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quinta-feira, 31 de agosto de 2017
domingo, 8 de janeiro de 2017
Mario Soares; perfil de um democrata socialista - Alfredo Barroso
Breve retrato de um longo percurso político
Alfredo Barroso, 8/1/2017
Foi, sem dúvida, um político de todos os combates contra a ditadura, pela Liberdade, pela Democracia e pelos Direitos do Homem, considerado uma referência democrática em Portugal, na Europa e no Mundo
Não é fácil resumir em poucas palavras o longo percurso político de Mário Soares, que se estende por mais de sete décadas.
Foi, sem dúvida, um político de todos os combates contra a ditadura, pela Liberdade, pela Democracia e pelos Direitos do Homem, considerado uma referência democrática – não só em Portugal, como na Europa e no Mundo – tão simbolicamente como o foram, por exemplo, Winston Churchill, na Grã-Bretanha, ou o general De Gaulle, em França.
Desde muito jovem, Mário Soares foi um ativo resistente à ditadura de Salazar e Marcello Caetano. Além da sua militância política, sobretudo a partir do MUD Juvenil e da candidatura do General Norton de Matos a Presidente da República, Mário Soares defendeu, como advogado, muitos presos políticos, nos tribunais plenários criados pelo Estado Novo. Preso 12 vezes pela PIDE, foi deportado sem julgamento para a ilha de São Tomé em 1968, esteve exilado em França entre 1970 e 1974, e só pôde regressar a Portugal após o 25 de Abril.
Em poucas palavras, poderemos salientar quatro etapas fundamentais no percurso político de Mário Soares:
1. Fundador do Partido Socialista, um ano antes do 25 de Abril
Como activo resistente à ditadura de Salazar e Marcello Caetano, uma das preocupações fundamentais de Mário Soares foi a de constituir uma oposição de esquerda credível, independente e autónoma do Partido Comunista Português. Em suma: uma oposição republicana, socialista e democrática, defensora das liberdades, dos direitos humanos e de uma democracia pluripartidária, numa sociedade aberta.
Mário Soares consegue atingir esse objetivo, em várias fases:
Em 1953, funda, juntamente com Manuel Mendes, Fernando Piteira Santos, Gustavo Soromenho e Francisco Ramos da Costa, a Resistência Republicana e Socialista, grupo de reflexão que procurará construir uma nova alternativa de esquerda não comunista;
Em 1957, passa a integrar, em representação da Resistência Republicana e Socialista, o Diretório Democrato-Social, constituído, entre outros, por António Sérgio, Jaime Cortesão e Mário de Azevedo Gomes;
Em 1964, funda a Acção Socialista Portuguesa (ASP), com Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais;
Em 1969, constitui a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), que congrega vários representantes da oposição de esquerda não comunista, para enfrentar a primeira farsa eleitoral organizada por Marcello Caetano, o qual, não por acaso, elege Mário Soares como seu adversário principal;
Finalmente, em 19 de Abril de 1973, funda, com os seus companheiros da ASP, o Partido Socialista (PS), do qual virá a ser o Secretário-Geral até 1986.
2. Símbolo da luta contra a tentação totalitária, durante o PREC
A iniciativa de propor a fundação do PS foi uma ação política notável e premonitória de Mário Soares, que veio a revelar-se fundamental logo após o 25 de Abril, sobretudo durante o PREC (o chamado “Processo Revolucionário Em Curso”) e o célebre “Verão Quente” de 1975.
Foi a existência de um Partido Socialista consolidado e forte – sob a liderança de um democrata convicto, corajoso e lúcido como Mário Soares – que permitiu impedir que a jovem democracia portuguesa sucumbisse, dilacerada pela violenta luta política entre a tentação totalitária, de sinal comunista, e a reação saudosista dos velhos adeptos da ditadura. No célebre comício da Fonte Luminosa, no “Verão Quente” de 1975, Mário Soares escreve uma página crucial da história da democracia em Portugal.
3. Pioneiro da adesão e da integração de Portugal na CEE (hoje UE)
Institucionalizado o regime democrático em 1976 — num país ainda a sarar as feridas causadas pelo PREC, pela descolonização e pela desordem económica generalizada — foi também Mário Soares, como primeiro-ministro do I Governo constitucional, que iniciou e desbravou, a partir de 1976, o caminho que conduziria à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) e à sua posterior integração na Europa comunitária, em 1985.
Entre 1976 e 1978, primeiro, e entre 1983 e 1985, depois, enfrentando e resolvendo a gravíssima crise económica e financeira herdada dos Governos da Aliança Democrática (AD), foi Mário Soares quem abriu e encerrou o ciclo da integração europeia de Portugal, outra página crucial da história da democracia em Portugal.
4. Notável “magistratura de influência” como Presidente da República
Finalmente, em 1986 – apesar da enorme dificuldade e extrema dureza de uma campanha eleitoral em que teve de enfrentar adversários da estatura política de Freitas do Amaral, Salgado Zenha e Lourdes Pintassilgo –, Mário Soares foi o primeiro civil a ser eleito Presidente da República após o 25 de Abril. Foi o culminar feliz, justo e natural de uma carreira política excepcional e também, como vários comentadores fizeram questão de sublinhar, a consagração de um “pai fundador da democracia portuguesa”.
Colocando-se numa posição suprapartidária, Mário Soares soube ser, durante 10 anos, “o Presidente de todos os portugueses”. Logo no início do seu primeiro mandato, encetou e exerceu uma verdadeira “magistratura de influência”, assim garantindo a estabilidade política e o equilíbrio de poderes essencial ao regime democrático — tendo consolidado, porventura por várias décadas, o regime semi-presidencial sabiamente consagrado na Constituição da República aprovada em 1976.
Se muitas outras razões não bastassem — numa carreira política tão longa, tão intensa e tão brilhante — estas quatro hão de ser mais do que suficientes para reservar a Mário Soares um lugar proeminente na História de Portugal, assim como na história das transições pacíficas da ditadura para a Democracia durante o último quartel do século XX.
