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domingo, 2 de junho de 2024

Churchill quase colocou De Gaulle Inglaterra afora, às vésperas do Dia D - Alix Champlon

 SOCIÉTÉ

Cette lettre de Churchill qui aurait pu changer le cours de l’histoire

Alix Champlon - 2 juin 2024 

... et mettre fin à la carrière du général De Gaulle.

«Je ferai savoir au monde que la personnalité du général de Gaulle est le seul et principal obstacle entre les grandes démocraties de l'Ouest et le peuple de France». | Imperial War Museum via Wikimedia Commons  (Repéré sur The Guardian)

Tout début juin 1944. Winston Churchill fulmine. Dans quelques heures, la plus importante opération militaire amphibie de l'histoire doit être lancée en Normandie, pour libérer le continent.


Mais le premier ministre britannique, exaspéré par les exigences du général Charles de Gaulle, alors dirigeant du Comité français de libération nationale, fraichement arrivé d’Alger, prend la plume. Cette lettre, découverte juste avant les commémorations du 80e anniversaire du débarquement en France, parmi les documents conservés aux Archives nationales de Kew, met en lumière la relation houleuse des deux chefs de guerre. The Guardian revient sur son contenu.

 

«Je ferai savoir au monde...»

À l’origine de la fureur de Churchill, le refus De Gaulle de participer à l’enregistrement et la diffusion radiophonique d’un discours avant le débarquement, et le blocage de l'envoi d'officiers de liaison français pour accompagner les troupes alliées en France.


«J'ai essayé à maintes reprises, pendant quatre ans, d'établir une base raisonnable pour une camaraderie amicale avec vous. Mais votre action à ce stade me convainc que cet espoir n'a plus lieu d'être», introduit Churchill, pour dénoncer l’ordre donné aux «120 officiers de liaison français, qui ont été si soigneusement formés à accompagner les armées anglo-américaines en France» d'abandonner «l'effort de libération en cours».


MONDE


La cornemuse, l'arme inattendue du Débarquement


«Quelle que soit l'attitude qu'ils adopteront, elle ne diminue en rien le caractère odieux de votre action, et je me dois de vous dire qu'à la première occasion qui se présentera (…) je ferai savoir au monde que la personnalité du général de Gaulle est le seul et principal obstacle entre les grandes démocraties de l'Ouest et le peuple de France» menace-t-il.«Je ne vois aucune utilité à ce que vous restiez plus longtemps», conclut le premier ministre«Un avion sera à votre disposition demain soir, si la météo le permet».


Finalement, le général De Gaulle cèdera sur les demandes des Alliés. Du moins, en partie : il accepte de prononcer un discours sur le service francophone de la BBC, et permet à 20 officiers de liaison français, parmi les 120, de rejoindre les forces alliées pour prendre d'assaut les plages normandes. La lettre, annotée au crayon bleu d’un bandeau «NE PAS ENVOYER», ne partira pas. Elle reste malgré tout le témoignage d'une relation orageuse, que Charles de Gaulle entretiendra avec la Grande-Bretagne jusqu'à la fin de sa carrière, même après-guerre.


sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Portugal-Inglaterra: a mais antiga alianca diplomatica do mundo - tratado de 1353

Esse tratado deixou de existir, mas os dois países mantêm outro, o mais antigo do mundo, de aliança e amizade, feito bem antes do Reino Unido, logo depois da restauração portuguêsa de 1640. Como nunca foi denunciado, permanece em vigor, por mais de três séculos...
Grato a meu amigo Paulo Werneck por mais esta pérola.
Paulo Roberto de Almeida

Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra (II)
Blog Guardamoria, 01 Jan 2015
Paulo Werneck

Recentemente encontrei, em Internet Archive, a coleção dos 18 volumes do "Quadro Elementar das Relações Politicas e Diplomáticas de Portugal com as Diversas Potencias do Mundo Desde o Principio da Monarchia Portugueza Até aos Nossos Dias", redigido pelo segundo Visconde de Santarém, diplomata e historiador.

A coleção registra documentos - tratados, cartas, até mesmo eventos - que mostram as relações de Portugal com o resto do mundo, desde priscas eras, os volumes organizados cronologicamente por nações.

O volume 14 contempla um extrato do tratado que denominei de Boa Vizinhança, que está copiada a seguir, para o leitor usar como uma segunda leitura do referido tratado, publicado na íntegra na postagem "Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra", com a minha tradução leiga:
Tratado de commercio por 50 annos entre Duarte III, Rei d'Inglaterra, e os mercadores, maritimos, e communidades da marinha das cidades e villas maritimas de Portugal, sendo Enviado destas Affonso Martins Alho, que assignou o mesmo Tratado.

Principia este acto pela forma seguinte: «Seja a todos notório, que as gentes, os mercadores, communidades (associações) das cidades maritimas de Lisboa e Porto, e outras do Reino e Senhorios do Rei de Portugal e do Algarve, enviárão Affonso Martins, chamado Alho, como seu mensageiro e procurador perante o excellente Principe, Edwardo pela graça de Deos Rei d'Inglaterra e de França, afim de se contractar e firmar um Tratado de amizade e alliança entre o dito Rei, seus vassallos e os povos, mercadores, maritimos, e communidades das ditas cidades maritimas de Portugal com todas em geral, e com cada uma dellas em particular para sempre, ou por um tempo determinado, em consequencia do que resolve e determina ElRei que se estabeleça uma alliança firme e d'amizade, afim de entreter a melhor affeição entre o dito Rei d'Inglaterra e a de seus vassallos, e os do sobredito povo e cidades maritimas de Portugal, para mutua vantagem e proveito de ambas as partes. Em virtude do que se estipulou o seguinte:

1.º Haveria a melhor intelligencia e firme alliança tanto por mar, como por terra, entre as ditas partes contractantes, por 50 annos a partir da data deste Tratado.

