarifas de importação para computador, para maquinário, para uma porção de coisas que você precisa para produzir. Você jamais vai conseguir competir com uma China, que não tem tarifa de importação, ou com os Estados Unidos, que têm tarifas mínimas. Você sempre vai ficar fora das cadeias de suprimento, porque nunca vai poder competir com outros países que compram computador e insumos pagando metade do preço. No Brasil, o empresário é competitivo da porta para dentro da fábrica, mas não é competitivo no resto do mundo, porque é obrigado a pagar o “custo Brasil” e dentro disso um dos principais componentes é a tarifa de importação, que deixa tudo muito mais caro aqui. Por isso, a gente é bom em agro lá fora, porque não tem tanto imposto sobre insumos importados, como fertilizantes. Você não transforma os produtos agropecuários aqui e consegue se livrar da “senzala Brasil” de tarifas de importação. Mas industrialmente não tem jeito. A Embraer escapa e é competitiva porque consegue importar sem tarifa de importação desde que exporte o produto final. 

Mas o resto do Brasil, o Brasil real, que não é agro nem Embraer, está ferrado. Então, o Milei está 100% certo de eliminar as tarifas de importação. O Emilio Ocampo, que é o braço direito do Milei na economia, diz que é realista fazer um ajuste fiscal de 3% do PIB Na área social, o Milei defende um corte nos benefícios sociais. Ele diz inclusive que “direitos são ótimos, mas alguém tem de pagar”. Considerando que an Argentina tem hoje mais de 40% da população na linha de pobreza, como o sr. mesmo afirmou, faz sentido cortar benefícios sociais? Isso eles têm falado bastante. Eu não sei os detalhes dos cortes que ele propõe, mas o Emilio Ocampo, que é o seu braço direito na economia e quem mais importa, diz que é realista fazer um ajuste fiscal equivalente a 3% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro ano, para tornar crível o plano de governo. Então, ele vai precisar encontrar as áreas para fazer esse corte. 

Acredito que não será cortando programa social na porrada, no primeiro ano. Pode ter um pente fino, para reduzir as fraudes, cortar benefícios de gente que recebe o que não deveria receber, essas coisas, aqueles exageros que os kirchneristas fazem, mas acho que não deve ir muito além disso. Agora, ele defende também o fim da educação pública com a distribuição de vouchers e a privatização gradual da saúde. A educação e a saúde estatais não são indispensáveis para a população de baixa renda? Essa privatização da saúde e da educação que ele pretende implementar faz sentido? Ele não fala em privatização da educação. 

Ele fala em começar um programa de distribuição de vouchers. Isso não quer dizer que ele vai vender as escolas públicas e distribuir voucher para todo mundo estudar em escolas privadas imediatamente. Ele não falou isso nem está no programa de governo dele. Na saúde, deve ser feito algo parecido, com mais soluções privadas. Mas ele não pretende acabar com o atendimento público. Na minha opinião, o maior gerador de desigualdade de oportunidade é a educação pública. 

Quem tem acesso à escola privada tem oportunidade maior do que quem tem acesso à educação pública. Isso acontece em boa medida porque quem faz a gestão da escola, a gestão predial, a compra da merenda, essas coisas todas, e define a pedagogia é o governo. Faz sentido, então, pensar em separar o pagamento do serviço da gestão. Você pode fazer todo uma privatização, vamos chamar assim, da infraestrutura, e continuar pagando para todo mundo que precisa da educação e da saúde um determinado valor para a pessoa ter acesso aos serviços privados. Uma prefeitura que, por exemplo, precisa de 10 mil vagas por ano na rede pública poderia contratar esse valor, pagar esse valor para as escolas privadas acomodarem esses alunos. 

O dinheiro sai do orçamento da prefeitura, mas não é o governo que faz a gestão. Vai ser um valor de X por aluno, com metas de desempenho, e isso representará uma revolução. Alguns vão acusar que será uma privatização da educação. Mas o governo não estará deixando de atender quem precisa e isso é o mais importante. A mesma lógica vale para a saúde. O sr. acredita que isso vai melhorar a qualidade da saúde e da educação? Não tenho a menor dúvida. Mas eu não estou dizendo que o Milei vai implementar isso no primeiro ou no segundo ano de governo. Ele está querendo ir nesta direção. Não está dizendo que vai explodir tudo no dia zero. 

Há oito anos, quando discuti esse assunto em Curitiba, a secretária da Educação falou para mim que cada aluno na educação pública custava R$ 850 por mês de custo direto, sem incluir os custos indiretos da máquina pública. e que, se contratasse uma escola privada para o serviço, sairia por R$ 350. Mas, segundo ela, quando quis implementar o novo sistema, ficou tomando porrada do Ministério da Educação, que não a deixou seguir e frente. Mesmo que você fale que quer que todos os professores sejam da rede pública, tudo bem. Mesmo neste caso, que não seria o ideal, daria para converter uma escola pública numa O.S. (Organização Social), que passaria a ter um contrato com a prefeitura. O professor continuaria na folha de pagamento da prefeitura, mas todo o resto seria administrado pela iniciativa privada, como já é feito em alguns casos na área de saúde no Brasil. Existem soluções intermediárias, com as quais imagino que o Milei vai começar seu governo, se ele for eleito. Não há contradição entre ser um libertário e ser contra o aborto Na área de costumes, o Milei parece bem liberal. 

Ele diz, por exemplo, que é favorável ao casamento do pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por casais homossexuais. Mas ele é contra o aborto. Isso não é uma contradição, para quem é um libertário e deveria defender a liberdade de escolha individual? Não. Não há contradição nenhuma. O liberal defende a liberdade do indivíduo e da propriedade. O que costumo dizer é que não tem resposta certa para isso, porque há o conflito de dois direitos, o direito à vida humana, desde que o embrião é fecundado, e o direito do corpo da mulher. Como o feto consegue sobreviver a partir de cinco meses de idade, se você abortar depois disso vai matá-lo. 

Tem também uma discussão sobre o que acontece antes desse prazo. É uma questão complexa. De um lado, há a liberdade individual da mulher; de outro, a vida do ser humano. Como você resolve esse conflito? Para onde você vai pender? Não tem resposta dentro da doutrina libertária. Tem que resolver fora da doutrina, conforme as suas visões de mundo, visões morais, talvez sua lógica. Então, não tem contradição entre um libertário que permita o aborto no segundo mês e um libertário que diga que isso não deve acontecer. Agora, no quinto mês, acho que é assassinato. Para finalizar, gostaria de saber a sua opinião sobre a liberalização do porte de armas e a legalização do mercado de órgãos, que o Milei defende. Isso estaria dentro também do capítulo das liberdades individuais? Em relação à legalização do mercado de órgãos é uma questão polêmica. Não está no programa dele. Foi uma pergunta feita por um jornalista, que queria saber qual era sua visão sobre isso. 