Alfredo Barroso / Lisboa, 8 de Janeiro de 2017
domingo, 28 de agosto de 2016
Sanjay Subrahmanyan: o grande historiador do Imperio Portugues (Expresso, Portugal)
Mas não é a única. Isso aconteceu porque, depois de me formar e fazer o mestrado em Economia, resolvi fazer uma tese de doutoramento em História Económica, num tema que tinha a ver com o comércio no oceano Índico. Para fazer este trabalho, tive de consultar fontes europeias e outras, acabei por entrar neste campo e fui por aí fora.
É difícil de dizer. Um historiador não tem uma formação bem definida. A história é uma casa aberta, como costuma dizer-se, podemos lá chegar de vários lados, a partir da economia, da antropologia, da literatura. Eu, por acaso, vim da economia. Para criar um historiador, não é necessário ter uma formação ‘dura’, do tipo matemático.
Não. Para mim, não é necessariamente acreditar na memória, ao contrário, é jogar contra ela, porque muitas vezes a memória é falsa. Dizemos frequentemente que é necessário valorizar a memória, mas esse não é o trabalho de um historiador, quanto muito é o de uma comunidade ou de um qualquer grupo de pessoas. Um historiador tem de jogar contra a memória, para ver como ela foi construída, porque também este é um processo histórico.
Sim e não. Eu diria que a ideia é feita com base no que sobrevive, e não é claro que isso seja sempre controlado pelos vencedores.
Não foi complicado. Quando estava a fazer a minha tese na Universidade de Deli, na Índia, comecei a trabalhar com uma série de línguas e arquivos. Passei cerca de um ano na Europa, há mais de 30 anos, em Haia, Londres, Portugal, entre outros países. O meu objetivo era escrever sobre a história económica do oceano Índico, e a minha ideia era que em todos estes arquivos haveria material para abordar esta história de outra maneira. Acabei por ter experiências diferentes nestes países e fiquei um pouco mais interessado nas fontes portuguesas por várias razões, e uma delas foi porque achei que naquela altura a historiografia portuguesa precisava de um certo tipo de intervenção. Amigos portugueses encorajaram-me a escrever um livro sobre o império português [“O Império Asiático Português, 1500-1700. Uma História Política e Económica”, 1995, Difel]. Achei que havia desenvolvimentos na historiografia portuguesa que eram completamente desconhecidos e quis também fazer um pouco o papel de intermediário entre a historiografia portuguesa e a que existe em inglês. Foi assim que acabei por me interessar mais pelos portugueses.
Um pouco por causa do Estado Novo, havia poucos estrangeiros a fazer pesquisa em Portugal, e o resultado foi que havia toda uma produção portuguesa dos anos 50 e 70 que era quase desconhecida fora de Portugal. Os outros, americanos, ingleses, franceses, não chegaram a ler esta produção, com algumas exceções, como é o caso do historiador Vitorino Magalhães Godinho, que era muito conhecido. Jaime Cortesão, António Sérgio, Duarte Leite, sim, mas estou a falar de pessoas que começaram a produzir nesses anos e em termos de documentos eram desconhecidos. Sob este aspeto, achei que era uma ocasião interessante para fazer uma síntese entre as minhas próprias pesquisas e as que tinham sido feitas por esta geração de portugueses. É um pouco a ideia do livro sobre o império português. Por outro lado, naquela altura, finais dos anos 80 e princípios dos 90, havia uma grande abertura, os historiadores portugueses eram muito abertos, convidaram-me para dar cursos, o que foi completamente fora do comum. Não era a atitude dos holandeses, por exemplo, que não gostavam de abrir as portas aos estrangeiros. Sobretudo os asiáticos — indianos e indonésios — não têm hipóteses de entrar na universidade holandesa para dar cursos e explicar qual é o seu ponto de vista sobre, por exemplo, a presença holandesa nesses territórios.
Sim. Em Portugal havia uma abertura que não existia na Holanda. Também passei pelos arquivos deste país, mas para eles o facto de eu estudar holandês e andar a mexer nos seus arquivos não tinha nenhum interesse. A sua atitude era sempre de autossuficiência.
Sim, o que foi interessante e até sedutor.
Não há uma explicação simples. Mas na História há muitos casos de povos ‘atrasados’ que chegaram a criar grandes impérios. O mais conhecido é, por exemplo, o dos mongóis, que nos séculos XII-XIII, na época de Gengis Khan, criaram um que ia da China ao Mediterrâneo. Era um povo bastante pequeno, com poucos recursos e pouca sofisticação em termos de cultura de corte. Também acontece que, no jogo entre os corpos políticos mais fortes e os mais atrasados, nem sempre são os mais fortes que ganham. Foi o que aconteceu com os mongóis e, de um certo ponto de vista, com os portugueses. Há uma teoria em sociologia, chamada “A vantagem de ser atrasado”, que explica isso.
Veja-se o caso dos Estados Unidos no final do século XVIII, uma nova nação que foi criada e que não tinha vantagens em relação aos poderes europeus. Como é que, nessa altura, esta nação, que não parece a mais sofisticada nem ter os intelectuais mais brilhantes em comparação com as grandes potências da época, consegue um século depois construir um país com aquela dimensão? Porque tem uma espécie de vontade coletiva de ultrapassar os outros, que estão mais avançados.
É um dos aspetos a referir. No século XVI, os portugueses estão sempre a olhar para Castela. Esta rivalidade, bem como com os franceses e os italianos, de estar sempre a jogar contra estes três poderes vizinhos é fundamental. É neste contexto que se define o seu império.
O norte de África tem mais a ver com os castelhanos. Mas relativamente à rota das especiarias tem a ver com os italianos, Veneza e Génova. Naquele momento, o reino de Portugal era capaz de utilizar outros poderes, havia até muitos italianos, sobretudo florentinos, venezianos e genoveses, que trabalhavam para os portugueses.
Científico, comercial e religioso. O padroado português do Oriente fazia parte da Coroa portuguesa, mas tinha, por exemplo, uma presença muito forte de italianos na Companhia de Jesus.