2.º Em consequência disso, os vassallos d'ElRei d'Inglaterra não serião injuriados nem maltratados, tanto nas suas pessoas como nos seus navios, mercadorias ou outros objectos a elles pertencentes, pelos mercadores e maritimos, ou communidades das cidades maritimas de Lisboa e Porto.

3.º Pela mesma maneira o povo, mercadores e communidades das sobreditas cidades não receberião injuria, vexação, ou prejuizo nas suas pessoas, navios, mercadorias ou outros objectos dos maritimos de Inglaterra, Gasconha, Irlanda e de Galles, nem de nenhum outro subdito d'ElRei de Inglaterra.

4.º Nenhum dos povos ou subditos de uma ou de outra parte poderia contractar alliança com os inimigos, opponentes, ou adversários da outra, nem causar-lhe prejuizo, nem prestar-lhe ajuda ou soccorro.

5.º Estipula-se igualmente que os subditos commerciantes, maritimos e quaesquer outros de que condição forem de uma e de outra parte possão livremente, e com toda a segurança, ir e voltar por mar ou por terra a todos os portos de mar, cidades e villas de um e de outro paiz, e passar por todos os logares dos ditos Reinos quando e onde lhes convier, assim como seus navios grandes e pequenos, e Iodas as mercadorias que trouxerem nos seus ditos navios, de qualquer paiz de onde ellas possão provir.

6.º Todas as disputas, dissensões e discórdias que existirão nos tempos passados, bem como todos os damnos e prejuizos causados por uma ou por outra das partes (contractantes) anteriormente á data do presente Tratado (se por ventura existem) serão (e annullandas) annuladas para sempre, e não se intentará nenhuma acção nem processo por nenhuma das duas partes.

Se porêm no futuro alguma das duas partes contractantes causar algum aggravo ou prejuizo á outra, neste caso o aggravo, ou damno será devidamente reparado pelos senhorios ou autoridades das partes respectivas, e a parte prejudicada será indemnizada das despezas que fizer no proseguimento da pessoa ou dos bens da pessoa que lhe tiver causado o prejuizo.

No caso porêm que esta não possua sufficientes mercadorias ou bens para pagar as multas será constrangido e preso, e justiça será feita em proveito da pessoa que soffreu o aggravo.

7.º Estipula-se também que no caso que ElRei d'Inglaterra, ou algum dos seus vassallos, tome ou ganhe sobre seus adversarios alguma cidade, castello, ou porto no qual se achem mercadorias, ou fazendas pertencentes ao povo, mercadores, maritimos ou communidades das cidades mencionadas (Lisboa e Porto, etc), ou navios nos quaes se encontrem mercadorias pertencentes ás mesmas, nesse caso o dito Rei d'Inglaterra e de França, ou a pessoa que commandar em seu nome, procederá a uma pesquiza sobre a pessoa em cujas mãos se achão taes mercadorias ou effeitos, fazendo taes diligencias conforme a Lei, e exibindo este Tratado, afim de que taes navios e mercadorias sejão restituidas e recobradas pelo povo, mercadores, maritimos ou outras pessoas das associações maritimas acima mencionadas, tendo estas declarado previamente com juramento que estas lhes pertencião.

Advertindo todavia que taes navios não estejão armados, ou que tenhão dado ajuda ou auxilio aos inimigos do dito Rei d'Inglaterra. No caso que algum dos ditos navios seja encontrado armado, ou lendo assistido ou soccorrido os inimigos do dito Rei, perderá os seus bens e das pessoas a quem pertencerem, mas que os outros que cumprirem lealmente este acordo não deverão experimentar nenhum damno.

Outrosim no caso que os vassallos do dito Rei d'Inglaterra e de França tomem ou capturem no mar, ou em um porto, algum ou alguns navios dos seus adversários e inimigos, e que nelles se encontrar algumas mercadorias ou objectos pertencentes ás ditas cidades maritimas, estas serão transportadas para Inglaterra onde serão cuidadosamente guardadas até que os interessados provem o seu direito a ellas.

Em idênticos casos o mesmo será observado pelo povo e marinha das ditas cidades a respeito dos vassallos do dito Rei d'Inglaterra.

8.º Outrosim se ajustou que os pescadores das ditas cidades maritimas (de Portugal) poderão ir pescar livremente sem incorrer em nenhum perigo nos portos d'Inglaterra e de Bretanha, e nos outros portos e logares que elles julgarem opportunos, pagando somente os direitos (costumes) devidos ao senhor do paiz.

Feito era Londres a 20 d'Outubro do anno da graça de 1353
Veja também:
Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra.

Fonte:
CARVALHOSA, Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e (Visconde de Santarém). Quadro Elementar das Relações Politicas e Diplomáticas de Portugal com as Diversas Potencias do Mundo Desde o Principio da Monarchia Portugueza Até aos Nossos Dias. Tomo 14. Segunda edição. Páginas 39 a 43. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1865. Disponível em Internet Archive (www.archive.org).

domingo, 19 de maio de 2013

Vinicius de Moraes declara seu amor 'a Inglaterra (1959)