Ele respondeu que há X mil pessoas precisando de órgãos e não sei quantos potenciais doadores e que, se houvesse um incentivo para a doação, haveria muito mais gente querendo doar. Eu expliquei isso na CNN também, fiz toda a defesa da proposta, dizendo que, no Brasil, também pode haver venda de órgão, só que a custo zero. Agora, se houver um incentivo para quem está doando, possivelmente a fila para recepção de órgãos vai diminuir e você vai beneficiar as pessoas mais simples. Mas, mais uma vez, isso não está no programa dele. Foi uma resposta a uma pergunta de um jornalista, que usaram aqui no Brasil para ferrar o Milei. A questão das armas é complicada, porque ele colocou no programa dele para permitir porte de armas, que é o que um liberal defende, desde que o sujeito tenha passado em testes psicotécnicos e tudo o mais. Mas, quando a Patricia Bullrich (candidata da coalização Juntos por el Cambio, de centro-direita), perguntou ao Milei sobre isso ele deu um escape. 

Disse que havia falado é que o cumprimento da lei atual já seria suficiente para atender o que ele defende. Mas não é isso que está escrito no programa. Então, acho que ele tentou dar um “migué”, para não gerar muita polêmica. Deu uma recuada.  

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias - Estadão

 Como Putin usa mentiras e mercenários para destruir democracias 


Pouco antes de morrer em agosto, em um acidente aéreo em circunstâncias suspeitas, o líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin disse em suas redes sociais que estava na África “para tornar o continente mais livre. Era no continente, principalmente na região do Sahel, onde seus mercenários mantinham grande parte de sua operação. 

E é também nessa parte da África subsaariana onde estão alguns dos países mais voláteis politicamente do Sul Global. Países como Mali, Niger, Burkina Faso e Chade passaram recentemente por golpes de Estado, campanhas de desinformação e tráfico de armas, em ações patrocinadas pela Rússia de Vladimir Putin. Para aumentar a sua influência na região, o Kremlin atua em duas frentes. Uma é oficial, com a doação de até 50 mil toneladas de grãos e o o acordo de cooperação militar com 40 países anunciados por Putin durante a Cúpula Rússia-África. 

A outra, avança sem ser anunciada, com campanhas de desinformação e forte presença dos mercenários do grupo Wagner Um monitoramento recente da ONG Freedom House, que acompanha os direitos políticos e liberdades civis no mundo há cinco décadas, mostra um recuo do volume de países considerados “livres” no continente africano. 

Gana, Namíbia, Botsuana, Lesoto e África do Sul são cada vez mais exceções que regras, num continente marcado pela pobreza e a instabilidade política, onde sete Países enfrentaram golpes de Estado no últimos dois anos. E a Rússia tem atuado pra isso. O Centro de Estudos Estratégicos da África mostrou que há uma relação direta entre essa última, a ação desestabilizadora russa, e a perda de pontos na escala de países livres. 

Gana, que não tem registro de interferência, aparece com 80 pontos na escala que vai de zero a 100 — melhor avaliado que o Brasil (72). Enquanto os países onde a estratégia de Moscou é mais presente tem uma média de 19 pontos, o mesmo que a ditadura da Nicarágua. Em contrapartida, aponta o estudo, autocracias sem instituições sólidas e sem controles internos são mais permissivas à influência russa. O continente sofre com golpes de Estado em série, manobras de governantes que não querem deixar o poder para estender mandatos e eleições sob suspeita. 

Uma instabilidade crescente, depois da ascensão democrática que parecia ter encerrado a tendência de militarização observada entre as décadas de 1970 e 1980. Essas democracias fragilizadas, se encontram no meio de uma disputa por influência entre polos cada vez mais antagônicos. O professor de relações internacionais do IBMEC Christopher Mendonça alerta que uma das formas de rivalizar com os Estados Unidos e com o Ocidente de modo geral é justamente apresentar para os Países onde disputam influência os valores russos: “a democracia não está entre esses valores. A Rússia está muito mais voltada para o nacionalismo”. 

 Os interesses de Vladimir Putin Moscou tem um objetivo claro: substituir as potências ocidentais e aumentar a influência no continente que é o número dois no mundo em área e população. São 30 milhões de quilômetros quadrados divididos entre 54 países onde vivem 1,2 bilhão de habitantes. E esse interesse não é de hoje, explica Angelo Segrillo, historiador especializado em história russa.

 A antiga União Soviética já disputava com a China e as potências Ocidentais a influência sobre os Países africanos que conquistavam independência. A Rússia até herdou essa relação com o fim da URSS, mas enfraqueceu os laços com o continente no final da década de 1990, enquanto enfrentava um problema dentro de casa, a crise econômica, que levou o país a dar um calota na dívida externa.

 Na era Vladimir Putin, já com as contas acertadas, Moscou passou a buscar essas antigas relações. O movimento se acentuou a partir de 2014, quando a Rússia foi alvo das primeiras sanções por anexar a Crimeia e ganhou força no ano passado, a partir da invasão da Ucrânia, que azedou de vez a relação com o Ocidente. “Com o aprofundamento das sanções, a Rússia tenta aumentar os seus laços e influência tanto na Ásia quanto na África, almejando criar um verdadeiro bloco antiocidental”, aponta Segrillo. 

 Além de contornar os embargos econômicos, a Rússia de Vladimir Putin busca reduzir o seu isolamento, como foi observado no aniversário de um ano da guerra, quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução contra a invasão da Ucrânia. O texto foi facilmente aprovado com 141 votos a favor, mas dois países africanos votaram contra junto com a própria Rússia e seus aliados mais próximos, como Belarus. Dos 32 países que se abstiveram, metade fica na África. Sob sanções internacionais, é crucial para Rússia desenvolver esses fluxos alternativos de receita. Ao mesmo tempo, desenvolver parcerias com esses regimes possibilita um tipo de proteção contra condenação internacional pela invasão na Ucrânia. É uma forma de jogar a geopolítica”, nota o pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da África Daniel Eizenga ao Estadão. 

 Embora o apoio ou posição de neutralidade entre os países africanos nem de longe tenha sido suficiente para barrar a resolução, os números mostram como o continente está dividido em relação à guerra, contrariando o Ocidente, que adota uma posição firme contra o Kremlin e esperam o mesmo de outros Países. A consequência, conclui Cristopher Mendonça é que “se aproximar desses Países melhora as condições da Rússia na ONU”, especialmente em votações da Assembleia-Geral. “A Rússia não é um país que questiona a ONU porque é um membro efetivo [do Conselho de Segurança], estava na criação desses sistema. 