Pode ter acontecido o contrário: ter sido atrasada por causa de Colombo. Só depois do Tratado de Tordesilhas [1494] é que os portugueses vão recomeçar. Pode dizer-se que Colombo cria uma grande confusão ao voltar com a história estúpida de ter chegado à China. D. João II, que já estaria a preparar as coisas tendo em vista a rota da Índia, teve de parar e tratar daquele assunto e só depois reiniciar os preparativos. Há um período de dez anos que medeia entre as viagens de Bartolomeu Dias [que dobra o cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança, em 1488] e Vasco da Gama. Provavelmente não foi por causa de Colombo que os portugueses se lançaram na viagem, teriam feito isso antes, mas a confusão criada por Colombo de ter descoberto as Índias Ocidentais deve ter atrasado um pouco o processo. É uma especulação, mas há indicações que vão nesse sentido.
É um pouco isso, mas também tem a ver com a minha identidade indiana. As mesmas coisas foram mais tarde ditas por portugueses e passaram sem qualquer polémica.
A grande presença é nos séculos XVI e XVII. A partir de 1700, a presença é muito limitada, há feitorias e fortalezas, os portugueses controlam essencialmente Goa, Damão e Diu e pouco mais, e sobretudo Goa. Muita gente na Índia pensa, aliás, nos portugueses relacionando-os com Goa. Mas há um impacto mais complexo e subterrâneo, uma presença mais antiga, com influência na religião, na vida quotidiana, na cozinha, em certos costumes, na vida cultural da Índia...
Em Bengala, na costa nordeste do subcontinente indiano, uma região muito afastada de Goa, portanto, havia uma presença portuguesa importante, embora não oficial, porque os que lá estavam eram sobretudo os chamados “lançados”, os renegados, pessoas com problemas com a justiça ou que se tinham convertido ao Islão, enfim, que estavam basicamente fora do sistema português. Há hoje um debate entre os historiadores sobre uma série de coisas: por exemplo, os bengalis gostam muito de sobremesas, mas têm sobremesas que não existem em nenhuma outra parte da Índia, porque são feitas à base de leite. É muito difícil demonstrar qual é a sua origem, quando foram inventadas, mas há quem diga — e com razão — que têm influência portuguesa. Pode também falar-se de certas músicas: na Índia e no Sri Lanka, o antigo Ceilão, há um tipo de música que se chama “baila”, muito típico, e que provavelmente tem a ver com a presença portuguesa. Ora, os portugueses foram expulsos de Ceilão em 1658.
Essa imagem passou pelos britânicos, que tinham uma certa visão de Vasco da Gama no século XIX. Achavam que ele tinha sido seu antecessor, que abrira o caminho depois seguido por outros, entre eles os britânicos, que chegam à Índia depois de 1600. Sob este ponto de vista, há uma linha direta entre Vasco da Gama, a descoberta da Rota do Cabo e o império britânico. Ao ensinarem aos indianos a História do mundo, os britânicos dizem que a presença europeia na Índia começa com Vasco da Gama, mas que eles — britânicos — foram os seus verdadeiros sucessores, porque fizeram um ‘melhor império’, já que não tinham o problema dos católicos. Vasco da Gama é o primeiro, mas não é capaz de construir o ‘bom império’, em suma. A elite indiana de certo modo ‘engoliu’ este discurso de que os dois homens mais importantes da História do mundo eram Vasco da Gama, de um lado, e Cristóvão Colombo, do outro.
Precisamente com a mesma sequência de raciocínio: os espanhóis foram os primeiros a chegar à América do Norte, mas não souberam construir um verdadeiro império, foi preciso chegarem os ingleses. O interessante é que na época do movimento nacionalista indiano, entre os anos 20 e 40 do século passado, que precedem a independência, há uma série de escritores que falam sobre Vasco da Gama dizendo que ele era um homem muito duro e não refinado, mas ao mesmo tempo muito importante, contestando por isso de certa maneira a tese dos britânicos. Há até um historiador indiano nacionalista que inventou a fórmula “A época de Vasco da Gama”, segundo a qual ela começou em 1498 e durou até 1950, só acabando com a independência da Índia e a criação da China comunista
Que a relação entre mar e terra passou a ser outra. Durante 450 anos é o poder marítimo que domina a relação com o poder terrestre, e isso acaba, tal como os europeus vão perder para os asiáticos, que passarão a dominar o mundo. Mas aceitam que tenha havido uma época de Vasco da Gama, em que este é que é o símbolo dos europeus. Mais do que a pessoa e o homem, foi transformado em símbolo.
Totalmente. É isso que digo no último capítulo do meu livro. Nos livros da escola secundária, escritos em hindi, a representação de Vasco da Gama é a de uma espécie de super-homem.
No século XVI tem uma imagem mais diversa e complicada. No meu livro tentei mostrar que era visto como um político, um homem que agia de modo vincadamente político. Há momentos interessantes na sua carreira, entre 1518 e 1519, quando está muito dececionado com o rei D. Manuel e ameaça passar-se ‘para o outro lado’, para Espanha, para explicar a Carlos V o que devia fazer para criar um império asiático. Nessa altura, o rei dá-lhe o título de conde da Vidigueira. Foi mais ou menos o jogo de Fernão de Magalhães, mas como este era menos importante o rei não cedeu. Já Vasco da Gama tinha um certo prestígio, e os portugueses não podiam deixar que ele se passasse para o inimigo.
Há um debate entre historiadores que pensam que um império deve ser uma forma de controlo terrestre, e sob este ponto de vista há quem diga que o império dos portugueses era no Brasil e não na Ásia, onde não havia territórios importantes sob controlo. Eu entendo que há vários modelos de império no mundo antigo, e os portugueses têm uma visão de império que tem menos a ver com o modelo romano e mais com o fenício ou o grego. Um império disperso que não tem necessariamente um controlo administrativo importante de territórios. É um tipo de império em rede.
É uma ideia surgida no final dos anos 90, que destaca o facto de, por razões puramente acidentais, haver campos historiográficos separados. Por exemplo, há pessoas a trabalhar sobre a história dos portugueses na Índia no século XVI, em diversas faculdades, e trabalham essencialmente sobre a presença portuguesa. Ao mesmo tempo, sabemos que no interior da Índia há outras histórias, que se fazem com outras fontes, como é o caso do império mongol, onde por razões de competência linguística ou outras quase ninguém trabalha. Achei que seria interessante um outro tipo de historiografia, que faria a ligação entre estas historiografias separadas, daí o termo ‘conectada’. É um método. Como fazer para combinar estas histórias distintas e separadas? É a História conectada — tratar no mesmo momento as histórias que são separadas por razões meramente convencionais. Não tem nenhum sentido científico, só por acaso estão separadas, porque ocorreram simultaneamente.