POR QUE AMO A INGLATERRA

Vinicius de Moraes
Revista Senhor, Abril de 1959

            A Inglaterra não foi para mim um amor à primeira vista. Ao chegar a Londres, em agosto de 1938, em gozo da primeira bolsa para Oxford, dada a um brasileiro pelo Conselho Britânico, a cidade surpreendeu-me pela sua reserva. Senti, de fato, a poesia do grande porto, com meu navio a penetrar lentamente o Tamisa nas luzes  de uma antemanhã cinza-azul, toda povoada de lentas asas brancas de gaivotas. Mas quando enfrentei as calçadas de Piccadilly Circus, cerca de meu hotel, senti como se a cidade imensa estivesse se divertindo em observar o rapaz carioca – o rapaz carioca em quem o moleque-de-praia era “doublé” de um poeta um tanto metafísico e esotérico – em seu primeiro contacto com a austeridade do Império Britânico. E encabulei. Eram seis horas da tarde e havia multidões que passavam por mim sem me olhar, a dar-me a sensação de que eu era justamente o que minha vaidade de jovem poeta premiado não podia permitir que eu fosse: uma forma liliputiana a mais a passear no rosto gigantesco de Gulliver, acorrentado, mas a divertir-se com a pequenez dos seus conquistadores. Lembro-me de que, num dado momento, passou por mim uma família hindu, vestida a caráter, os homens de turbante, as mulheres envoltas em saris. Eu nunca tinha visto um hindu na minha vida. Aquilo foi demais para mim. Fui refugiar-me atras de um sherry no bar do meu hotel, de onde só sai para dormir, às nove da noite. No quarto, sozinho, senti um isolamento atroz, que me parecia vir da cidade infinita a trazer-me de vez em quando, adormecidos pela distancia, os ruídos informes de sua vida noturna.
            Foi só três ou quatro dias depois, ao tentar atravessar uma rua no momento errado, que me senti realmente protegido pelo Império Britânico, e comecei a achar que, malgrado a minha selvageria de menino de ilha, poderia amar a Inglaterra. Ao avançar, pousou-se sobre o meu ombro uma mão, a um tempo imperiosa e amiga que me fixou ao solo sem maior esforço. Olhei para o lado e vi, acima, muito acima de mim, mirando em frente, esse ser especial no mundo que se chama um guarda inglês, um constable: alto como a Torre de Londres, firme com a rocha de Gibraltar. Quando o momento de atravessar chegou, a pressão desfez-se do meu ombro, a mão retirou-se e  eu pude partir. Dei-lhe um olhar grato, a que ele respondeu com um outro, em que senti um frio e inteligente senso-se-humor.           
Uma semana mais tarde, numa tarde agônica,  constantemente cortada de uma chuva fina e neurastenizante, estando eu a comprar uma entrada para o concerto de Yehudi Menuhin, vi uma filha de guarda chuvas formada numa rua cerca do teatro. Dirigi-me para lá. Pouco depois passava, num automóvel, um senhor, ou melhor, um guarda-chuva famoso, a agitar na mão uma folha de papel para o povo que o aplaudia. Nesse senhor reconheci o Primeiro Ministro Neville Chamberlain e lembrei-me de que ele voltava de Munique. O papel em questão era o pseudo-compromisso de não declarar guerra, de Hitler, que, apesar disso, logo em seguida incorporaria a Tchecoslovaquia ao poderio alemão. Não dei muita importância ao fato, pois naquele tempo eu tinha apenas 24 anos e política não era o meu forte. Mas dois dias não eram passados e vi no rosto do homem das ruas de Londres de siso grave e olhar preocupado.  Li pela primeira vez nos seus traços o sentimento contido da cólera e achei que, desabafada, essa cólera deveria ser terrível.
            Não me lembro mais se foi na véspera de Munique, ou pouco antes que correu a noticia de que Londres seria bombardeada. Eu passara o dia em casa de um conhecido e ao sair à rua, sem saber ainda de nada, entrei no fog mais espesso que já vi na minha vida. Encostei-me em um edifício e resolvi esperar, e não sem um certo sentimento de estranheza no coração. Foi novamente um constable que me tirou da dificuldade, encaminhando-me, como um guia de cego, até um taxi; e só quando cheguei a meu quarto, numa pensão para onde me mudara – um quarto no subsolo, desses de onde se vê, através da janela, apenas os pés da humanidade – é que encontrei um bilhete do British Council mandando-me seguir com urgência para Oxford. Do céu noturno de Londres chegava-me, maciço e constante, o ronco dos aviões de caça, à espera de qualquer eventualidade. Era a minha experiência de guerra, mas não tive nenhum medo e resolvi desobedecer ao Conselho Britânico. Deitei-me e fiquei à escuta daquele ruído informe, sinistro e pressago, o ouvido atento ao silvo eventual da primeira bomba ou ao estilhaçar da primeira explosão. Aquilo tudo era, para mim, uma grande aventura, uma grande aventura que, misteriosamente me aproximava da Inglaterra e do seu povo. Achei dentro de mim que seria uma covardia eu desertar, abandonar Londres às bombas alemãs, não estar presente a sua defesa, não defende-la eu mesmo – à cidade que tinha mãos para proteger minha vida, cuidados maternos para com a minha inexperiência. E assim que acabei por dormir. Nunca cheguei a confessar ao Conselho Britânico a minha indisciplina, o que faço agora, certo de que no seu fair-play, a nobre entidade a estimara mais do que estimaria uma obediência mecânica e menos proveitosa, do ponto de vista  da experiência e do coração.