E a África tem um número de votos que é superior ao de outras regiões”, justifica. Em contrapartida, Moscou tem usado o poder de veto como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU parar barrar resoluções contra os governos que apoia na África. Assim, tem livrado autocratas de sanções financeiras e da condenação internacional. Ressentimento com colonialismo abre espaço pra Rússia Enquanto Moscou busca espaço no continente, a relação com Paris se mostra cada dia mais desgastada a exemplo do que acontece no Mali. 

Seis décadas depois da conquista da independência da França, a nova Constituição, aprovada sob o governo militar, demoveu o francês da lista de idiomas oficiais do País. Um gesto considerado simbólico já que a própria carta magna foi escrita em francês, mas que evidencia o ressentimento com o passado colonizador e com as intervenções mais recentes, às vezes, desastrosas. No ano passado, antes de rebaixar o idioma, o Mali celebrou com uma multidão nas ruas a expulsão do embaixador e assistiu a retirada de tropas da França. 

Um dia recebidos como heróis contra o extremismo islâmico, os soldados deixaram o países acusados de neocolonialismo dez anos depois, no momento em que os grupos jihadistas ganham força. Logo depois, a vizinha Burkina Faso, também ex-colônia e também sob um regime militar, que mandou os soldados franceses embora. Mais recentemente, foi a vez do Níger, onde os militares tomaram o poder em julho. Quando apoiadores da junta militar foram às ruas manifestar apoio ao golpe, alguns queimaram a bandeira francesa enquanto outros exibiram a russa. 

Uma imagem que simboliza como Moscou avança para ocupar esse vácuo de influência deixado por Paris. Depois do golpe, o Níger também expulsou o embaixador da França e, em meio à tensão crescente, Emmanuel Macron já anunciou a retirada das tropas no País, que era tido como último ponto de apoio do Ocidente nas ações contra o terrorismo no Sahel. O problema é que os Países ocidentais também deram sustentação para autocratas e apoio militar para suas forças de segurança, fechando os olhos para violações de direitos humanos sob a justificativa de combate as grupos insurgentes, afirma diretora do programa africano da Freedom House Tiseke Kasambala ao Estadão. “Infelizmente, as intervenções ocidentais, incluindo aquelas promovidas por potências coloniais, como a França, nem sempre foram positivas levando a um ressentimento generalizado na população”, afirma. 

 Democracia, um sistema em crise Com exceção do Sudão, as ex-colônias francesas correspondem a seis dos sete países africanos que sofreram com golpes de Estado nos últimos dois anos. Além dos já citados, Mali, Burkina Faso e Níger, a lista inclui ainda Chade, Guiné e, mais recentemente o Gabão. Este último, mostra como o cenário é complexo já que mesmo antes do golpe, não é como se o País experienciasse uma democracia plena com alternância de poder. Ali Bongo, o presidente deposto há cerca de um mês pelo golpe, havia acabado de ganhar um terceiro mandato de sete anos.

 O antecessor, o seu pai Omar Bongo, comandou o Gabão por mais de 40 anos até morrer em 2009. A perpetuação dos Bongo no poder repetia uma tendência verificada também em outros Países africanos. Em Ruanda, Paul Kagame, é presidente desde os anos 2000 e, graças às reformas políticas aprovadas durante o governo, pode seguir no poder pelo menos até 2034. Quando confirmou, este mês, que será candidato novamente, ele se antecipou às possíveis críticas. “O que é democracia? O Ocidente ditar o que os outros devem fazer? Mas se eles violam os próprios princípios, como ouvimos a eles?”, questionou Kagame. 

E completou: “Procurar transferir a democracia para os outros já é uma violação da democracia em si. As pessoas deveriam ser independentes e ter o direito de ser organizar da forma que quiserem”. A Freedom House aponta ainda outras estratégias que limitam a democracia no continente, como leis de segurança digital que violam privacidade e liberdade de expressão ou políticas abrangentes, que deveriam combater o terrorismo, mas restringem o direito de livre associação. Exemplos disso, aponta a ONG, são an Uganda e o Zimbábue, onde opositores acabam de ser detidos, depois que o presidente Gift Siziba foi reeleito em uma disputa contestada, marcada por denúncias de irregularidades. 

 Apesar dos diferentes indícios de corrosão, a democracia é a forma de governo preferida por 66% da população em 36 países do continente, mostrou o Afrobarômetro, organização não governamental que há 20 anos conduz pesquisas na África. A grande maioria (cerca de 80%) rejeita governos de um homem só ou de partido único. Na mesma linha, quase 70% se dizem contra governos militares. Entretanto, só 38% expressaram satisfação com a forma como a democracia tem funcionado dentro dos seus Países. “Infelizmente, as aspirações políticas não se alinham com a realidade e os cidadãos descobriram que a oferta de democracia é extremamente deficiente”, conclui Tiseke Kasambala. 

Ela lembra que, nos Países onde o processo democrático foi interrompido, instituições frágeis falharam em atender as demandas sociais e oferecer serviços básicos. Ao mesmo tempo, a falta de pluralidade na política, favorece pequenas elites e aprofunda a desigualdade no continente onde mais de 540 milhões de pessoas vivem na pobreza, segundo dados da ONU. À media em que as pessoas exigem mudanças, seja nos rumos da política ou da economia, a resposta dos governantes tem sido endurecer as regras e não atender as demandas sociais. “Os governos violaram liberdades, dificultaram o trabalho da sociedade civil com leis repressivas, respostas violentas a protestos pacíficos e prisões de defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas”, aponta Kasambala. 

 O grupo Wagner e o futuro indefinido Foi nesse cenário complexo, de instituições enfraquecidas, e busca por aliados sem relação com os antigos colonizadores, que a Rússia se apresentou como um parceiro atrativo e aumentou a presença do grupo Wagner na África. A relação de Moscou com os mercenários, no entanto, ficou estremecida pelo motim que ameaçou Vladimir Putin na Rússia. Depois da rebelião, o Kremlin afastou os paramilitares da Ucrânia, mas manteve as operações no continente africano.