Coisas muito diferentes. Por exemplo, Garcia de Orta, que era judeu, estudou em Salamanca, foi para a Índia talvez nos anos 1530, como médico passou muito tempo nas cortes muçulmanas da Índia e finalmente escreveu “Os Colóquios”. É difícil dizer coisas concretas sobre ele, não há muita documentação, mas podemos reconstituir o contexto da vida dos sultanatos daquela época, qual era o tipo de saber. É um exercício de um certo tipo de história e ciência, que permite saber algo mais de Garcia de Orta do que a sua presença no império português. Outro exemplo: acabei de escrever um livro sobre a história da pintura, da arte, e sobre os intercâmbios entre a arte indiana e europeia. Poucos sabem que Rembrandt copiou 25 miniaturas mongóis, e penso ser interessante tentar saber porquê. Agora sabemos que o fez porque, como não podia observar diretamente o mundo antigo, uma maneira de o fazer era observar o mundo oriental. Ele achava que a linguagem do corpo que existia no Oriente, no império mongol, era semelhante e que o ajudava, por exemplo, a fazer uma pintura de Abraão.
…Também o vê como um grande herói, embora com alguns aspetos negros. Mas é um herói, porque trouxe a Europa até à Índia e transformou a História do mundo.
É uma maneira de justificar o passado em termos do presente, quer dizer, de usar o vocabulário da moda do presente para justificar algo que aconteceu no passado. Também posso dizer que Gengis Khan foi um precursor da globalização.
É verdade que aquele momento é interessante em relação à época anterior. Os séculos XIV e XV representam um certo tipo de mundo em que há formas de intercâmbio muito limitadas. Tudo isso se transformou entre 1450 e 1580, e os portugueses, entre outros, desempenharam um papel. Mas não acho interessante dizer quem teve um papel maior ou menor.
Os portugueses tinham recursos limitados, preferiram concentrá-los no Atlântico, no Brasil, e não lhes era possível estenderem-se em todo o lado. Por outro lado, os holandeses não se mantiveram no Atlântico, tiveram de retirar-se do Brasil, ficaram em Curaçau e em Suriname, mas conseguiram ficar no Índico. Podemos ver isto como um jogo geopolítico entre vários impérios, alguns ficam mais poderosos em certas regiões, outros em outras. A velha história do declínio relacionado com o catolicismo não tem nada a ver com isto, é um mito criado pelos holandeses e os ingleses. Se fosse assim, porque não funcionou da mesma maneira no Brasil?
Não era a mesma coisa. A busca dos cristãos não é o mesmo que cristianização, porque parte da ideia que eles já existiam, é o mito de Prestes João, do apóstolo São Tomé, a busca de comunidades preexistentes. Não é a missionação, que depois também se vem a verificar.
Entre os dois, recorde-se que ocorre o protestantismo. Com o Calvinismo e Lutero, nos anos 20, 30 e 40 do século XVI, os católicos perdem terreno na Europa, e a partir dos anos 40 chegam à conclusão que é preciso ir para fora e criar cristãos em outros países e continentes para recuperar o terreno perdido na Europa. Inácio de Loyola diz claramente que essa foi uma das razões para criar a Companhia de Jesus. É a partir da Contrarreforma que há a ideia de criar novas comunidades de cristãos fora da Europa, na Ásia, em África ou na América. Quando Vasco da Gama chega à Índia, ele não tem essa ideia de fazer conversões ou de criar comunidades de cristãos. Morreu em 1524, e essa ideia não era muito importante.
Sim, no sul da Índia, são comerciantes de pimenta, por exemplo. Irá relacionar-se com eles na segunda e terceira viagem.
É um espaço importante. Há lutas de poder, mas podemos referir três aspetos. Há o poder económico dos países islâmicos, que existe sobretudo a partir dos anos 70, com a transformação do mercado do petróleo, em que a Arábia Saudita, os países do Golfo e o Irão passam a ter uma influência enorme, até no mundo não islâmico do oceano Índico, por exemplo em termos de mercado de trabalho; muita gente não muçulmana, da Índia, Filipinas e outros sítios, vai trabalhar para esses países, criando uma economia de circulação, com um impacto enorme que não se vê muito no Ocidente. Em segundo lugar, tem importância pelos investimentos que fazem nas instituições. E, finalmente, há o aspeto geopolítico. A política indiana é, por vezes, de jogar contra certos países islâmicos em favor de outros.
Há, mas nos últimos dois anos o poder central na Índia está nas mãos de um partido hinduísta, que tem uma política abertamente contra os muçulmanos. Quando preparam as eleições, falam sempre da ameaça muçulmana, num discurso do tipo de conflito de civilizações.
É um discurso oportunista de jogar com o medo. É sempre útil. O caso indiano é muito particular, por causa de Caxemira, mantemos ali uma guerra contínua de baixo nível há quase 70 anos. É muito tempo. Uma fronteira aberta, com um exército de ocupação. Há dois casos no mundo, nós e os israelitas e palestinianos, em que a cronologia é quase a mesma, o problema foi criado pelos mesmos — os britânicos — e com o mesmo método, mas depois lavaram as mãos e foram-se embora.
sábado, 31 de janeiro de 2015
Portugal e seus judeus sefarditas: 500 anos de atraso e de injusticas
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
Portugal-Inglaterra: a mais antiga alianca diplomatica do mundo - tratado de 1353
Grato a meu amigo Paulo Werneck por mais esta pérola.
Paulo Roberto de Almeida
Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra (II)
Blog Guardamoria, 01 Jan 2015
Paulo Werneck
Recentemente encontrei, em Internet Archive, a coleção dos 18 volumes do "Quadro Elementar das Relações Politicas e Diplomáticas de Portugal com as Diversas Potencias do Mundo Desde o Principio da Monarchia Portugueza Até aos Nossos Dias", redigido pelo segundo Visconde de Santarém, diplomata e historiador.
A coleção registra documentos - tratados, cartas, até mesmo eventos - que mostram as relações de Portugal com o resto do mundo, desde priscas eras, os volumes organizados cronologicamente por nações.