            Uma certa noite, depois de alguns drinques – e possivelmente one too many – eu cismei de subir o underground de Piccadilly Circus no sentido inverso. A escada rolante desce a uma velocidade razoável, e tratava-se de ultrapassar essa velocidade e atingir a plataforma superior da grande estação. Lancei-me à prova, que até hoje não sei como consegui terminar, tal foi o esforço empregado. Pois bem: fui formidavelmente encorajado por todos os que desciam, a me animarem com palavras e aplausos, havendo-se formado uma verdadeira torcida a meu favor. Não houve um só protesto contra a impertinência do estrangeiro a perturbar a boa ordem de um serviço de utilidade publica. Esse foi meu primeiro contato com o espirito esportivo inglês, e uma das razoes porque amei a Inglaterra e me senti tão bem em Londres.
            Depois, em Oxford, muitos outros elementos vieram  solidificar a estrutura desse sentimento de afetividade crescente para com a Inglaterra. Lembro-me, por exemplo, da primeira gafe que cometi à mesa de jantar, no grande hall de Magdalen College. Ignorante ainda dos usos e costumes da Universidade, alguma coisa fiz que foi notada pela high table, ou seja, a mesa do Deão e dos professores do colégio – os tutors, como são chamados - , o que me valeu receber um bilhete em latim, trazido por um mordomo numa pequena bandeja de prata. Segundo esse bilhete, eu deveria expiar minha gafe bebendo uma quantidade de cerveja suficiente para afogar um recém-nascido, cuja cerveja me foi trazida num fantástico canecão, cheio até as bordas. Vi todo mundo parar de comer e voltar-se para mim: mais de quatrocentos estudantes em suas capas pretas. Tratava-se de beber ou morrer. Levantei-me, tomei da enorme caneca e iniciei a prova. Até a metade foi tudo muito bem. Mas da metade para baixo, não sei até hoje como consegui ingerir aquilo. Sentia como se a cerveja me fosse sair pelos ouvidos, de tal modo estava locupletado. Mas o fato de ser o primeiro brasileiro com uma bolsa do Conselho Britânico para Oxford impôs o dever moral de não fazer feito, custasse o que custasse. E como fui encorajado, sobretudo na parte heróica da prova, pelos meus colegas. Quando acabei, a ovação foi geral. Dali por diante todos passaram a falar comigo afetuosamente, e comecei a ser convidado freqüentemente para os loucos parties nos quartos dos estudantes. Aí está Reginald Maudling, ex-aluno de Merton College, atual Ministro do Império Britânico e companheiro querido, que não me deixa mentir.
            De outra feita, um rapaz cujo nome não me lembro, disse à mesa coisas desairosas sobre o Brasil . Disse-o mais para implicar comigo, pois era o único estudante dos que sentavam perto de mim que parecia não ir particularmente com meu jeito. Na saída do hall, numa escada, ainda ajuntou algo mais, alto bastante para que eu ouvisse. Desci-lhe o braço, e não fosse a quantidade de estudantes que se aglomeravam na escada e que o sustentaram na queda, é possível que se tivesse machucado seriamente. Fui, muito amolado com a história, para o meu quarto, à espera dos seus padrinhos, que ele me disse mandaria imediatamente, a fim de que nós fossemos fight it out, nos grounds do colégio. Embora muito brigão em menino, sempre me desagradou a violência física, e não sei o que teria dado para ver o assunto resolvido amigavelmente. Pois bem: os deuses da boa educação inglesa tenderam aos meus rogos. Meia hora depois chegavam os padrinhos do rapaz, mas não para me levarem com eles. Para conversarem, sim, com os meus padrinhos, e apresentarem desculpas em nome do meu desafeto. Que ele reconhecia ter-se comportado mal e gostaria que eu esquecesse o acidente.
            Larguei todo o mundo e  fui, correndo e emocionado, ao seu quarto, onde nos abraçamos estreitamente. Depois disso ficamos bons camaradas, e só não o ficamos mais, porque, no período seguinte, ele saia da Universidade. Isso chama-se fair play: qualidade que se pode encontrar eventualmente em indivíduos, mas nunca tão universalmente como na Inglaterra.
            Não foi exatamente fácil para mim a vida em Oxford. Estranhei  de inicio, a quase total liberdade dada aos estudantes de trabalhar, numa espécie de desafio ao seu senso de responsabilidade. Meu inglês, apesar de o haver eu capinado duramente antes de sair do “Brasil, estava longe de ser perfeito, e tive de enfrentar um período preliminar de anglo-saxão, em cima do “Beowulf” e outros textos arcaicos da literatura inglesa. Chegava, uma vez por semana ao quarto de meu tutor em total desalento. Ele me encorajava. Que não desanimasse, era assim mesmo, logo me habituaria. Paralelamente, frequentava o curso de Poesia do Professor Fox, e devorava os livros que constituíam meu dever semanal. Mas atrapalhava-me muito o estado altamente lírico em que o ambiente universitário me deixava, agudizado ainda mais pela leitura, por minha conta, dos poetas modernos. À noite, em meu estúdio, pegava o violão, que tanto encantava minha landlady Miss Mourdaunt, e me deixava estar cogitando versos, sonhando a forma nova de minha poesia, que deveria realmente revelar-se a partir daí. Depois murava-me contra a poltrona, com uma tábua de escrever, e fazia versos sem parar. Quando me faltava o espirito, traduzia literalmente os sonetos de Shakespeare, que procurava depois recriar em português. Vivia às voltas com o dicionário de Oxford. Sabia que ali no meu colégio, tinha estudado Shelley, um poeta grandemente amado. Tudo isso me perturbava muito. Às vezes saia à noite, pelas vielas internas, para um passeio a coberto dos proctors, os guardiães da Universidade, que volta e meia passavam, nos seus bowler-hats, à cata de estudantes noctívagos. Sofria da beleza daqueles muros ilustres, daquela pedra patinada por séculos de cultura, como o exsudar dentro da noite o calor de sua sábia austeridade.
