Em dezembro de 2002, o presidente eleito em outubro daquele ano, viajou aos EUA, para encontrar-se com Bush Jr., com grande apreensão dos assessores sobre como iria desenvolver-se tal encontro, entre um esquerdista sindicalista, amigo de Fidel Castro, e o republicano conservador, inimigo dos cubanos e dos esquerdistas em geral.
Eu estava seguro de que o encontro transcorreria muito bem, mas, precavido, elaborei algumas notas para "assessorar" esse encontro. De toda forma, não creio que elas tenham sido jamais lidas pela equipe do novo presidente, ainda que eu conhecesse alguns membros do seu governo.
Em todo caso, esse texto permanecia inédito até o presente momento. Não tenho porque não revelá-lo agora, em toda a sua ingenuidade política.
Tudo correu bem, mas isso não mudou muito na relação...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 agosto 2018
O que se deveria dizer ao Império (e o que não dizer)
Notas indicativas para um encontro ameno e sem prevenções
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 2 dezembro 2002
Prolegômenos:
As notas que seguem abaixo não têm nem a pretensão de se substituir a subsídios profissionais preparados por algum serviço público de relações exteriores, em previsão de próximas viagens de líderes políticos, nem aspiram ser lidas como recomendações únicas ou exclusivas para um primeiro diálogo com o representante principal da única potência imperial de nossa época. Elas foram redigidas mais no espírito do auto-esclarecimento do que em função de algum objetivo didático externo, mas não se deve tampouco descartar uma tal finalidade, a critério do próprio leitor, uma vez que elas condensam experiência prática no terreno da política externa do Brasil e algum conhecimento direto das relações internacionais enquanto tais, com ênfase no convívio diário com – e uma intensa leitura sobre – o funcionamento do Império no período recente.
Como regra de princípio, deve-se ter presente o seguinte quadro de descompassos, na atual fase das agendas respectivas do Império e do Brasil. As prioridades principais (e aparentemente exclusivas) do Império são: terrorismo, terrorismo, terrorismo, com alguma abertura para os temas tradicionais da segurança internacional (não proliferação, disseminação de outros perigos nas vertentes estratégicas e dos conflitos regionais, relações com as grandes potências), PONTO. Em quinto lugar, talvez apareçam questões de comércio internacional, de negociações regionais (Alca), mas isso depois do narco-tráfico, de Cuba e de outras questiúnculas próprias aos lobbiesque frequentam os salões e corredores washingtonianos (com preeminência para a sobrevivência de Israel, o desafio demográfico do México e outros problemas menores, PONTO). As prioridades do Brasil são (ou parecem ser): desenvolvimento, desenvolvimento, desenvolvimento, PONTO (com algumas ilusões em relação a um diálogo frutífero com o próprio Império).
Como segunda regra de princípio, também deveria ficar claro o seguinte: é impossível qualquer diálogo equilibrado com o Império (e isso não se deve, de modo algum, à relativa desimportância do Brasil no plano mundial, mas vale também para outras potências menores, como França, Rússia e todo o resto). O Império não dialoga com ninguém, PONTO. Ele simplesmente comunica ao mundo o que pretende fazer, cabendo a esse mesmo mundo tentar acomodar suas pretensões. Em determinadas circunstâncias ele manifesta aspirações que eventualmente podem ter de passar por alguma forma de “interação” com a chamada “comunidade internacional”, mas sua paciência é limitada. Invariavelmente, ele recolherá o assentimento de Israel e da Grã-Bretanha e fingirá que ouve os demais, mas na verdade está sempre pronto a agir unilateralmente, desde que as condições estejam reunidas para sua ação decisiva (com ONU ou sem o grand machin).
Não se pode acreditar, assim, que haverá qualquer “diálogo” com o Império, mas apenas e tão somente uma troca de opiniões ou de “impressões”, que no entanto não pode ser encarada como totalmente inútil ou dispensável, nas presentes circunstâncias de desequilíbrio da balança de poderes no plano mundial. Para um primeiro encontro, aliás, cabe tentar estabelecer uma relação o tanto quanto possível de “empatia”, pois novos encontros ocorrerão, com os velhos e novos problemas de uma relação desigual. Como é difícil evitar um parceiro elefantino como esse, caberia desenvolver, em conseqüência, as melhores relações possíveis, de modo a evitar futuros “trompaços” involuntários.
