O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador conjur. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador conjur. Mostrar todas as postagens

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Embargos Culturais, Conjur)

 Do sempre arguto Arnaldo Godoy, em sua série milenar (ou seja, mais de mil embargos) dedicada a livros com alguma, muito ou mesmo nenhuma, inclinação para o Direito.

Embargos Culturais

Gelson Fonseca e o definitivo A Equidade como Fonte do Direito

Por 

O tema das fontes é central no estudo do direito. Um estudo sério de direito comparado consiste, necessariamente, na avaliação das fontes que se pretende compreender e comparar. Por exemplo, mais importante do que atentarmos para um determinado comando do direito de tradição islâmica seria entendermos o substrato da regra, cuja origem desconhecemos. Quem a determina? Quais poderes detém quem tem força para fazê-la valer? De igual modo, uma compreensão de enciclopédia jurídica é na prática uma projeção operacional dos vários sistemas que identificam as fontes do direito. A pergunta fundamental que a experiência jurídica nos põe é essa: de onde vem a força impositiva de um determinado comando? É o fascinante assunto das fontes do direito.

É o tema mais apaixonante dos antigos manuais de introdução ao estudo do direito e de introdução ao direito civil. Esses livros são importantes na formação do jurista. Não sei se ainda são estudados. Muito já se escreveu sobre a lei, sobre a doutrina, sobre os costumes, sobre os princípios gerais do direito, sobre a jurisprudência. Esta última, enquanto fonte, parece-nos hoje justificativa de um superlativo hebraico: a jurisprudência se tornou a fonte das fontes. A jurisprudência hoje tudo fixa, tudo altera, tudo comanda. Pior. A jurisprudência engole a si mesma, o que pode se inferir em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no rumorosíssimo caso da anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos (Temas 881 e 885).

No contexto do estudo das fontes do direito há um tema hoje esquecido. Refiro-me à equidade. A equidade é um conceito derivado da filosofia de Aristóteles. No Livro V da Ética a Nicômaco, o estagirita mencionou uma régua que havia na Ilha de Lesbos e que media superfícies que não eram planas. Desse modo, metaforicamente, a aferição de uma dada medida levava em conta as características específicas do que se metrificava. Ao contrário das réguas convencionais, que medem apenas superfícies planas, e que, portanto, desprezam características específicas do que se está medindo, a régua de Lesbos permitia uma aferição completa. Era o indicativo de uma medida justa. 

Do ponto de vista da hermenêutica jurídica, a aplicação da equidade resulta na mitigação dos inconvenientes que resultam da aplicação estrita dos textos, que não leva em conta peculiaridades e aspectos muito específicos de um dado problema. Não se confunde com o conceito de equidade do common law, que é uma das variáveis da estrutura jurídica desse modelo. A equidade é instrumento de oposição à aplicação irrestrita de um texto jurídico que resulte em injustiça objetiva, e que a tradição do direito romano identifica no brocardo summum jus, summa injuria, isto é, o máximo de direito, o máximo da injustiça.

Há muitos anos tive notícia de um livro que tratava monograficamente do assunto, e que não conseguia localizar. Em recente evento no Liberty Fund, em São Paulo, conheci o filho do autor do livro. Refiro-me ao livro A Equidade como Fonte do Direito, de Gelson Fonseca, importantíssimo e competentíssimo advogado militante no Rio de Janeiro, nos anos de 1950 e 1960. O livro, que é texto definitivo sobre a equidade, é uma tese para o concurso de livre-docente da disciplina de Instituições de Direito, junto à antiga Faculdade de Ciências Econômicas do Estado da Guanabara. O livro é de 1968.

Eu já conhecia e admirava o filho de Gelson Fonseca. Trata-se do embaixador Gelson Fonseca Júnior, que se destacou como diplomata de carreira entre 1968 a 2016, quando se aposentou. O embaixador Gelson, entre outros postos, foi representante permanente junto à ONU, embaixador no Chile, cônsul-geral em Madrid e no Porto. Em São Paulo, conversamos sobre a trajetória do pai, advogado militante, e sobre o livro. Constatei que havia um único exemplar à venda, na Estante Virtual. A generosidade do embaixador resultou no encaminhamento do exemplar raro, que li numa sentada. Aprendi muito.