O volume 14 contempla um extrato do tratado que denominei de Boa Vizinhança, que está copiada a seguir, para o leitor usar como uma segunda leitura do referido tratado, publicado na íntegra na postagem "Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra", com a minha tradução leiga:
Tratado de commercio por 50 annos entre Duarte III, Rei d'Inglaterra, e os mercadores, maritimos, e communidades da marinha das cidades e villas maritimas de Portugal, sendo Enviado destas Affonso Martins Alho, que assignou o mesmo Tratado.
Principia este acto pela forma seguinte: «Seja a todos notório, que as gentes, os mercadores, communidades (associações) das cidades maritimas de Lisboa e Porto, e outras do Reino e Senhorios do Rei de Portugal e do Algarve, enviárão Affonso Martins, chamado Alho, como seu mensageiro e procurador perante o excellente Principe, Edwardo pela graça de Deos Rei d'Inglaterra e de França, afim de se contractar e firmar um Tratado de amizade e alliança entre o dito Rei, seus vassallos e os povos, mercadores, maritimos, e communidades das ditas cidades maritimas de Portugal com todas em geral, e com cada uma dellas em particular para sempre, ou por um tempo determinado, em consequencia do que resolve e determina ElRei que se estabeleça uma alliança firme e d'amizade, afim de entreter a melhor affeição entre o dito Rei d'Inglaterra e a de seus vassallos, e os do sobredito povo e cidades maritimas de Portugal, para mutua vantagem e proveito de ambas as partes. Em virtude do que se estipulou o seguinte:
1.º Haveria a melhor intelligencia e firme alliança tanto por mar, como por terra, entre as ditas partes contractantes, por 50 annos a partir da data deste Tratado.
2.º Em consequência disso, os vassallos d'ElRei d'Inglaterra não serião injuriados nem maltratados, tanto nas suas pessoas como nos seus navios, mercadorias ou outros objectos a elles pertencentes, pelos mercadores e maritimos, ou communidades das cidades maritimas de Lisboa e Porto.
3.º Pela mesma maneira o povo, mercadores e communidades das sobreditas cidades não receberião injuria, vexação, ou prejuizo nas suas pessoas, navios, mercadorias ou outros objectos dos maritimos de Inglaterra, Gasconha, Irlanda e de Galles, nem de nenhum outro subdito d'ElRei de Inglaterra.
4.º Nenhum dos povos ou subditos de uma ou de outra parte poderia contractar alliança com os inimigos, opponentes, ou adversários da outra, nem causar-lhe prejuizo, nem prestar-lhe ajuda ou soccorro.
5.º Estipula-se igualmente que os subditos commerciantes, maritimos e quaesquer outros de que condição forem de uma e de outra parte possão livremente, e com toda a segurança, ir e voltar por mar ou por terra a todos os portos de mar, cidades e villas de um e de outro paiz, e passar por todos os logares dos ditos Reinos quando e onde lhes convier, assim como seus navios grandes e pequenos, e Iodas as mercadorias que trouxerem nos seus ditos navios, de qualquer paiz de onde ellas possão provir.
6.º Todas as disputas, dissensões e discórdias que existirão nos tempos passados, bem como todos os damnos e prejuizos causados por uma ou por outra das partes (contractantes) anteriormente á data do presente Tratado (se por ventura existem) serão (e annullandas) annuladas para sempre, e não se intentará nenhuma acção nem processo por nenhuma das duas partes.
Se porêm no futuro alguma das duas partes contractantes causar algum aggravo ou prejuizo á outra, neste caso o aggravo, ou damno será devidamente reparado pelos senhorios ou autoridades das partes respectivas, e a parte prejudicada será indemnizada das despezas que fizer no proseguimento da pessoa ou dos bens da pessoa que lhe tiver causado o prejuizo.
No caso porêm que esta não possua sufficientes mercadorias ou bens para pagar as multas será constrangido e preso, e justiça será feita em proveito da pessoa que soffreu o aggravo.
7.º Estipula-se também que no caso que ElRei d'Inglaterra, ou algum dos seus vassallos, tome ou ganhe sobre seus adversarios alguma cidade, castello, ou porto no qual se achem mercadorias, ou fazendas pertencentes ao povo, mercadores, maritimos ou communidades das cidades mencionadas (Lisboa e Porto, etc), ou navios nos quaes se encontrem mercadorias pertencentes ás mesmas, nesse caso o dito Rei d'Inglaterra e de França, ou a pessoa que commandar em seu nome, procederá a uma pesquiza sobre a pessoa em cujas mãos se achão taes mercadorias ou effeitos, fazendo taes diligencias conforme a Lei, e exibindo este Tratado, afim de que taes navios e mercadorias sejão restituidas e recobradas pelo povo, mercadores, maritimos ou outras pessoas das associações maritimas acima mencionadas, tendo estas declarado previamente com juramento que estas lhes pertencião.
Advertindo todavia que taes navios não estejão armados, ou que tenhão dado ajuda ou auxilio aos inimigos do dito Rei d'Inglaterra. No caso que algum dos ditos navios seja encontrado armado, ou lendo assistido ou soccorrido os inimigos do dito Rei, perderá os seus bens e das pessoas a quem pertencerem, mas que os outros que cumprirem lealmente este acordo não deverão experimentar nenhum damno.
Outrosim no caso que os vassallos do dito Rei d'Inglaterra e de França tomem ou capturem no mar, ou em um porto, algum ou alguns navios dos seus adversários e inimigos, e que nelles se encontrar algumas mercadorias ou objectos pertencentes ás ditas cidades maritimas, estas serão transportadas para Inglaterra onde serão cuidadosamente guardadas até que os interessados provem o seu direito a ellas.
Em idênticos casos o mesmo será observado pelo povo e marinha das ditas cidades a respeito dos vassallos do dito Rei d'Inglaterra.
8.º Outrosim se ajustou que os pescadores das ditas cidades maritimas (de Portugal) poderão ir pescar livremente sem incorrer em nenhum perigo nos portos d'Inglaterra e de Bretanha, e nos outros portos e logares que elles julgarem opportunos, pagando somente os direitos (costumes) devidos ao senhor do paiz.
Feito era Londres a 20 d'Outubro do anno da graça de 1353
Veja também:
Tratado de Boa Vizinhança em 1353 com a Inglaterra.