            Foi talvez o período mais fecundo de minha vida de poeta. O verso, a principio timidamente, foi-se afirmando numa forma cada vez mais enxuta e clara, como um anseio muito maior de comunicação. O soneto, principalmente, começou a impor-se a determinados temas com uma prestança nunca experimentada. Dois terços de meu livro Poemas, Sonetos e Baladas foram escritos em Oxford, a bem dizer nos primeiros seis meses universitários.
            Houve outros sofrimentos também, tirante os da vida puramente escolar. O caso é que, no Brasil, eu tinha remado, cerca de um ano no Clube de Regatas do Flamengo, sobe os palavrões de ensinamento de um palamenta[1] famoso como “Engole-Garfo”, que fizera num iole-a-dois[2] o raid Montevidéu-Rio de Janeiro. Tratava-se de um ambiente da mais total boçalidade, mas eu saíra do Clube sob a impressão de que era um remador. Assim é que, quando me perguntaram que esportes queria praticar, disse imediatamente: remos e boxe. Quem sabe não chegaria a disputar um dia um campeonato intercolegial...
Comprei calções extraordinários, camisas de lã fabulosas e lá fui através de Christ Church Meadows, para a barcaça de Magdalen College, ancorada à margem do Isis, que é o nome universitário do Tamisa em sua tranqüila passagem por Oxford. O instrutor pôs-me num esquife e, de sua bicicleta, à margem, ordenou-me com um alto-falante manual que desse umas poucas voltas pelo rio, que era para julgar de minhas possibilidades. O resultado é que eu, o remador do ‘flamengo, tive que remar quinze dias a seco, num esquife especial colocado em terra, para reaprender tudo de novo. Desde a posição das mãos nos remos ate o tempo das remadas estava tudo errado. Fiquei meio humilhado, mas embora nunca tivesse a honra de remar pelo meu colégio, nem por isso deixaram de me colocar numa guarnição que nas frias manhas de Oxford, remava como um só homem, antes da ducha quente na barcaça de Magdalen College.
            Com o boxe a experiência foi mais dolorosa ainda. Comprei luvas de seis onças, calções de primeira qualidade, sapatos apropriados, e ingressei na Academia da Universidade. Tive um mês de instrução, aprendendo o a-b-c do boxeador, e fazendo muita corda e muito saco de areia para endurecer a fibra. Depois passei para a punching ball e, de vez em quando, fazia um ou dois rounds com o meu instrutor. Mas meu instrutor era um santo, e nunca me acertava à vera. Uma bela tarde, chego à Academia e ele me anuncia ter destacado um aluno mais antigo para me experimentar. Fui para o ringue e não pude deixar de sorrir ante o físico do meu adversário. Tratava-se de um magriço, um rapazinho de minha altura mas muito menos sólido que eu, com as costelas à mostra e uns bracinhos finos, que as luvas pareciam engolir. Resultado, não o acertei uma só vez, e ele encaixou tantos que, no fim do terceiro round, completamente grogue e presa dessa horrível angustia da impotência diante da competência, fui dado como incapaz de continuar a luta. Confesso que não voltei à Academia nem sequer para buscar os meus apetrechos, que tinha deixado lá.
            Tudo isso, embora não desse ao mundo nenhum grande desportista, não deixou de incutir no primeiro bolsista brasileiro para Oxford um senso de esportividade. Torci muito pela minha universidade, nas grandes regatas contra Cambridge, que, ai de mim, perdemos nesse ano.
            E o que não dizer de minha grande divida à poesia inglesa, de que já falei atrás, mas sobre o que quero voltar. Que não dizer do que devo a esses poetas todos que, desde Chaucer, desde os anônimos elizabetanos, comecei a ler e amar, e que tanto me deram nos duros caminhos da poesia... O que não dizer da imensa divida à Shakespeare, para mim o maior dos poetas da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no texto dos Sonetos, sobre que teria feito a minha tese, não houvesse a guerra, que me apanhou em férias na França, impedido a minha volta à Universidade. O que não dizer das noites do terrível inverno de 1938, passadas no meu estúdio de High Street, em companhia de Milton, Dreyden, Blake, Eliot; das noites de releitura de tantos clássicos da meninice: Robinson Crusoé, Ivanhoe, Alice in Wonderland e o conhecimento de clássicos novos: Pilgrim’s Progress, Pride and Prejudice, Wuthering Heights, The Forsyte, Saga, Jude, The Obscure e tantos outros – o romance inglês a me oferecer um novo panorama da vida e da paixão dos homens e mulheres da Inglaterra.
            Eis por que amo a Inglaterra, e eis por que sua lembrança ficou em mim, todo esse tempo, viva e exata com a de nenhum outro pais jamais visitado e conhecido. Ao voltar a Londres depois de 16 anos, como me foi doce reconhecer ruas percorridas, rever edifícios familiares, olhar os doces telhados de Chelsea, onde morei, em King’s Road, e que me sugeriram o canto bilíngue de minha “Quinta Elegia”... E à BBC, onde trabalhei durante as grandes ferias de verão de 1938, nos primeiros programas para o Brasil, pude dizer com emoção: já fostes a minha casa. Pois foi em casa que me senti nela e em Londres; como, de resto, em toda aquela bela e grande ilha, ao mesmo tempo apaixonada e discreta, cordial e austera, pátria de poetas como não se viu maiores, na longa luta do mundo para realizar-se em tranquilidade e poesia.