Feitas essas advertências preliminares, vejamos como organizar esse “diálogo” potencial, partindo do pressuposto de que as observações que se seguem são feitas da capital do Império, não a partir do hemisfério sul, o que explica que vários pontos dessa “agenda desequilibrada” levam em conta apenas expectativas imperiais, não esperanças meridionais (que de resto são bastante conhecidas de nossos serviços especializados, os quais certamente prepararão copiosas e detalhadas notas sobre os “interesses do Brasil”).
Nota preliminar: Comece perguntando pela familia, como vai a patroa, faça propaganda do seu avião, pois sempre serve para quebrar o gelo e dá uma introdução coloquial às conversas mais “sérias” que seguirão, mas não precisa descer ao detalhe de indagar se as crianças já começaram a dar suas escapadas em barzinhos com os amigos e outras coisas mais censuráveis, pois poderia causar constrangimento involuntário, estragar a festa e entortar o cenário.
1. Segurança e terrorismo:
O que dizer: o Brasil “compreende” as preocupações primordiais do Império com sua segurança nacional e as ameaças reais à sua população advindas do terrorismo, e por isso “admite” amplamente que a administração tem todo o direito de “adotar as medidas” que considera necessárias para “eliminar” as fontes do terror da face da Terra e mesmo as “ameaças potenciais” nessa área (completar, eventualmente), ainda que temporariamente à margem do sistema multilateral (justificativa: a ONU é importante, mas não lhe cabe, ou ela não pode, garantir a segurança dos cidadãos do Império, o que constitui obrigação dos próprios líderes nacionais). O Brasil está “pronto a cooperar” na luta contra o terrorismo, no “quadro do sistema multilateral”, mas também em “estreita cooperação bilateral” com o Império, PONTO. O Brasil compreende nesse contexto as iniciativas que o Império vem adotando em relação à situação do Iraque e “estima” que o Império procurará atuar em coordenação com a comunidade internacional, no limite do possível, PONTO. O Brasil “entende” a necessidade de o Império passar à ação como medida de autodefesa frente ao imponderável das armas de destruição em massa, PONTO.
O que não dizer: Dispensável dizer que o Brasil só admite ações militares depois de esgotadas todas as possibilidades multilaterais de resolver conflitos pacificamente e ainda assim mediante as autorizações devidas do Conselho de Segurança, e mais ainda que não admitimos o unilateralismo, o desrespeito à auto-determinação dos povos e outras tiradas do gênero. Tudo isso é conhecido do interlocutor e roubará preciosos minutos da conversa, que poderia estar dirigida a coisas mais interessantes. Não perca tempo com o diplomatês habitual que lhe será servido nas fichas bem organizadas do serviço especializado: isso só serve para fins externos e faz a conversa ficar aborrecida.
2. Comércio mundial e Alca
O que dizer: o Brasil está pronto a “admitir” que o livre comércio pode, sim, constituir-se em poderoso fator de prosperidade, internacionalmente e no hemisfério, mas como os acordos alcançados raramente consagram esse princípio em sua plenitude (sendo condicionados a pressões setoriais por proteção e subvenções), se reserva o direito de examinar com todo o cuidado os resultados efetivos das negociações multilaterais e no quadro da Alca, para determinar se eles contemplam seus interesses legítimos, PONTO. O Brasil “admite” a postura de “abertura real” de seus mercados ao comércio e investimentos estrangeiros, mas entende que está em seu direito receber contrapartidas à altura de suas expectativas. Em resumo, pretende uma Alca equilibrada e equitativa.