Fonte:
CARVALHOSA, Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e (Visconde de Santarém). Quadro Elementar das Relações Politicas e Diplomáticas de Portugal com as Diversas Potencias do Mundo Desde o Principio da Monarchia Portugueza Até aos Nossos Dias. Tomo 14. Segunda edição. Páginas 39 a 43. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1865. Disponível em Internet Archive (www.archive.org).
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Pausa para... poesia - Sá de Miranda, quinhentista
Qual não foi minha supresa, logo em seguida, ao constatar que o interlocutor apagou todos os seus rastros, suas pegadas, suas frases mal concebidas e mal dirigidas.
Parece que eu fiquei falando comigo mesmo...
Além de me lembrar das famosas fotos com personagens apagados da era Stalin, lembrei-me de um poema famoso, que devo ter lido aos 12 ou 13 anos e do qual nunca me esqueci, pelo menos as quatro estrofes iniciais.
Pois bem, hoje resolvi buscar novamente esse poema, de um poeta quinhentista português, e para isso me dirigi ao Sapo.pt, o buscador lusitano, que para isso foi impecável.
Aqui vai, portanto, o poema inteiro, do qual só me lembrava da parte inicial.
Paulo Roberto de Almeida
http://www.citador.pt/poemas/comigo-me-desavim-sa-de-miranda
Comigo me DesavimComigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse. Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho inimigo de mim?
Sá de Miranda, in 'Antologia Poética'Tema(s): Auto-conhecimento Ler outros poemas de Sá de Miranda
Sá de MirandaPortugal
[Wikipedia]28 Ago 1481 // 15 Mar 1558Poeta
sexta-feira, 27 de junho de 2014
Portugal em crise e as solucoes inovadores - livro de Jack Soifer et alii
Independentemente dessa dúvida, crises tem de ser resolvidas com soluções inovadoras e de fato cabe explorar novos caminhos para a retomada do crescimento e do emprego.
Leiam a matéria de O Jornal Econômico, de Portugal.
Paulo Roberto de Almeida
sábado, 7 de junho de 2014
Tordesilhas: a primeira divisao do mundo, entre portugueses e espanhois
NESTA DATA
É assinado o Tratado de Tordesilhas
O acordo dividia entre Portugal e Espanha as terras descobertas nas Américas
sexta-feira, 11 de abril de 2014
Marcelo de Paiva Abreu sobre os ativos em libras esterlinas do Estado Novo Portugues
The Economic History Review, Vol. 67, Issue 2, pp. 535-555, 2014
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
Curiosidades lusitanas: o nascimento de Portugal e as cortes de Lamego - Paulo Werneck
Em todo caso, vale por um exercício de leitura, e pela curiosidade histórica de ver o surgimento de uma nação, de um Estado, de um país submetido a um poder centralizado, um dos primeiros, senão o primeiro reino moderno da Europa, moderno no sentido da unificação do poder real, sobre os demais nobres.
Grato ao Paulo Werneck por esta garimpagem do passado, que é também um pouco nosso, já que herdamos alguns dos traços lusitanos muito antigos, a começar pela moeda. Provavelmente, logo depois da inauguração do reino começou a ser cunhado o real, em moedas de bronze ou de qualquer outra aliagem metálica.
Paulo Roberto de Almeida
Paulo Werneck
Blog Guardamoria, 01 Dec 2013
José Anastácio Figueiredo (1706?-1805) informa, na sua Synopsis Chronologica, a existência das Leis das Cortes de Lamego, que teriam sido reunidas em 1143, após a vitória do portugueses, comandados por Afonso Henriques, na batalha de Ourique (25 de julho de 1139), em que venceram tropas mouras numericamente superiores, e, segundo a tradição, levou-o a se autoproclamar Rei de Portugal ainda no campo de batalha.
As Cortes eram assembléias em que se reuniam representantes dos três Estados - nobreza, clero e povo - para decidir sobre leis e tributos. As Cortes de Lamego, cuja existência é lendária, ou seja, não se sabe ao certo se teriam existido ou não, muito provavelmente não, teriam dado nascimento formal ao Reino de Portugal, elegendo Afonso Henriques como primeiro rei (Afonso I), e estabelecendo algumas leis - sucessão ao trono, titulos de nobreza, crimes e castigos.
Tendo ou não existido tal assembléia, o fato é que Figueiredo enuncia onde está transcrita sua ata, a saber na Monarchia Lusitana, de Frei Antonio Brandão (1584-1637), e em diversos outros livros, posteriores.
Brandão, o primeiro a transcrevê-la, expressa suas dúvidas sobre a autenticidade da cópia que tinha em mãos. Alexandre Herculano a ela se refere como
"invenção de algum dos falsários do século XVI [...] abaixo da critica, se não fosse o haverem sido consideradas desde o século XVII como as leis fundamentaes do nosso paiz"
De qualquer forma, eis a transcrição do controverso texto:
Em nome da ſancta e indiuidua Trindade Padre, Filho, & Spirito ſanto, que he indiuisa, & inseparauel. Eu Dom Afonſo filho do Conde D. Henrique, & da Rainha Dona Tareja neto do grande D. Afonſo Emperador das Eſpanhas, que pouco ha que pella diuina piedade fui ſublimado á dinidade Rey. Ia q͂ Deos nos concedeo algũa quietação, & com ſeu fauor alcanſamos vitoria dos Mouros noſſos inimigos, & por eſta cauſa eſtamos mais deſaliuados, porque não ſoceda deſpois faltarnos o tempo cõuocamos a cortes todos os que ſe ſeguem. O Arcebiſpo de Bragâ, o Biſpo de Viſeu, o Biſpo do Porto, o Biſpo de Coimbra, o Biſpo de Lamego, & as peſſoas de noſſa Corte que ſe nomearaõ abaxo, & os procuradores da boa gente cada hum por ſuas Cidades, conuem a ſaber por Coimbra, Guimaraẽs, Lamego, Viſeu, Barcellos, Porto, Trancoſo, Chaues, Caſtello Real, Bouzella, Paredes velhas, Cea, Couilham, Monte maior, Eſgueira; Villa de Rey, & por parte do Senhor Rey Lourenço Viegas auendo tambem grande multidáo de Mõges, & de clerigos. Ajũtamonos em Lamego na Igreja de Santa Maria de Almacaue. E aſſentouſe el Rey no trono Real ſem as inſignias Reaes, & leuantandoſe Lourenco Viegas procurador del Rey diſſe.
