Eu fui diretor do IBRI depois do Professor José Carlos Brandi Aleixo, seu primeiro diretor, hoje diretor de honra. Devo ter assumido no final de 1995, e fiquei até partir para Washington, em 1999. Flávio Saraiva me substituiu. Ele escreve aqui sobre o "nosso" instituto e a revista.
Paulo Roberto de Almeida
Um pensamento internacional do Brasil: a invenção do IBRI
José Flávio Sombra Saraiva
Mundorama, 6/12/2014
Comemoram-se nesses dias os 60 anos da criação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais - IBRI. O ano de 1954 permitiu que uma plêiade de intelectuais consolidasse, em forma institucional, conceitos inéditos acerca das potencialidades do Brasil no mundo que se desenhava naqueles anos.
A transição brasileira do mundo agrário para a industrialização, o impacto do congelamento do poder mundial, os debates duros da Guerra Fria, o desiderato do crescimento econômico em país na periferia, entre outros temas, moveram debates no seio das elites brasileiras que criaram o IBRI. Os fundadores ensaiaram, em estudos e ações, tanto em suas carreiras no Itamaraty quanto nos institutos públicos e privados, o novo lugar que podia alcançar o Brasil. Para vários deles, como Hélio Jaguaribe, o Brasil não poderia viver apenas nas margens do poder mundial. Deveria apresentar suas aspirações próprias no sistema mundial e deveria exercer certas margens de autonomia decisória.
Os inventores do IBRI vinham da geração nascida em torno do início do século XX, ou já na Primeira Guerra Mundial, colhendo, na juventude, a chegada do Brasil aos foros internacionais criados após a Segunda Guerra Mundial, como a ONU e o GATT. Entediam os criadores do IBRI que o nacionalismo poderia ser mais prático na exploração das potencialidades de uma inserção internacional compatível com o tamanho e as potencialidades de um país como o Brasil, relativamente diferente em seu meio latino-americano.
Os primeiros ibrianos enxergaram essa brecha dos anos 1950. Era um bom tempo para influenciar a inserção do Brasil nos debates mundiais. Para tal, urgia o debate e a discussão livres. Daí a idéia, acalentada por Paiva Leite, da criação de um veículo de discussão. Surgia a Revista Brasileira de Política Internacional, a RBPI, criada em 1958, que se tornaria um bom instrumento de reflexão e influência para as elites brasileiras interessadas em temas da inserção internacional do Brasil. A Política Externa Independente (PEI) foi anunciada nas edições ricas do início da década de 1960. Foi a PEI lançada antes nas páginas da RBPI e nos debates do IBRI, antes de ser apresentada ao escrutínio das políticas de Estado.
O IBRI foi criado no centro da furação político do Brasil, na velha capital, no centro da diplomacia nacional, com a intenção de ser “uma associação cultural, sem fins lucrativos,mantida por contribuições de seus sócios, doações de entidades privadas e subvenções dos podres públicos”, como indica seu estatuto de 1954. Seu objetivo era o de “promover e estimular o estudo imparcial dos problemas internacionais, especialmente dos que interessam à política exterior do Brasil.”
O IBRI emergiu com um novo Brasil. Desenvolveu-se, assistiu e instruiu as emergentes classes médias que começaram a se interessar pelas áreas internacionais dos jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Influenciou o ensino no antigo Instituto Rio Branco, ainda nos anos do seu funcionamento no Rio de Janeiro, até 1974, quando foi transferido para a nova capital. A formação de classes pudentes com vocação internacional, formados nas urbes, nas nascentes universidades brasileiras, ou parte pela diplomacia e do mercado, foram forças positivas que permitiram a elevação do debate das ‘coisas do mundo’ e da política externa do Brasil em âmbitos mais sofisticados.
Se os tempos eram propícios a essa invenção, a iniciativa da criação do IBRI se deve a pioneiros, originários da academia e da diplomacia, principalmente, mas que escrutinaram, naqueles anos, os meios para a ampliação da presença do Brasil no sistema mundial.
A criação do IBRI é, sobretudo, um marco da elevação do pensamento brasileiro das relações internacionais. Renascia com o IBRI o padrão histórico que insistira na seta do tempo da inserção internacional do Brasil. Esse padrão conferiu continuidade da política externa do Brasil (PEB). E é ainda invocada, aqui e acolá, nos tempos mais recentes da política externa do Brasil, sempre que há um movimento de busca de abertura de margens de poder e influência do Brasil no sistema internacional.