[1] Conjunto do remo e suas peças numa embarcação a remos e também barco de dois remos.
[2] “palamenta”

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Margareth Thatcher, seu legado e a América Latina - Paulo Roberto de Almeida


Margareth Thatcher, seu legado econômico e a América Latina

Paulo Roberto de Almeida

Recebi, de um estudante de jornalismo preparando reportagem sobre a morte da ex-primeira-ministra Margareth Thatcher e seu legado econômico, as seguintes perguntas para responder:
2) A crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo econômico da ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao neoliberalismo se apropriam das crises econômicas dos últimos anos para fundamentar seus argumentos contra Thatcher?
3) Qual é o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser classificado em positivo ou negativo? 

Como as perguntas encontram-se na ordem exatamente inversa de importância substantiva, e de relevância jornalística, altero sua ordem e passo a responder sumariamente o que segue abaixo. Como também sei que apenas parte reduzida de minhas respostas será aproveitada na matéria em preparação, permito-me postar neste blog a integralidade de meu texto.

1) Qual é o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser classificado em positivo ou negativo?
PRA: Nenhum legado de dirigente político pode ser visto de forma maniqueísta, ou bom ou mau, ou positivo ou negativo, ou branco ou preto. Isso se chama reducionismo, ou simplismo. Todo dirigente, nas circunstâncias dadas em que recebe o poder e inicia um governo, tem de enfrentar um conjunto de desafios que são de diversas ordens: conjunturais (se o país está em crescimento ou em recessão, por exemplo), estruturais (se o país conhece um processo sustentado de modernização e de melhorias sociais), ou sistêmicas (como funcionam os sistemas de saúde, de educação, de segurança, a logística e o ambiente dos negócios, a infraestrutura, etc.). Para cada um desses conjuntos de problemas, o novo dirigente tem de fornecer soluções, em parte baseados em seu programa eleitoral (de candidato), em parte com base na expertise de seus auxiliares (ministros e outros dirigentes), e em parte ainda em função das possibilidades do governo em questão (déficit ou superávit orçamentário, desequilíbrios nas contas públicas, situação do balanço de pagamentos, carências sociais, etc.).
O Reino Unido que Margareth Thatcher “herdou” dos trabalhistas, em 1979, era um país em perfeita decadência, como eu próprio constatei, visualmente, ao visitar a Inglaterra pouco antes de sua vitória eleitoral: um país sujo, em constantes greves, com serviços públicos funcionando precariamente, desemprego, delinquência, inflação, déficits interno e externo, desconfiança e desalento da população, pouca confiança na sua capacidade de cumprir requisitos de defesa estabelecidos pela OTAN, enfim, quase um país de Terceiro Mundo, que no começo daquela década ainda havia enfrentado uma crise série de desvalorização da libra.
Esse era o resultado de décadas de um pacto perverso entre a “CUT” e a “Fiesp” deles, entre patrões e sindicatos, a TUC, o Trade Union Congress, que fazia chantagem para conseguir aumentos reais de salários para os seus afiliados, mesmo que isso significasse mais inflação para o resto da população e o Labour (mas mesmo o Partido Tory, os Conservadores) eram complacentes com esse estado de coisas, levando o país à prostração. O dono do venerável e mais do que secular jornal Times não podia tomar decisões quanto à modernização do seu parque gráfico, pois era o sindicato dos gráficos que decidia quantos trabalhadores eram necessários para rodar o jornal diariamente. Sindicatos de ferroviários, eletricitários, condutores de ônibus e até coveiros mantinham a população refém de suas chantagens salariais. Esse era o país que Thatcher assumiu.
A continuidade desse estado de coisas, depois de duas ou três décadas de “consenso” socialdemocrata levaria o Reino Unido a uma decadência ainda mais forte: sua economia já tinha sido ultrapassada pela da Itália (ainda em crescimento) e se colocava entre as últimas da Europa pela baixa dinâmica de investimentos e inovações. Pouco depois, a colônia Hong Kong, com seus milhões de chineses morando em sampans no Rio das Pérolas, ultrapassaria a metrópole em renda per capita, o que terminou de humilhar a Grã-Bretanha.
Se considerarmos que depois de Thatcher a Inglaterra era um dos países mais dinâmicos da Europa, com o dobro do crescimento dos países continentais, e a metade de suas taxas de desemprego, com um setor financeiro renascido das cinzas, e o país acolhendo investimentos estrangeiros, podemos considerar que, sob esse ponto de vista, seu legado foi positivo. Tão positivo que o Labour, obrigado a corrigir seu programa econômico esquizofrênico (datado de 1919, e que ainda recomendava coletivização da economia) e a manter praticamente intactas todas as realizações econômicas da era Thatcher. Algo semelhante ocorreu no Brasil, com o pacto perverso da CUT com a Fiesp produzindo inflação desenfreada nos anos pré-Real, com o PT se opondo de maneira desleal ao programa de privatização e tentando sabotar o Plano Real, se opondo (até no STF) à Lei de Responsabilidade Fiscal, acusando mentirosamente o governo que terminava de ter deixado uma “herança maldita” (quando foi a própria campanha de Lula e a política econômica esquizofrênica do PT que produziram a crise de 2002), para finalmente roubar o “software” dos inimigos demonizados de forma fraudulenta e passar a governar exatamente com os mesmos instrumentos e ferramentas do governo anterior, mantendo todas as suas políticas. O Labour foi obrigado, como o PT o foi, a governar de forma mais racional e mais responsável. Esse foi o legado da Thatcher, como foi para o Brasil o legado de FHC e do PSDB para o governo de Lula e do PT.