 Foi lá, inclusive, que o chefe Ievgeni Prigozhin apareceu em vídeo pela primeira e última vez desde que liderou o avanço em direção à Moscou. Dias depois da aparição, o avião em que Prigozhin e o seu braço de direito viajavam caiu perto da capital russa. A morte do antigo aliado de Putin, chamado de “traidor” por organizar o motim, abriu um vácuo de poder dentro da organização e aumentou ainda mais a incerteza que paira sobre o futuro do grupo Wagner. Depois da morte de Prigozhin, Moscou indicou que deve manter os mercenários, mas sob seu controle. O sinal veio na semana passada, quando o militar reformado que atuava como um dos líderes do grupo Wagner, Andrei Troshev, recebeu a missão de recrutar combatentes para guerra na Ucrânia. Conhecido pelo apelido de “Sedoi” (grisalho, em russo), o comandante já havia sido apontado como o favorito de Vladimir Putin para comandar os mercenários e vai seguir ordens do Ministério da Defesa. 

A nomeação pareceu refletir o plano do Kremlin para colocar o grupo Wagner de volta à linha de combate ucraniana. Enquanto o mundo observa que papel os mercenários devem ter a partir de agora na guerra, o historiador Angelo Segrillo destaca que uma das saídas para o dilema que o grupo Wagner impôs ao Kremlin poderia ser justamente reforçar ação da milícia, já domada, longe do País. “Normalmente, o grupo teria sido desfeito depois do motim, mas sua presença na África é profunda e foi muito importante para a Rússia ao realizar — informalmente ou clandestinamente — as tarefas que Moscou não poderia executar oficialmente”, lembra o pesquisador.  

A volta de um personagem notório do exército russo pode ser um indicativo dessa estratégia, depois do susto que o grupo Wagner deu em Vladimir Putin. O general Sergei Surovikin, afastado por supostos vínculos com o motim, reapareceu na Argélia, importante comprador de armas russas, depois de semanas sem ser visto em público. “Surovikin é um general duro e que foi muito importante em vários cenários bélicos, principalmente na Síria, e também na própria Ucrânia, onde organizou as linhas de resistência nas províncias incorporadas por Moscou”, contextualizou Segrillo afirmando que o afastamento da Rússia e possível transferência do general poderia confirmar a possibilidade do grupo Wagner ter a energia mais focada em cenários distantes de Moscou, em especial, a África. 

 Seja qual for a estratégia, analistas concordam que o interesse da Rússia não vem de hoje e não vai acabar, independente de qual for destino do grupo Wagner.  


Quatro líderes e um mundo virado ao revés Israel , EUA, Rússia e China - Thomas L. Friedman (NYT, Estadão)

 Quatro líderes e um mundo virado ao revés

Israel EUA, Rússia e China

Thomas L. Friedman
The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer
O Estado de S. Paulo, 6/10/2023

Desde o dia em que aprendí que, em 1947, Walter Lippmann popularizou o termo Guerra Fria para definir o conflito que emergia entre EUA e União Soviética, achei que seria legal poder batizar um período histórico. Agora que o pós-Guerra Fria acabou, o pós-pós-Guerra em que entramos tem de ganhar um nome. Então, aqui vai: é a era do "Isso não estava nos planos".

Eu sei, não é uma expressão fácil de articular - e não espero que cole. Mas ela é certeira. Eu tropecei nela na minha viagem recente à Ucrânia. Estava conversando com uma mãe ucraniana que me contava que sua vida social tinha se reduzido a jantares ocasionais com amigos, festas de aniversário "e funerais".

Depois de digitar a citação na minha coluna, acrescentei meu próprio comentário: "Isso não estava nos planos". Antes do ano passado, jovens ucranianos vinham desfrutando de acesso facilitado à União Européia, entrando em startups de tecnologia, pensando sobre fazer faculdade e decidindo se passavam férias na Itália ou na Espanha. Então, como um meteoro, a invasão russa virou as vidas deles de ponta cabeça da noite para o dia.

Aquela ucraniana não está só. Muitos planos de muita gente - e de muitos países - saíram completamente dos trilhos. Entramos na era do pós-pós-Guerra Fria, que tem pouco a prometer em comparação à prosperidade, à previsibilidade e às novas possibilidades do período pós-Guerra Fria, que abrangeu os 30 anos desde a queda do Muro de Berlim.

Há muitas razões para isso, mas nenhuma é mais importante do que o trabalho de quatro líderes cruciais com uma coisa em comum: acreditam que sua liderança é indispensável e estão dispostos a adotar medidas extremas para se manter no poder o máximo que puderem.

PODER. Estou falando de Vladimir Putin, Xi Jinping, Donald Trump e Binyamin Netanyahu. Esses quatro - cada um à sua maneira - criaram perturbações dentro e fora de seus países com base em seu interesse particular, em vez dos interesses de seus povos, e dificultaram a capacidade de suas nações funcionarem normalmente no presente e se planejarem sabiamente para o futuro.

Veja Putin. Ele começou a carreira como um tipo de reformador que estabilizou a Rússia pós-Yeltsin e coordenou um boom econômico graças aos preços do petróleo em elevação. Mas a renda com o petróleo começou a cair e, conforme descreve o acadêmico russo Leon Aron em seu próximo livro, Ridingthe Tiger: Vladimir Putirís Rússia and the Uses ofWar, Putin deu uma grande virada no começo de seu terceiro mandato como presidente, em 2012, após os maiores protestos contra seu governo irromperem em 100 cidades russas e sua economia empacar.

A solução de Putin? "Mudar a fundação da legitimidade de seu regime do progresso econômico para o patriotismo militarizado", disse Aron, colocando a culpa de todas as dificuldades no Ocidente e na expansão da Otan. No processo, o presidente russo transformou seu país em um forte sitiado, que, em sua mentalidade e propaganda, somente Putin é capaz de defender. Ele ter invadido a Ucrânia para restaurar a mítica Mãe-Pátria russa foi inevitável.

Os acontecimentos na China também têm se desdobrado de maneira bastante inesperada. Depois de se abrir e afrouxar controles internos constantemente desde 1978, tornando-se mais previsível, estável e próspera que em qualquer outro momento da história moderna, a China experimentou uma virada de quase 180 graus sob o presidente Xi: ele suprimiu o limite de mandatos - respeitado por seus antecessores para evitar a ascensão de um novo Mao Tsé-tung - e fez-se presidente indefinidamente.

Xi, aparentemente, acreditou que o Partido Comunista estava perdendo o controle e, portanto, reafirmou seu poder em todos os níveis sociais e empresariais ao mesmo tempo, o que eliminou qualquer rival.

Isso tomou a China um país mais fechado do que em qualquer momento desde os dias de Mao e desencadeou comentários de que o mundo pode já ter visto o auge da China em relação a potencial econômico, o que equivalería a um terremoto na economia global.

Certamente não estava nos meus planos acabar escrevendo, depois de quase uma vida inteira acompanhando conflitos de Israel com inimigos externos, que a maior ameaça à democracia judaica hoje é um inimigo interno - um golpe no Judiciário liderado por Netanyahu que está fragmentando a sociedade e as Forças Armadas de Israel.