Esse conceito central no pensamento daquela geração do IBRI dos 1950 era a autonomia decisória. As diferentes significações do conceito no tempo - do nascimento do Estado nacional em 1822 àqueles dias buliçosos do nacionalismo brasileiro em brasa dos anos 1950 e 1960, dos conflitos políticos entre nacionalistas e liberais, bem como o concurso de projetos para um novo Brasil que se elevava no seio da sociedade internacional - todos esses temas estão anotadas nas discussões do IBRI de então e exaradas nos artigos dos primeiros volumes da RBPI, já em 1958 e 1959.
Um tema permanente foi a autonomia instrumental que um país às margens do poder mundial poderia exercer, mesmo sem poder nuclear. No fim da década de 1950, e mais ainda no início dos anos 1960, o conceito de autonomia decisória se fez jargão da política externa. O conceito penetrou em várias camadas sociais e políticas, no seio da sociedade, do parlamento às ruas. San Tiago Dantas deixou sua marca no IBRI e na RBPI. Sugeriu e praticou, com suas idéias de autonomia necessária, inflexão política nos governos do período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964. E, tenhamos coragem, também em parte em alguns momentos importantes do próprio governo dos generais.
Parece relevante anotar que, há 60 anos atrás, mesmo na dominância do léxico da Guerra Fria, conceitos brasileiros como o de desenvolvimento, desarmamento e a formação de um mercado regional na América Latina já eram noções difundidas pelos criadores do IBRI. Eis os temários do número 2 da Revista Brasileira de Relações Internacionais (RBPI), lançada no ano de 1958 pelos fundadores do IBRI: Oswaldo Aranha escrevera acerca das relações diplomáticas com a União Soviética, Gonzalo Fácio estudou o desarmamento como fator de desenvolvimento econômico na América Latina, Bezerra de Meneses já apontava a dimensão atlântica da política do Brasil com o artigo-alerta voltado para a era do petróleo na África e Garrido Tôrres propunha um mercado regional latino-americano.
Ao se analisar os temários de 1958, descobrimos os inventores do IBRI, a partir de sua preciosa revista RBPI. Mas ela segue mais viva, sobrevive aos dias atuais, em outro formato e mais acadêmica, sob a métrica de uma revista científica A1 na área de Ciência Política e Relações Internacionais (CAPES), sob a edição do professor Antonio Carlos Lessa, da Universidade de Brasília. Mas é relevante observar o peso histórico de textos e artigos que ainda estão marcados pela filosofia política fundada pelo velho IBRI, como o conceito autonomista. Mesmo sem a ênfase de antes, a inserção internacional atual convoca o conceito, em feição mais adaptada ao mundo que temos. É o novo pensamento brasileiro das Relações Internacionais.
Nos dias atuais, tempo no qual a autonomia decisória adquiriu feição mais relacional às condições mutantes e rápidas do sistema internacional, o sentido da autonomia sugere integração e associação ao mundo. Autonomia não é mais isolamento, é participação. A globalização, a economia internacional em escala planetária e os novos ensaios de governança global vêm reduzindo a força telúrica do conceito de autonomia decisória mesmo nas economias centrais e nos países que se situam na condição de construtores de regras e regimes internacionais.
O conceito, no entanto, segue sendo compulsado. Segue como alter ego na formação dos processos decisórios da política externa brasileira. Embora alguns autores nacionais sugiram que o conceito de autonomia decisória seja essência, e também anima de formulações, discursos, diretrizes e práticas da PEI, esse pequeno artigo teve a vontade de lembrar que o passado ainda subsiste na história recente do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, nosso IBRI, nossa quimera.
Ao concluir, desejo boa vida ao IBRI no seu aniversário de 60 anos de contribuição ao pensamento brasileiro das Relações Internacionais. Que venha o centenário em 2054. Que novas idéias e conceitos sejam lançados na prática e no pensamento da inserção do Brasil em tempos tão complexos como interessantes.
José Flávio Sombra Saraiva, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, foi diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais - IBRI, entre 1998 e 2012 (jfsombrasaraiva@gmail.com).