2) A crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo econômico da ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao neoliberalismo se apropriam das crises econômicas dos últimos anos para fundamentar seus argumentos contra Thatcher?
PRA: A crise de 2008 não tem nada a ver com um suposto modelo econômico de MT. Quem tem modelo econômico são acadêmicos de gabinete. Margareth Thatcher tinha um imenso desafio a resolver, o que ela fez, não aplicando algum modelo econômico, como gostam certos economistas teóricos e keynesianos de botequim, mas sim algumas ideias bem simples, como aliás se encarregam de lembrar que a filha de um quitandeiro chegou a ser primeira-ministra: um país, um governo, não pode viver acima de seus meios (e isso vale para uma casa, para uma empresa e para a economia nacional); uma empresa privada, buscando lucro, sempre será mais eficiente do que qualquer governo tentando prestar um serviço coletivo; uma empresa estatal sempre será deficitária, e buscará recursos no governo; sindicatos são máquinas de criar desemprego e reservas de mercado, assim como o fazem patrões protegidos da concorrência interna (por carteis) ou externa (por tarifas altas e protecionismo regulatório); concorrência sempre é boa para satisfazer os consumidores; controles de preços nunca dão certo; taxar muito o trabalho provoca desemprego; taxar muito o capital gera desinvestimentos e fuga de capitais; manipular juros e câmbio acabam dando em desastres e o melhor é deixá-los o mais possível próximos do equilíbrio de mercado; um país não pode estacionar no processo de modernização, e sim continuar sempre inovando e sendo competitivo para simplesmente não ser ultrapassado por economias mais dinâmicas; enfim, um conjunto de ideias simples que eram bem mais pragmáticas do que teóricas.
Se algum modelo havia em suas “receitas” para corrigir o país decadente que era o Reino Unido esse era o da economia liberal, cujos fundamentos ela foi buscar em Ludwig Von Mises e em Friedrich Hayek. Isso não tem nada a ver com neoliberalismo, um falso conceito inventado pela esquerda órfã do desastre socialista para tentar encontrar um rótulo qualquer para aqueles que estavam revertendo décadas de políticas keynesianas que levaram os países à estagnação e à crise. Se tratava de liberalismo clássico, apenas isso, aquele fundamentado em Adam Smith, David Ricardo, James e John Stuart Mill, e nos já citados economistas da escola liberal alemã ou austríaca.
A crise de 2008, como várias outras crises – basta ler o clássico de Charles Kindleberger, Pânicos, Manias e Crises – foi criada por uma bolha, como sempre ocorre (financeira, da bolsa, de títulos do governo, etc.). Desta vez foi a bolha imobiliária que precipitou a crise bancária americana e daí para o resto do mundo, pelo funcionamento em rede dos mercados financeiros. Quem criou a crise foram os governos, ao manterem juros artificialmente baixos, ao estimular indevidamente e exageradamente a construção imobiliária, ao expandir o crédito acima da capacidade de endividamento das família (e ao oferecer garantias falsas para casos de insolvências), enfim, ao manipular os mercados e os indicadores macroeconômicos. Ora, a economia liberal se coloca frontalmente contrária a todas essas manipulações do governo e prega, justamente, juros de mercado, garantias reais, investimento sustentado em ativos financeiros existentes, não em crédito criado artificialmente pelos governos; os liberais verdadeiros pregam inclusive falências bancárias, em caso de sobre-exposição dos bancos, assim como se coloca contra o monopólio emissionista dos governos, gerador de inflação e de desvalorização da moeda, deixando todos bem mais pobres.
Os supostos críticos do neoliberalismo deveriam dirigir suas baterias contra os governos, não contra os economistas liberais. Afinal de contas são os governos que fixam as taxas de juros, que emitem moeda, que expandem o crédito, que dão garantias aos compradores de casa (ao avalizar seus títulos hipotecários), são eles que manipulam o câmbio, não os mercados, que simplesmente reagem segundo as reações espontâneas e não coordenadas de milhares de agentes econômicos individuais, que estão sempre buscando valorizar ou aumentar seus ativos atuando de maneira especulativa. Os supostos crises do neoliberalismo estão totalmente equivocados em suas críticas a mercados desregulados, pois a regulação dos governos, e das instituições multilaterais – como BIS ou FMI, por exemplo – é muito intensa e extensa, apenas que feita por burocratas, que não podem, obviamente, prever todos os movimentos de milhares de agentes econômicos disputando fatias de ganhos especulativos nos mercados.
Os keynesianos são os mais equivocados de todos, pois eles acreditam que governos podem, impunemente, produzir bondades, apenas “injetando liquidez” nos mercados, ou seja, emitindo dinheiro, produzindo inflação, déficit ou dívida pública. O próprio conceito macroeconômico de Keynes é equivocado, ao ignorar as lições mais elementares da microeconomia, como a lei da oferta e da procura e do equilíbrio dos mercados. Não foi o neoliberalismo, nem a austeridade que provocou as crises na Grécia, na Irlanda ou em Portugal, e sim a prodigalidade gastadora dos governos, sua irresponsabilidade no tratamento da política monetária, as bondades distribuídas de forma irresponsável pelos políticos sob a forma de altos salários para os funcionários públicos, as pensões generosas, os muitos seguros sociais existentes (que levam a um exército de assistidos com o dinheiro público, ou seja, de todos), etc. Nenhum banqueiro ou especulador de Wall Street obrigou a Grécia a se endividar de forma irresponsável; foram seus governos que tomaram recursos externos (sob a cobertura do euro e das taxas de juros mais favoráveis) acima da capacidade do país, que dispunha de produtividade abaixo do aceitável para atuar da forma como fizeram seus dirigentes.
Não há tampouco legitimidade nas críticas dos sociais-democratas contra a política social de Margareth Thatcher, pois ela legou um país mais organizado, com mais investimentos e maior nível de renda, ultrapassando novamente a Itália e a França. Os problemas que advieram depois, muito depois, em 2008-2009, não têm nada a ver com a sua gestão, terminada em 1991, e continuada integralmente sob Tony Blair (assim como Lula continuou com as políticas de FHC, que estão sendo desmanteladas, todavia, a partir de 2006).