O autor trata da equidade primeiramente sob uma perspectiva histórica. É o ponto de partida para o postulado básico da tese: a equidade encontra-se em todos os sistemas de direito. Na primeira parte do livro o autor expõe as linhas gerais da equidade na tradição judaico-cristã. Nesse sentido, explora a equidade no Antigo Testamento (com a aparente iniquidade do julgamento de Deus) e em seguida a equidade no Novo Testamento, cujo sentido é o amor. Essa comparação é também encontrada em Hans Kelsen, em interessante livro sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras.

O autor também trata do conteúdo da equidade na tradição grega e refere-se, entre outros, ao tema do direito natural, como aparece no teatro (Antígona). Nesse ponto, Gelson Fonseca (pai) concebe a equidade como uma parte efetiva do direito não escrito. O estudo da equidade na tradição romana é o ponto alto do livro. Não nos esqueçamos que os pretores decidiam por equidade, o que também afasta a premissa equivocada de que a tradição do common law seria refratária às estruturas conceituais e práticas do direito romano, em qualquer uma de suas fases.

Quanto ao direito inglês propriamente dito a equidade tem um papel determinante, quanto à função do rei de distribuir justiça, o que se desdobra ao longo da unificação de seu poder. Após 1066, explica-nos Gelson Fonseca (pai) a fixação do direito era da autoridade local. Cuida-se de um traço peculiar do feudalismo (enquanto um tipo ideal), o que se reflete na construção da topografia e das peças do jogo de xadrez. 

Na parte final o autor estuda a equidade entre os autores nacionais, a exemplo de Pontes de Miranda, Vicente Rao, Carlos Maximiliano, Caio Mário, Serpa Lopes e Washington de Barros Monteiro. Com vários exemplos tomados do direito positivo então vigente (o livro é de 1968), o autor concluiu que a equidade é fonte formal do direito, especialmente na sociedade moderna, "em que a lei é concebida sob o império da razão, como norma técnica do governo, em que ela disciplina relações sociais".

Pelo que entendi, o concurso não teria prosperado, por razões de formalidades e de procedimento. Ficou o livro: 150 páginas da mais exuberante forma de doutrina, hoje tão rara e tão macunaímica. 

 é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).


sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Goia: a arte como refúgio de criminosos - Marcílio Franca e Marcelo Franca (Conjur)

OPINIÃO

Máfia, tráfico de obras de arte e a resposta da Polícia Federal


Conjur, 19 de janeiro de 2023


No último dia 16 de janeiro, depois de 30 anos de perseguição implacável, o capo di tutti i capi da Cosa Nostra Matteo Messina Denaro foi preso em Palermo, Sicília, pelos Carabinieri, a polícia italiana. Nascido em Castelvetrano, Sicília, em 1962, Matteo Messina Denaro é filho do padrinoFrancesco Don Ciccio Messina Denaro e sucedeu o mítico Salvatore TotòRiina na liderança do clã corleonese, após a prisão deste último em 1993. Matteo Messina Denaro chegou a ser um dos dez fugitivos mais procurados do mundo.

Além de uma longa lista de crimes, que inlcui extorsão, descarte ilegal de lixo, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, assassinatos, atentados terroristas e sequestros, Matteo Messina Denaro e sua família estavam particularmente envolvidos com crimes com obras de arte. Seu pai, Don Ciccio, já traficava obras de arte e legou ao filho não apenas a crueldade mas também uma certa paixão por bens culturais — tanto que obras de arte foram uma das pistas seguidas pelos policiais para chegar a Matteo Messina Denaro. 

Don Ciccio ficou famoso por roubar, em Castelvetrano, em 1962, a estátua conhecida como o Efebo de Selinunte, um Adónis em bronze, de 400 aC, recuperada em Foligno em 1968, graças à atuação do agente secreto e crítico de arte Rodolfo Siviero. Segundo a Direzione Investigativa Antimafia da Itália, por trás desse crime estava Giovanni Franco Gianfranco Becchina, conterrâneo dos Messina Denaro e famoso traficante internacional de arte. De tão importante, Becchina, dono de cinco armazéns repletos de obras de arte no Freeport de Genebra, tem direito até a verbete na famosa base de dados Sherloc, do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime. 