O ex-diretor-geral do ministério israelense da Defesa Dan Harel afirmou, em um comício pró-democracia em Tel-Aviv, na semana passada: "Eu nunca vi nossa segurança nacional num estado tão ruim" e houve "dano às unidades da reserva de formações essenciais das Forças Armadas, o que reduziu prontidão e capacidade operacional".

E este problema não é pequeno para os EUA. Ao longo dos últimos 50 anos, o Estado de Israel tem sido tanto um aliado crucial quanto, de fato, uma base avançada na região em que Washington projetou poder sem usar tropas americanas.

Israel destruiu tentativas incipientes de Iraque e Síria se tornarem potências nucleares e é o maior contrapeso atualmente à expansão do poder do Irã sobre toda a região. Mas, se tivermos mais três anos desse governo extremista de Netanyahu, com sua pretensão de anexar a Cisjordânia e governar os palestinos que habitam o território com um sistema à la apartheid, o Estado judaico poderá se tornar uma grande fonte de instabilidade, não de estabilidade.

E por quê? Em um recente perfil de Bibi no Times, Ruth Margalit citou Ze'ev Elkin, um ex-ministro do gabinete de Netanyahu, do Likud, descrevendo o primeiro-ministro da seguinte forma: "Ele começou com uma visão de mundo que dizia: 'Eu sou o melhor líder para Israel neste momento', que gradualmente se transformou numa visão de mundo que diz: 'A pior coisa que pode acontecer para Israel é eu parar de liderar o país, e portanto minha sobrevivência justifica qualquer coisa'."

PILAR. Nem é preciso dizer, depois de testemunhar o esforço de Trump para reverter a eleição de 2020 inspirando uma turba a invadir o Capitólio e ver esse mesmo homem se tomar o principal pré-candidato republicano à presidência em 2024, que a nossa próxima eleição será uma das mais importantes de todos os tempos - para que não seja a última. Isso não estava nos planos.

O denominador comum que une esses quatro líderes é que todos eles quebraram as regras do jogo em seus países por uma razão bastante familiar: permanecer no poder. Putin também iniciou uma guerra no exterior com o mesmo objetivo. E seus sistemas locais - a elite russa, o Partido Comunista Chinês, o eleitorado israelense e o Partido Republicano - não foram capazes de refreá-los.

Mas também existem diferenças importantes entre eles. Netanyahu e Trump enfrentam resistência em suas democracias, onde os eleitores ainda podem expulsar ou impedir ambos - e nenhum deles começou uma guerra.

Xi é um autocrata, mas tem uma agenda para melhorar a vida de seu povo e planeja dominar grandes indústrias do século 21, da biotecnologia à inteligência artificial. Mas seu governo, cada vez mais linha-dura, poderá ser exatamente o que impedirá a China de chegar lá, principalmente porque esse punho de ferro ocasiona fuga de cérebros.

Putin não passa de um chefão mafioso disfarçado de presidente. Ele será lembrado por transformar a Rússia da potência científica, que colocou o primeiro satélite em órbita, em 1957, em um país incapaz de fabricar um carro, um relógio ou uma torradeira que qualquer pessoa fora do país compraria. Putin teve de recorrer à Coréia do Norte para mendigar ajuda para seu Exército arrasado na Ucrânia.

Trump, em última instância, é o mais perigoso - e por uma simples razão: quando o mundo fica tão caótico assim e países tão importantes contrariam os planos, o restante depende dos EUA para assumir a liderança, conter os problemas e opor-se aos causadores de problemas. Mas Trump prefere ignorar problemas e louvar os criadores de problemas. É isso que torna a perspectiva de outra presidência sua tão assustadora, insensata e inconcebível.

Porque os EUA ainda são o pilar do mundo. Nem sempre fazem isso sabiamente, mas se parar completamente de fazê-lo, cuidado. Dado o que já está acontecendo nesses três outros importantes países, se os EUA vacilarem, nascerá um mundo no qual ninguém será capaz de fazer nenhum plano. Haverá um nome fácil para esse período: "Era da Desordem".

TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Se os EUA vacilarem, nascerá um mundo incapaz de fazer planos. Será a 'Era da desordem'

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Para Brasil sair do Tribunal Penal Internacional, como quer Lula, é preciso mudar a Constituição - Daniel Gateno (Estadão)

Para Brasil sair do Tribunal Penal Internacional, como quer Lula, é preciso mudar a Constituição 


Ainda que Lula patrocine uma tentativa de abandonar o TPI pela via legislativa, não há consenso entre juristas se seria possível sair da Corte de Haia via PEC 

Por Daniel Gateno 
ESTADÃO INTERNACIONAL, 15/09/2023

 As recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre oTribunal Penal Internacional (TPI) abriram um debate no governo sobre uma possível saída do país do Estatuto de Roma, que rege as relações entre os Estados-parte e a Corte. Na quarta-feira, o Ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que o Executivo poderia rever a adesão do Brasil ao tratado. 

Especialistas em direito constitucional consultados pelo Estadão, alertam, no entanto, que um rompimento com o TPI, se colocado em curso, não seria de competência do Executivo. Além disso, é impossível abandonar a Corte sem uma alteração da Constituição Federal e um longo debate jurídico e político sobre o tema. Ainda que Lula patrocine uma tentativa de abandonar o TPI pela via legislativa, não há consenso entre juristas se seria possível sair da Corte de Haia com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). 

Isso acontece porque o Estatuto de Roma, aprovado no Brasil em 2002, foi incluído no Artigo 5º da Constituição, considerado uma cláusula pétrea da Carta Magna. Para o professor de direito constitucional da FGV-SP, Oscar Vilhena Vieira, Lula não pode sozinho decidir abandonar o TPI. “Para renunciar ao tratado, o presidente precisaria de autorização do Congresso, com procedimento e quórum de emenda (à Constituição). Lula não pode por si só romper o compromisso do Estado brasileiro“, avalia o jurista. “Mas mesmo que o Congresso autorize o presidente a modificar, o STF teria que avaliar se a emenda é constitucional.” 

 O Brasil sempre foi apoiador do tribunal, não esperava isso do governo Lula. Se fosse o governo Bolsonaro eu teria acreditado mais facilmente Sylvia Steiner, ex-juíza brasileira do TPI Ainda de acordo com Vilhena Vieira, a PEC teria poucas chances de ser validada pelo Supremo, já que, em sua visão, uma saída do TPI, violaria outro artigo da Constituição, o 4º. “O artigo 4ºdetermina que no campo internacional o Brasil deve se pautar pela prevalência dos direitos humanos e o Tribunal é uma instância de defesa dos direitos humanos”, pondera Vieira. “No plano internacional, apontaria uma mudança radical da postura brasileira, em contraposição a tradição de sua diplomacia em tempos democráticos”, acrescenta. Uma PEC precisa do apoio de 3/5 da Câmara e do Senado em dois turnos para ser aprovada. 