Fezuos ajuntar aqui el Rey D. Afonſo, o qual leuantaſtes no Cãpo de Ourique, para que vejais as letras do ſanto Padre, & digais ſe quereis que ſeja elle Rey. diſſeraõ todos. Nos queremos que ſeja elle Rey. E diſſe o procurador: Se aſsi he voſſa vontade, dailhe a inſignia Real. E diſſeraõ todos: Demos em nome de Deos. E leuantouſe o Arcebiſpo de Braga, & tomou das mãos do Abbade de Loruão h-ua grande coroa de ouro chea de pedras precioſas que fora dos Reys Godos, & a tinhão dada ao Moſteiro, & eſta puſerão na cabeça del Rey, & o ſenhor Rey com a eſpada nua em ſua mão, com a qual еntrоu na batalha diſſe. Bendito ſeja Deos que me ajudou, com eſta eſpada vos liurei, & venci noſſos inimigos, & vos me fizeſtes Rey, & companheiro voſſo, & pois me fizeſtes, façamos leys pellas quais ſe gouerne em paz noſſa terra. Diſſeraõ todos: queremos ſenhor Rey, & ſomos contentes de fazer leis, quais vos mais quiſerdes, porque nos todos com noſſos filhos & filhas, netos & netas eſtamos a voſſo mandado. Chamou logo o ſenhor Rey os Biſpos, os nobres, & os procuradores, & diſſeraõ entre ſi, façamos primeiramẽte leis da herança & ſucceſſaõ do Reyno, & fireraõ eſtas que ſe ſeguem.
Viua o ſenhor Rey Dõ Afonſo, & poſſua o Reyno. Se tiuer filhos varoẽs viuão & tenhaõ o Reino, de modo que não ſeja neceſſario tornalos a fazer Reys de nouo. Deſte modo ſocederaõ. Por morte do pay herdarâ o filho, deſpois o neto, então o filho do neto, & finalmente os filhos dos filhos, em todos os ſeculos para ſempre.
Se o primeiro filho del Rey morrer em vida de ſeu pay, o ſegundo ſerà Rey, & eſte ſe falecer o terceiro, & ſe o terceiro o quarto, & os mais que ſe ſeguirem por eſte modo. Se el Rey ſalecer ſem filhos, em caſo que tenha irmão, poſſuirà o Reyno em ſua vida, mas quando morrer não ſerá Rey ſeu filho, sé primeiro o fazerem os Biſpos, os procuradores, & os nobres. da Corte del Rey, ſe o fizerem Rey ſerà Rey, & ſe o não elegerem, nao reinará.
Diſſe deſpois Lourenço Viegas Procurador del Rey aos outros procuradores. Diz el Rey, ſe quereis que entrem as filhas na herança do Reyno, & ſe quereis fazer leis no que lhes toca: E deſpois que altercaraõ por muitas horas, vieraõ a concluir, & diſſeraõ. Tambem as filhas do ſenhor Rey ſaõ de ſua decendencia , & aſsi queremos que ſucedão no Reyno, & que ſobre iſto ſe façaõ leis, & os Biſpos & nobre fizeraõ as leis neſta forma.
Se el Rey de Portugal naõ tiuer filho varão, & tiuer filha, ella ſerá a Rainha tanto que el Rey morrer; porem ſerà deſte modo, nao caſará ſe não com Portugues nobre, & eſte tal ſe não chamará Rey, ſe não deſpois que tiuer da Rainha filho varão. E quando for nas Cortes, ou autos publicos, o marido da Rainha irâ da parte eſquerda, & não porá em ſua cabeça a Coroa do Reyno.
Dure eſta ley para ſempre, que a primeira filha del Rey nunca caſe ſe não com portugues, para que o Reyno não venha a eſtranhos, & ſe caſar com Principe eſtrangeiro, não herde pello meſmo caſo; porque nunca queremos que noſſo Reyno ſaya fora das mãos dos Portugueſes, que com ſeu valor nos fizeraõ Rey ſem ajuda alhea, moſtrando niſto ſua fortaleza, & derramando ſeu ſangue.
Eſtas ſaõ as leis da herança de noſſo Reyno, & leo as Alberto Cancellario do ſenhor Rey a todos, & diſſeraõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos q͂ valhão por nos, & por nodſſos decendertes, que deſpois vierem.
E diſſe o Procurador do ſenhor Rey. Diz o ſenhor Rey. Quereis fazer leis da nobreza, & da juſtica? E reſponderaõ todos. Aſsi o queremos, façaõſe em nome de Deos, & ſizerrõ eſtas.
Todos os decendentes de ſangue Real, & de ſeus filhos & netos ſejão nobiliſsimos. Os que naõ ſaõ decendentes de Mouros, ou dos infieis Iudeus, ſendo Portugueſes que liurarem a peſſoa del Rey, ou o ſeu pendão, ou algũ filho, ou genro na guerra, ſejão nobres. Se acontecer que algum catiuo dos que tomarmos dos infieis, morrer por não querer tornаг a ſua infidelidade, & perſeuerar na lei de Chriſto, ſeus fllhos ſejão nobres. O que na guerra matar o Rey contrario, ou ſeu filho, & ganhar o ſeu pendão, ſeja nobre. Todos aquelles que ſaõ de noſſa Corte, & tem nobreza antiga, permaneçaõ ſempre nella. Todos aquelles que ſe acharaõ na grande batalha do Campo de Ourique, ſejaõ como nobres, & chaméſe meus vaſſalos aſsi elles como ſeus decendentes.
Os nobres ſe fugirem da batalha, ſe ferirem algũa molher com efpada, ou lança, fe não libertarẽ a el Rey, ou a ſeu filho, ou a ſeu pendão com todas ſuas forças na batalha, ſe derem teſtemunho falſo, ſenão falarẽ verdade aos Reys, ſe falarem mal da Rainha, ou de ſuas filhas, ſe ſe forẽ para os Mouros, ſe furtarem as couſas alheas, ſe blasfemarem de noſſo Senhor Ieſu Chriſto, ſe quiſerem matar el Rey, não ſejaõ nobres, nem elles, nem ſeus filhos para ſempre.