Um dos maiores crimes da história da arte, o roubo da gigantesca tela Nativitàde Caravaggio, do Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, em 1969, jamais encontrada, também teria as digitais dos Messina Denaro.

O mafioso pentito Giovanni Brusca delatou que, no início dos anos 1990, o chefão Totò Riina o encaminhou a Matteo Messina Denaro quando ele quis obter algum importante achado arqueológico para oferecê-lo ao Estado italiano em troca de benefícios prisionais para seu pai. Matteo Messina Denaro também esteve envolvido no assalto à Galleria Estense, de Módena, em janeiro de 1992, quando bandidos levaram pinturas de Velázquez, Correggio e El Greco que seriam trocadas por benefícios carcerários para o boss Felice Maniero, preso oito anos antes. Nestes e em outros casos, a arte roubada foi utilizada em secretas negociações entre o Estado e a Máfia.

No final dos anos 90, Matteo Messina Denaro comandou o roubo do Sátiro Dançante de Mazara del Vallo, um precioso bronze grego atribuído a Praxiteles. A obra foi recuperada quando já estava prestes a ser comercializada a peso de ouro, através de canais suíços, a um colecionador estrangeiro.

Pizzinu, em dialeto siciliano, é o bilhetinho de papel que a máfia utiliza para comunicações entre os chefões. Em um famoso pizzinu apreendido pela polícia, Matteo Messina Denaro escreveu: "Con il traffico di opere ci manteniamo la famiglia". Com o tráfico de obras de arte se mantém a famiglia, seja ela a Cosa Nostra, a Camorra, a 'Ndrangheta, a Banda della Magliana ou a Sacra Corona Unita.

Artefatos de valor histórico e cultural, além de significar poder e prestígio para um capo e valiosa moeda de troca, são ainda especialmente susceptíveis a operações de lavagem de dinheiro, entre outros fatores, devido à alta subjetividade do valor desses itens, à tradicional confidencialidade das transações nesse mercado e ao baixo nível de controle estatal sobre os atores do segmento. O tema não é novo

Ao longo das múltiplas fases da operação "lava jato", por exemplo, mais de 200 obras de arte de alto valor foram apreendidas pela Polícia Federal em residências e escritórios associados a figurões da política nacional, megaempresários e operadores financeiros. Obras de arte foram encontradas também pela Polícia Federal em casos envolvendo a falência do Banco Santos, o superfaturamento de obras na antiga Avenida Água Espraiada (hoje Jornalista Roberto Marinho) e a prisão do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia.

Nesses e outros casos em que artefatos culturais são adquiridos por criminosos com dinheiro "sujo", ou mesmo quando as próprias obras são objeto de crimes, como o furto e o tráfico internacional, a legislação criminal brasileira autoriza sua apreensão e perdimento.

No entanto, dar concretude ao comando legal não é tarefa fácil. Para possibilitar a apreensão de pinturas, esculturas, antiguidades e outros itens, é preciso que os policiais estejam aptos a investigar operações espúrias, identificar obras valiosas, periciar e apontar corretamente seu preço de mercado e dar adequada destinação aos artefatos, ao fim da investigação.

Ciente da importância e da dificuldade dessas tarefas, a Polícia Federal inaugurou em agosto de 2021 o projeto Goia, acrônimo para Guarda, Observação, Investigação e Análise de Patrimônio Histórico, Bens Culturais e Obras de Arte — e, claro, homenagem a Francisco José de Goya y Lucientes, o estupendo pintor espanhol. O projeto tem como missão funcionar como facilitador em todas as etapas da investigação que envolverem peças, sítios e imóveis de patrimônio histórico e bens culturais, desde o planejamento da operação até a destinação dos bens. 

O Goia tem orientado investigadores em relação à formalização de apreensões, transporte, nomeação de depositários, execução dos trabalhos periciais, cooperação internacional e repatriação de obras. O grupo já capacitou mais de cem policiais federais para trabalhar com a temática e visa ampliar ainda mais a difusão de conhecimento sobre a matéria na Polícia Federal.