Não é uma negociação política simples e geralmente é reservada a temas de grande interesse do governo, como foi o caso recente, por exemplo, do arcabouço fiscal. Sylvia Steiner, ex-juíza do TPI e única brasileira a ter integrado o colegiado, tem uma leitura ligeiramente distinta. Para ela, a mudança proposta por Lula é inviável, já que o artigo 5º inteiro (ele tem 79 parágrafos) não seria passível de mudança. “Lula teria que convocar uma Constituinte e fazer uma nova Constituição para sair do TPI”, aponta Steiner. “Esta medida é muito desproporcional, então não vai acontecer.” 

 Para a ex-juíza do TPI, é difícil entender as motivações que um governo que se diz progressista tem para sair da Corte. “O Brasil sempre foi apoiador do tribunal, não esperava isso do governo Lula. Se fosse o governo Bolsonaro eu teria acreditado mais facilmente. As declarações do ministro da Justiça, Flavio Dino, foram preocupantes porque ele foi juiz federal, deveria saber que a possibilidade de sair do TPI é remota.” 

 O afago a Putin 
A discussão em torno do TPI começou após as declarações de Lula durante a cúpula do G-20, em que o presidente brasileiro defendeu a presença do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que tem um mandado de prisão emitido pelo TPI, na próxima reunião do bloco, que será realizada no Rio de Janeiro em novembro do ano que vem e disse que, uma vez no Brasil, Putin não seria preso por uma questão de soberania. “O que eu posso dizer é que, se eu sou o presidente do Brasil e ele for para o Brasil, não há por que ele ser preso”, afirmou em entrevista ao canal indiano Firstpost em Nova Délhi. 

 Quando questionado sobre o mandado emitido pelo TPI contra Putin por crimes de guerra por causa de seu suposto envolvimento em sequestros e deportação de crianças de partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia durante a guerra, Lula afirmou que “ninguém vai desrespeitar o Brasil, porque tentar prender ele no Brasil é desrespeitar o Brasil.” 

Na realidade, o Estado brasileiro seria obrigado a entregar o líder russo à Corte de Haia. Obrigação legal Ao Estadão, o ex-ministro do Supremo Celso de Mello lembra que o Estatuto de Roma está formalmente incorporado ao ordenamento positivo interno do Estado brasileiro desde a sua promulgação pelo Decreto no 4.388, de 25/09/2002. “Impende observar, ainda, que se impõe, ao Brasil, em sua condição de Estado Parte do Estatuto de Roma, a “Obrigação geral de cooperar” com o Tribunal Penal Internacional “, diz Celso de Mello. Após a polêmica provocada declarações, o presidente brasileiro recuou de blindar Putin. 

O presidente também disse que o tribunal funciona somente com países “bagrinhos”, referência aos menos desenvolvidos e que nem sabia da existência do TPI. Ele deixou em aberto uma eventual retirada do Brasil do Estatuto de Roma. “Eu não sei se a Justiça brasileira vai prender. Quem decide é a Justiça, não é o governo nem o parlamento. 

Quem toma a decisão é a Justiça e temos que ver se vai acontecer alguma coisa”, disse o presidente, em entrevista coletiva antes de decolar de volta ao Brasil. “Se o Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão se vai prendê-lo ou não é a Justiça, não é o governo, nem o Congresso.” O chamado Tribunal de Haia foi estabelecido pelo Estatuto de Roma, em 1998 e entrou em vigor em 2002. Sua missão é investigar, processar e julgar indivíduos por violações que dizem respeito à comunidade internacional, mais especificamente genocídios, crimes contra humanidade, de guerra e de agressão. Esse último caracterizado pelo uso da força de um Estado contra a integridade territorial de outro país. O TPI conta com 123 países signatários com destaque para França, Reino Unido, Alemanha, Austrália e Japão. 

A África do Sul também é signatária do TPI, motivo pelo qual Putin não compareceu de forma presencial à cúpula do Brics, que foi realizada em Johannesburgo, em agosto. Países como Estados Unidos, Rússia e China não fazem parte da Corte. “A não adesão de países autoritários era esperada. O grande ausente entre as democracias são os Estados Unidos, que patrocinaram a sua construção, mas se negaram a aderir ao Tribunal, como aliás se negam a ratificar inúmeros tratados de direitos humanos. É uma posição reprovável”, aponta Vieira, professor de direito constitucional da FGV-SP. 

 A Ucrânia também não assina o Estatuto de Roma. Mesmo assim, Kiev permitiu que o TPI atuasse em seu território, abrindo portas para que o mandado de prisão contra Vladimir Putin fosse expedido. A importância do TPI Steiner aponta que apesar do tribunal não ter países importantes como signatários, a representatividade do TPI é inegável. “Estamos do lado certo da história, Lula falou que não havia países do Conselho de Segurança da ONU no TPI, mas França e Reino Unido estão lá. Nós estamos juntos com toda a Europa, América Latina, Canadá, Japão. 

O TPI é um avanço civilizatório e o Brasil faz muito bem de ser signatário.” Para o professor da FGV, apesar de críticas ao TPI, a Corte segue sendo importante. “Embora o TPI seja desbalanceado, a Corte tem gerado constrangimento a alguns criminosos, ainda que não tenha sido capaz de punir figuras como Putin.”, pondera. “O processo de consolidação de uma Justiça universal de proteção dos direitos humanos é lento. O Brasil se colocou ao lado do processo. 

Não me parece coerente politicamente, nem válido juridicamente, buscar agora se contrapor a esse processo”, completa o especialista. Discurso x ação Para a Diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Laura Trajber Waisbich, a possível saída do Brasil do TPI foi mais repercutida a nível doméstico do que internacional. “Por enquanto estamos falando do nível discursivo, que é diferente do Brasil tomar alguma ação para tirar o País do TPI”, acrescenta a analista. “A proteção internacional dos direitos humanos está sendo questionada, mas menos pelo conteúdo direitos humanos e mais por uma visão que é política sobre como esse órgão deveria funcionar e seus limites dentro de um cenário geopolítico complexo”, destaca a especialista. Waisbich avalia que a participação brasileira na Corte é importante para proteger os próprios brasileiros de seus governantes. “O órgão não diz respeito apenas à Rússia, o TPI protege brasileiros de eventuais crimes contra a humanidade cometidos por governantes brasileiros, independente de qual governo.”