3) Gostaria de saber se houve de fato alguma influência da política econômica de Thatcher na América Latina. Caso essa influência seja real, de que forma ela ocorreu?
PRA: Não, redondamente não. Se houve, foi tardia, equivocada, incompleta, ou implementada fora dos parâmetros. A América Latina já estava em crise bem antes de MT começar seu ciclo de mudanças de política econômica exclusivamente talhada para a situação do seu país, sem nada a ver com a situação dos países latino-americanos. A crise destes tinha a ver com o esgotamento das políticas de crescimento para dentro, com forte introversão econômica, excessivo protecionismo, manipulações exageradas dos governos nos mercados de capitais, laboral, no câmbio, nas políticas relativas ao investimento estrangeiro (fortemente restringido, como aliás todo o comércio) e dezenas de outros exemplos de dirigismo excessivo, estatizações e monopólios abusivos, controles de preços, de estoques, tributação excessiva e outros pecados mais ou menos mortais. Mais do que tudo, os países abusaram da liquidez financeira provocada pela alta dos preços do petróleos e a reciclagem de petrodólares para se endividarem além da conta (aproveitando os juros baixos, aliás abaixo da inflação, ou seja negativos), e a partir da elevação dos juros pelo Federal Reserve, em 1979, se descobriram incapazes de honrar, sequer suas dívidas, mas o simples pagamento do serviço da dívida. Ou seja, os problemas dos países latino-americanos tinham algo a ver, mas em nada deviam à decadência inglesa pré-Thatcher.
Da mesma forma, a solução encontrada não se encontrou num suposto modelo “thatcheriano” de política econômica, e sim em respostas desenhadas pelos próprios países, com a ajuda do FMI e de economistas liberais, no sentido de inverter todas aquelas políticas descritas acima. A reversão começou no México, logo em seguida à sua crise da dívida externa (1982), num momento em que as políticas econômicas de Thatcher sequer tinham começado a fazer efeito, o que só ocorreu a partir de meados da década; depois as mesmas políticas foram aplicadas no Chile e paulatinamente em outros países (mas o Brasil e a Argentina foram os mais tímidos, ou incompetentes, em aplicá-las, e por isso conheceram crises hiperinflacionárias, desvalorizações cambiais, mudanças de moedas e outros desastres, já bem depois que Thatcher abandonou o governo inglês. É um mito que os países latino-americanos tenham aplicado suas políticas, inclusive porque elas eram inaplicáveis fora do contexto britânico, com exceção, talvez, das privatizações de monopólios estatais, o que aliás respondia simples bom senso (as estatais eram ineficientes, deficitárias e não atendiam aos consumidores), e não por que isso fosse determinado por sofisticadas teorias econômicas.
Esse amálgama indevido, fantasmagórico, inexistente, totalmente equivocado entre um suposto “thatcherismo” econômico, mais a chamada “reaganomics” – que tampouco existiu, pois o presidente era um ignorante em econômica, se contentando com algumas ideias simples, geralmente liberais, mas sobretudo pragmáticas, um pouco como Thatcher, aliás – e o famoso “Consenso de Washington”, e a alegada influência dessas ideias “neoliberais” – um conceito equivocado, como já se disse – na América Latina são construções surrealistas criadas por uma esquerda desprovida de ideias claras sobre os processos econômicos, e que se compraz em colar rótulos vazios em dirigentes que aplicam políticas que contradizem seu keynesianismo de botequim. O chamado “Consenso de Washington”, por falar nele, é posterior ao início da fase de reformas em alguns países da América Latina, e visa, justamente, condensar num conjunto de ideias simples (mais uma vez) os ensinamentos de quase dez anos de reformas econômicas na região. Ele está orientado pelos mesmos princípios: equilíbrio fiscal, baixa inflação, orçamentos realistas, taxas de juros e de câmbio bem mais determinadas pelos mercados do que pelos governos, privatização e desmonopolização, abertura a comércio e aos investimentos, proteção dos ativos proprietários, etc. Nunca falou da liberalização dos movimentos de capitais ou da abertura financeira, como parece ignorar a esquerda. E, tanto quanto o “thatcherismo”, ele nunca foi aplicado na América Latina como se fosse um modelo prêt-à-porter, aplicável em quaisquer circunstâncias. Esse é outro mito, e uma outra mentira de certa esquerda, que manifestamente não entende de economia ou de processos reais de governança econômica (geralmente acadêmicos que atuam com base apenas em slogans políticos).
O único exemplo, provavelmente, de políticas à la Thatcher aplicadas na região se referem, como já indicado anteriormente, às privatizações de monopólios estatais, mas isso era uma decorrência da própria situação falimentar dessas empresas, não que houvesse um manual thatcheriano para empreender essas medidas (tanto porque cada processo foi diferente de um país a outro, provocando resultados bons e outros maus). Abertura a investimentos nem é uma ideia thatcheriana, e sim uma velha realidade da região (e de todas as outras), enterrada durante a grande dominação keynesiana, nacionalista e protecionista das décadas de 1930 a 1980, e retomada a partir de então.
Infelizmente, a América Latina atualmente – não todos os países – parece retornar aos velhos tempos: fechamento econômico, protecionismo comercial, dirigismo econômico, reestatizações, controles de preços, manipulações cambiais, etc. O Brasil, também infelizmente, parece ter acompanhado a Argentina no seu retorno ao velho protecionismo dos anos 1970; espera-se apenas que ela não a acompanhe no retorno muito mais nefasto aos anos 1930: controles de capitais, distorções cambiais, centralização estatal de várias operações financeiras externas, o que seria um bilhete certo para o desastre econômico, que é para onde está apontada a Argentina. Nem se mencione, aqui, o desastre econômico da Venezuela, um país destinado ao desastre do seu socialismo petrolífero.
Uma Thatcher faria bem a vários países da América Latina: infelizmente não se criam líderes políticos com perfil de estadista facilmente, sendo bem mais prolífica a fauna de demagogos, populistas e falastrões (e seus conselheiros econômicos que merecem o título de keynesianos de botequim).

Paulo Roberto de Almeida (Hartford, 22 de abril de 2013)