O que não dizer: Não vale a pena insistir na adoção de medidas compensatórias, correção de “assimetrias estruturais”, programas para combater desigualdades sociais e outros mecanismos típicos de mercados comuns: isso não vai existir numa simples zona de livre comércio como a Alca (aliás, nem num eventual acordo UE-Mercosul) e só vai confirmar as piores suspeitas de que o Brasil quer mesmo “arrastar os pés” na questão do livre comércio. De toda forma, constate a inutilidade desse tipo de demanda: ela nunca vai se aplicar ao Brasil, e só servirá para colocar uma azeitona na empada dos sócios menores.
3. A ordem global: uma proposta modesta
O que dizer (só): Tome a dianteira e diga que o Brasil entende que a verdadeira “segurança” é estabelecida quando os povos e as nações vislumbram novas possibilidades de “desenvolvimento compartilhado” e que isso se fará com o reforço dos “mercados”, da “democracia” e do “respeito aos direitos humanos”.
O Brasil propõe que o Império lidere um global new dealem favor desse objetivo comum de desenvolvimento abrangente da humanidade. Quais seriam os requisitos básicos desse contrato global em favor da prosperidade dos povos?
Por um lado, ambientes nacionais favoráveis ao respeito aos contratos, à defesa dos direitos de propriedade, predisposição à abertura comercial e aos investimentos, reforço das instituições democráticas e respeito aos direitos humanos. Por outro, um processo real de desmantelamento das estruturas nacionais de proteção nos países mais ricos, com real abertura dos mercados em favor dos países em desenvolvimento e programas de capacitação educacional e técnica nestes últimos, fazendo da educação o vetor principal da cooperação internacional nos próximos vinte anos.
O Brasil está pronto a trabalhar em favor da promoção desse global new deal, mas entende que a iniciativa deve partir do próprio Império, com o apoio das instituições multilaterais de cooperação ao desenvolvimento. A idéia básica é que apenas um esforço “positivo” em favor de da prosperidade e do bem-estar dos povos pode compensar as iniciativas “negativas” em favor da supressão do terrorismo e das fontes de instabilidade política e econômica no mundo contemporâneo.
Bastam esses três pontos (por certo não coincidentes com a dezena, ou mais, de questões redigidas num diplomatês insípido, que lhe serão passadas pelos serviços especializados) para alimentar uma conversa amena – entrecortada de “causos pessoais”, referências à infância e à sapiência das mães e esposas –, o mais possível desprevenida em relação às “más intenções” do parceiro e, se possível, desprovida daquela aridez típica das informações burocráticas integrando as agendas numeradas. Aproveite para uma nova inserção publicitária sobre as qualidades do “seu” avião.
Não tente abarcar o mundo nos estreitos limites de uma simples conversa que foi concebida apenas para um primeiro contato pessoal, não para resolver qualquer problema da humanidade ou de cada um dos países. Haverá tempo para isso, nessas conferências chatérrimas onde o protocolo é de rigor e os discursos têm virtudes dormitivas. No momento, relaxe e deixe a iniciativa de alguma piada para a outra parte mas, por favor, sem retaliações: lembre-se que as brincadeiras raramente sobrevivem às interpretações pouco simultâneas (algum engraçadinho sempre ri na frente...).
Nota final: Não se deve superestimar (ou subestimar) a inteligência (ou a desinteligência) de parceiros potenciais, sobretudo em relações obrigatórias como essas entre líderes políticos. Surpresas acontecem (aliás, nos dois sentidos) e os fatores de empatia geralmente têm pouco a ver com alguma avaliação racional que se faça em função de questões objetivas colocadas na agenda bilateral por burocratas bem intencionados. Amizades bizarras, assim como os casos de amor à primeira vista, acontecem nas circunstâncias as mais inesperadas. As melhores situações “relacionais” são as que emergem naturalmente de uma conversa sem pauta e sem necessidade de “resultados” (que só servem para contentar o público externo ou a mídia, mas não se deve ficar prisioneiro dessas convenções). Incidentalmente, a situação ideal seria uma que dispensasse notas preparadas por assessores, inclusive observações pouco ortodoxas como as alinhadas no presente texto.
São Paulo-Brasília, 985: 20 novembro 2002, 3 pp;
Revisto e ampliado em Washington, 2 dezembro 2002, 5 pp.