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Fim do calote? Brasil quer quitar dívidas com organismos multilaterais - Estadão

Fim do calote? Brasil quer quitar dívidas com organismos multilaterais 

BRASÍLIA - Com quase R$ 2 bilhões pagos este ano e outros R$ 2 bilhões ainda em aberto, o governo brasileiro promete quitar ainda em 2023 todas as dívidas acumuladas desde 2014 com organismos multilaterais. Com recursos já separados para acabar com os calotes nos aportes anuais do Brasil a bancos e instituições internacionais, como a própria Organização das Nações Unidas (ONU), o Ministério do Planejamento e Orçamento depende agora apenas do cronograma de liberações de recursos até dezembro. “Vamos quitar todo o passivo de anos anteriores, mais o fluxo normal de aportes de 2023. O dinheiro a gente tem, o desafio é o limite financeiro mensal para fazer os pagamentos. 

Mas é algo que conseguimos contornar via Junta de Execução Orçamentária (JEO)”, garantiu, em entrevista ao Estadão/Broadcast, a secretária de Assuntos Internacionais e Desenvolvimento da Pasta, Renata Amaral. De acordo com ela, a prioridade nos pagamentos até o momento foi restabelecer o direito do Brasil a voto nesses organismos, além de resgatar a capacidade do País se financiar com fundos para os quais havia parado de contribuir em governos passados. “Já está mudando a imagem do Brasil lá fora. Brincamos com o Itamaraty que estamos ajudando a não passarmos mais vergonha no exterior. 

Já estamos sentindo essa diferença nas visitas ao exterior”, relatou a secretária. Amaral lembra que os aportes anuais a organismos internacionais passam a ser considerados despesas obrigatórias a partir do orçamento de 2024. “Aí não tem mais desculpa. Isso vai evitar constrangimentos e evitar que o Brasil perca o lugar de fala nesses lugares. Ainda mais agora que o presidente Lula tem uma agenda internacional agitada”, acrescentou. A principal agenda internacional do Brasil para o próximo ano é a presidência rotativa do G20, que implica na realização de uma cúpula de chefes de Estado e um extenso cronograma de reuniões setoriais no âmbito ministerial. Assumir o posto implica desafios ao compromisso do governo em cumprir a meta de resultado primário zero em 2024. 

 Apesar do pedido do Planejamento para as pastas separarem recursos de suas despesas discricionárias para a organização dos eventos, Amaral admite que o governo precisará da ajuda financeira de organismos multilaterais para dar conta de toda a estrutura demandada pelo G20. “Todos sabem que o orçamento para o próximo ano é apertado. Vamos contar com organizações internacionais para aportarem recursos, mas isso aconteceu com outras presidências do grupo também. O G20 é um monstro, e a nossa ideia é ter menos reuniões e comitês presenciais do que houve na Índia este ano. Há uma percepção de que o número de encontros foi exagerado, isso não vai se repetir”, adiantou a secretária. Passadas as entregas do Plano Plurianual (PPA) e do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2024 ao Congresso na semana passada, Amaral agora quer turbinar a participação da ministra Simone Tebet nas agendas internacionais do governo. 

Com apenas uma ida ao Panamá, em março, a ministra deve representar o Brasil na semana que vem em reunião entre a União Europeia e a Celac, em Santiago de Compostela, Espanha. “Temos uma previsão de viagem a Washington em novembro, para reunião do BID. Em 2024 vamos estruturar uma visita à OCDE, em Paris. Tebet esteve muito envolvida na pauta interna de reconstruir o ministério e, entregues esses projetos, temos um pouco mais de liberdade para usar ela. É importante ela ter maior participação internacional”, concluiu.


domingo, 10 de setembro de 2023

Lula viaja pelo exterior com discursos entediantes enquanto Brasil afunda, diz Mangabeira Unger (Estadão)

Lula viaja pelo exterior com discursos entediantes enquanto Brasil afunda, diz Mangabeira Unger

O Estado de S. Paulo, 10/09/2023

O filósofo Roberto Mangabeira Unger, conselheiro e guru do ex-candidato à Presidência Ciro Gomes, pegou aliados de surpresa ao pedir a desfiliação do PDT. Em entrevista ao Estadão, Unger fez críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e afirmou que tomou a decisão por discordar do alinhamento “passivo” do partido com o governo diante dos rumos da gestão petista e da falta de um projeto para o Brasil. 

Unger está no PDT desde a redemocratização e foi conselheiro de Leonel Brizola, fundador da legenda e ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. O filósofo é professor de Direito da Universidade Harvard nos Estados Unidos e foi ministro de Assuntos Estratégicos da Presidência da República durante o segundo mandato de Lula, em 2007, e no segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2015. 

Ele está por trás de muitas ideias lançadas por Ciro Gomes nas últimas eleições presidenciais, principalmente daquelas relacionadas à necessidade de o Brasil ter um projeto nacional de desenvolvimento. Para Mangabeira Unger, Lula está repetindo um modelo que impede o avanço do País. É o que ele chama de casamento entre o “pobrismo” — distribuição de “esmolas” por meio de programas assistenciais — e o “rentismo” — o domínio dos interesses financeiros sobre a produção. 

O presidente Lula parece estar desinteressado do Brasil. Parece que é mais agradável ficar viajando pelo exterior, frequentando essas reuniões em que ele pronuncia discursos entediantes.” 

Confira os principais trechos da entrevista: 

Por que o senhor saiu do PDT? 

Eu tenho uma associação antiga com o PDT porque eu considerava o Leonel Brizola o meu grande aliado político. O PDT sempre serviu para representar uma alternativa ao País e agora não representa, mas faz parte de um governo que claramente não tem projeto. Qual é o projeto do governo Lula atual? É compor-se com o mercado financeiro, aceitando a ascendência do rentismo financeiro. Segundo, distribuir esmola aos pobres, o pobrismo. E, terceiro, vender soja, carne e minério de ferro. Esse é o projeto, ou o antiprojeto. 

O correto seria o PDT não participar do governo ou, mesmo dentro do governo, fazer um contraponto? 

Com realismo, o PDT não poderia participar do governo. O País está numa situação gravíssima, 100 milhões de pessoas não têm acesso a uma rede de esgoto, 35 milhões não têm acesso à agua potável, a maioria está endividada, a maioria da nossa força de trabalho está na informalidade ou na precarização. Não há qualquer indício de um projeto nacional produtivista e capacitador, e o presidente se refugia viajando no estrangeiro em projetos de vaidade pessoal. As forças que representariam uma alternativa, o PDT, o PSB, o PCdoB, todas estão se transformando em linhas auxiliares desse antiprojeto nacional. 