Eſtas ſaõ as leis da nobreza, & leo as o Cancellario del Rey, Alberto a todos. E reſpõderaõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos que valhaõ por nos, & por noſſos decẽdentes que vierem deſpois de nos. Todos os do Reyno de Portugal obedeçam a el Rey, & aos Alcaides dos lugares que ahi eſtiuerem em nome del Rey, & eſtes ſe regeraõ por eſtas leis de juſtiça, O homem ſe for comprehendido em furto, pella primeira, & ſegunda vez o poraõ meio deſpido em lugar publico, aonde ſeja viſto de todos, ſe tornar a furtar, ponhaõ na teſta do tal ladraõ hum ſinal com ferro quente, & ſe nem aſsi ſe emendar, & tornar a ſer cõprehendido em furto, morra pello caſo, porem não o mataraõ ſem mandado del Rey.
A molher ſe cometer adulterio a ſeu marido com outro homem, & ſeu proprio marido denunciar della â juſtiça, ſendo as teſtemunhas de credito, ſeja queimada deſpois de o ſazerẽ a ſaber a el Rey, & queimeſe juntamente o varaõ adultero com ella. Porem ſe o marido não quiſer que a queimem, não ſe queime o cõplice, mas fique liure; porque não he juſtiça que ella viua, & que o matem a elle.
Se alguem matar homem ſeja quem quer que for, morra pello caſo. Se alguem forçar virgem nobre, morra, & toda ſua fazenda fique a donzella injuriada. Se ella não for nobre, caſem ambos, quer o homem ſeja nobre, quer naõ.
Quando alguem por força tomar a fazenda alhea, va dar o dono querella delle à juſtiça, que farà com que lhe ſeja reſtituida ſua fazenda.
O homem que tirar langue a outrem com ferro amolado, ou ſem elle, que der com pedra, ou algum pao, o Alcaide lhe farà reſtituir o dano, & o farà pagar dez marauedis. O que fizer injuria ao Agoazil, Alcaide, Portador del Rey, ou a Porteiro, ſe o ferir, ou lhe façã o ſinal com ferro quente, quando não pague 50. marauedis, & reſtitua o danno.
Eſtas ſaõ as leis de juſtica, & nobreza, & leoas o Cancellario del Rey, Alberto a todos, & diſſeraõ, boas ſaõ, juſtas ſaõ, queremos que valhaõ por nos, & por todos noſſos decendentes q͂ deſpois vierem.
E diſſe o Procurador delRey Lourenço Viegas, quereis que el Rey noſſo ſenhor vâ as Cortes del Rey de Leaõ, ou lhe de tributo, ou a algũa outra peſſoa tirando ao ſenhor Papa que о сбfirmou no Reyno? E todos ſe leuantaraõ, & tendo as eſpadas nuas poſtas em pè diſſeraõ. Nos ſomos liures, noſſo Rey he liure, noſſas mãos nos libertaraõ, & o ſenhor que tal conſentir, morra, & ſe for Rey, não reine, mas perca o ſenhorio. E o ſenhor Rey ſe leuantou outra vez com a Coroa na cabeça, & eſpada nua na maõ ſalou a todos. Vos ſabeis muito bem quantas bãtalhas tenho ſeitas por voſſa liberdade, ſois diſto boas teſtemunhas, & o he també meu braco, & eſpada; ſe alguem tal couſa conſentir, morra pello meſmo caſo, & ſe for ſilho meu, ou neto, não reine; & diſſeraõ todos: boa palaura, morra. El Rey ſe for tal que conſinta em dominio alheo, não reine; & el Rey outra vez: afsi ſe faça, &c.
O texto nada apresenta do ponto de vista tributário ou comercial. De curioso, as penas de alguns crimes.
Furto teria sido apenado na primeira e segunda ocorrências apenas com a exposição à execração pública, uma pena leve sem dúvida, mas se o meliante não tomasse tento, na terceira vez a pena seria capital.
Adultério, todavia, teria pena capital desde o início, para ambos, salvo se o marido traído perdoasse a esposa, caso em que o outro também o seria.
Para estupro a pena dependia da qualidade da vítima: se nobre, morte ao estuprador, cujos bens seriam da vítima; se plebéia, casamento, mesmo que o estuprador fosse de qualidade.
O texto também relaciona alguns cargos: procurador do rei (que ainda não o era...), agoazil, alcaide, portador del rey e porteiro.
Agoazil parece ser outra grafia para alguazil, algozil, guazil. Segundo Houaiss seria um juiz ordinário de primeira instância, oficial de administração ou de justiça, de posto inferior; oficial de diligências; meirinho, beleguim, esbirro.
Alcaide seria um governador de castelo ou região, com jurisdição civil e militar, ou um funcionário incumbido de cumprir as determinações judiciais; oficial de justiça. Na época talvez a primeira definição seja mais adequada.
Portador del Rey, poderia ser um mensageiro real, ou arauto.
Finalmente porteiro, que como hoje era alguém encarregado de abrir e fechar a porta de uma prédio, quando chegassem ou saissem pessoas, permitindo ou não a entrada, parece que tinha atribuições mais amplas, cuidando do local como um chefe de gabinete faria hoje em dia.
Fontes:
BRANDÃO, Antonio. Monarchia Lvsitana, Terceira Parte: Que contem a Hiſtoria de Portugal deſdo Conde Dom Henrique, até todo o reinado del Rey Dom Afonſo Henriques. Pag. 143vers-145. Lisboa: Pedro Caresbeck, 1631.
FIGUEIREDO, José Anastácio. Synopsis chronologica de subsidios ainda os mais raros para a historia e estudo critico da legislação portugueza. Tomo I: desde 1143 até 1549. Pag. 1-2. Lisboa: Oficina da Real Academia de Sciencias, 1740.
HERCULANO, Alexandre. Historia de Portugal desde o começo da Monarchia até o fim do reinado de Affonso III. Terceira Edição. Tomo Primeiro. Pag. 510. Lisboa: Casa da Viuva Bertrand e Filhos, 1863.
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