A decisão está alinhada com Ciro Gomes ou antecipa algum posicionamento dele? 

Não. A decisão é minha. Ciro Gomes não precisa de porta-vozes e ninguém precisa representá-lo. É uma decisão de consciência para lutar por uma alternativa nacional, produtivista e capacitadora. É o que nós não temos no Brasil. O que vemos é uma tendência de desviar a atenção do País desse quadro de marasmo, de mediocridade, para assuntos simbólicos, para a política identitária, que é o inverso das guerras culturais da direita, e declarações estapafúrdias do presidente da República, como esta de que os ministros do Supremo Tribunal Federal poderiam votar em segredo. 

"As forças que representariam uma alternativa, o PDT, o PSB, o PCdoB, todas estão se transformando em linhas auxiliares desse antiprojeto nacional.” 

Por que o senhor tinha se filiado ao PDT?

Foi lá quando começou a abertura do regime militar. Eu vi o PDT como uma força que se preocupava com a maioria desorganizada, e não com as minorias organizadas. No PT, eu via, em vez disso, uma tentativa de privilegiar as minorias organizadas e uma política de humanização das realidades brasileiras. A nossa tarefa não é humanizar o inevitável, a nossa tarefa é reconstruir as instituições. Agora, o PDT, aparentemente, quer fazer parte desse conjunto de linhas auxiliares do projeto petista. 

O PDT não é mais o mesmo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro? 

Claramente, não é o mesmo. E esta decisão de participar passivamente de um governo Lula que não tem projeto algum é a pedra de cal, é a abdicação de qualquer projeto que mantenha continuidade e coerência com o que foi o nosso projeto inicial. Mas eu não gostaria de ver esse gesto sobretudo sob o ângulo da ortodoxia partidária. O ponto central é a situação calamitosa em que estamos no Brasil e a necessidade agora de juntarmos todas as forças, sem preconceitos, para criar uma alternativa nacional. 

Quem pode representar essa alternativa nacional? 

Na última eleição, apoiei com entusiasmo a candidatura do Ciro Gomes, que eu via mais próxima dessa alternativa que eu defendo. O que será para o futuro eu não sei. A nação terá que encontrar ou criar suas lideranças nesse processo de resistência que agora precisa começar. 

Como o senhor avalia a declaração de Ciro Gomes de que não pretende mais concorrer à Presidência? 

O Ciro tem grande consciência cívica e compromisso com o destino do Brasil e de alguma forma ou de outra continuará participando da vida pública do País. Mas a minha ação agora não tem nada a ver com isso. É uma convicção minha de que eu não posso aceitar essa atitude de abdicação a que o PDT se entregou junto com tantos outros de quem nós esperávamos uma atitude de resistência e construção. 

Qual é papel do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na repetição desse modelo que o senhor critica? 

É meu amigo, foi meu amigo há muitos anos, mas agora ele está ativamente participando dessa política. Ele é um dos arquitetos dessa política, que afirma o casamento do financismo e do pobrismo em que as contas são pagas pela agricultura, pela pecuária e pela mineração. Se elas não estivessem pagando as contas, nós já estaríamos no chão, numa crise econômica decisiva. 

É possível governar o Brasil sem repetir esse modelo? 

É claro que um projeto produtivista e capacitador só se efetivará no Brasil tocando o chão das realidades regionais. Em cada região do Brasil, o caminho da qualificação produtiva e da capacitação está bloqueado. Esta tem que ser a agenda prioritária do País. Não é o presidente ficar viajando pelo exterior e lendo discursos que são escritos para ele enumerando platitudes açucaradas como se estivesse se candidatando ao Prêmio Nobel da Paz ou a mais diplomas honoris causa, enquanto isso o Brasil afundando no primitivismo produtivo e educacional

A entrada do Centrão no governo Lula agrava o problema? 

Eu não vejo a desorientação e a mediocridade dos partidos como a causa desse quadro, elas são a consequência. A explicação é não haver um projeto forte encampado por quem deveria ter o projeto, que é o presidente, o governo. Os partidos deveriam se posicionar em relação a isso, mas nós não podemos esperar agora da elite política. Se os políticos não resistirem a essa situação, nós, os cidadãos, temos que falar pelo Brasil. 

"Nós não podemos esperar uma conversão do presidente Lula porque é sempre muito mais difícil mudar uma pessoa do que mudar um país.” 

Quais são as diferenças do Lula no primeiro e no segundo governo e do Lula agora no terceiro mandato? 

Havia ambiguidade nos mandatos anteriores de Lula, havia uma luta entre tendências produtivistas e tendências compensatórias. O presidente me convenceu a participar do governo em seu segundo mandato sob esse argumento de ajudá-lo a construir um projeto nacional e produtivista e eu fiz o que pude. Pelo menos, enquanto eram só propostas, o presidente Lula apoiava, até com entusiasmo. Quando eu percebi relutância em traduzir essas propostas em políticas públicas efetivas, eu comecei a me afastar do presidente e fui trabalhar com os governadores. 

O senhor costuma falar que fala com sotaque, mas não pensa com sotaque. O presidente Lula está pensando com sotaque, nessa perspectiva? 

O presidente Lula parece estar desinteressado do Brasil. Parece que é mais agradável ficar viajando pelo exterior, frequentando essas reuniões em que ele pronuncia discursos entediantes. Os outros chefes de Estado, que são homens sérios de poder, mal conseguem disfarçar o cansaço ao ouvi-lo. Eu não sei por que ele está fazendo isso. Eu posso afirmar ao presidente Lula que o Brasil é um país extremamente interessante e é muito mais interessante do que esses países que ele está visitando. Mas nós não podemos esperar uma conversão do presidente Lula porque é sempre muito mais difícil mudar uma pessoa do que mudar um país. Então, em vez de tentar abrir os olhos do presidente Lula, tratemos de abrir os nossos próprios olhos. 

Por onde começar um projeto de desenvolvimento para o Brasil? 

Teríamos a tarefa de construir uma forma includente da economia do conhecimento em todos os setores, em cada região do País, de acordo com as realidades de cada região. Não há como pretender voltar à velha indústria. O Brasil fervilha de criatividade, energia empreendedora, há uma multidão de emergentes que encarnam essa energia produtivista. Atrás deles estão milhões de trabalhadores ainda pobres, os batalhadores, mas que já assimilaram a cultura da autoajuda e da iniciativa. O nosso grande projeto é construir as estruturas que permitam transformar esse dinamismo desequipado e inculto em flexibilidade preparada. Esse é o projeto e há um mundo de possibilidades, mas estamos evadindo todas elas pelo discurso açucarado das compensações e pela submissão aos interesses financistas. 

Créditos: Estadão.