Outro foco do grupo são acordos de cooperação com outras instituições, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e universidades, com a finalidade de ampliar a expertise da Polícia Federal, receber auxílio técnico e criar uma rede de instituições dispostas a custodiar provisoriamente os bens apreendidos. 

Em janeiro de 2021, por exemplo, a Polícia Federal entregou ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, integrante da rede Goia, mais cem obras de artistas renomados, decorrentes de 11 mandados de busca e apreensão cumpridos na 79ª fase da operação "lava jato", denominada Vernissage. No acordo, o museu fica integralmente responsável pelos de armazenamento e conservação das peças. 

Em seus planos para o futuro, o Goia trabalha para a criação de um grande banco de dados com informações de peças roubadas, desaparecidas e dados de análises técnicas, contando, para isso, com o apoio dos parceiros integrantes da própria rede, bem como da Interpol. O crime organizado, além de nos roubar a liberdade e a esperança, rouba também o nosso patrimônio cultural, e a criação do Goia é uma excelente resposta à luta contra esse tipo de criminalidade.

 é procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba, professor de Direito da Arte da Universidade Federal da Paraíba, árbitro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Genebra), da Corte de Arbitragem para a Arte e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, ex-professor visitante nas universidades de Turim, Pisa e Ghent, tendo sido, ainda, Calouste Gulbenkian Fellow no Instituto Universitário Europeu de Florença.

Marcelo Franca é delegado da Polícia Federal, aprovado em primeiro lugar no concurso mais recente, e autor do livro Aprovados - Delegado de Polícia Federal (Ed. Juspodivm).

Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2023, 21h16


segunda-feira, 25 de julho de 2022

"As razões do iluminismo", de Sergio Paulo Rouanet, por Arnaldo Godoy (Conjur, Embargos Culturais)

 Rouanet, como Merquior, colegas de Itamaraty, levaram um combate extremo contra o irracionalismo, e em defesa da razão, no Brasil em geral, na educação em particular, e na diplomacia, enquanto puderam. Mas exerceram a diplomacia, na maior parte de suas vidas ativas durante a ditadura militar, que acreditava num outro tipo de racionalismo, mais instrumental do que propriamente iluminista.

Paulo Roberto de Almeida

Embargos culturais

Sobre a obra "As razões do iluminismo", de Sergio Paulo Rouanet

Por 

Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022) acreditava na força da razão e no poder de crescimento e realização dos ideais do ser humano. Denunciou o irracionalismo. Trata-se de tema central de “As razões do iluminismo”, um de seus livros mais significativos para os dias de hoje.

O iluminismo, escreveu Rouanet, havia liberado forças sociais que nos permitiram organizar nossas vidas. Libertamo-nos das sanções religiosas, do peso da autoridade escolástica, ainda que tenha o iluminismo também liberado forças que nos tornaram dependentes da técnica e do funcionalismo das relações. Rouanet propôs um resgate crítico do conceito de razão, do projeto de modernidade e do legado da ilustração.

Foi pensador da crise da razão, defensor de um racionalismo novo, fundado numa nova razão. A razão iluminista pretendia-se no centro das atenções. Para Rouanet, no entanto, a razão talvez não pudesse tudo, mas era o único bem com o qual contávamos.

Rouanet participou dos debates ligados ao pós-modernismo, que se revelava como atitude cética para com a racionalidade construída pelo pensamento iluminista. Aqueles que se identificavam como pós-modernos (uma expressão que já quis significar tanta coisa e que talvez por isso não nos diga mais nada hoje), opunham-se às promessas de um certo modelo moderno, que acenou com a objetividade, a neutralidade e o progresso ilimitado de uma ciência que nos salvaria.

Pós-modernismo, modernismo, modernização, pós-modernidade e modernidade manifestavam-se como expressões convergentes que paradoxalmente explicitam antagonismos conceituais. O pós-modernismo originariamente indicava movimento das culturas capitalistas mais avançadas, especialmente nas artes e, nesse sentido, estaria para a pós-modernidade na medida em que o modernismo estaria para a modernidade. Propunha-se a dissolução de todas as formas culturais e sociais associadas com à modernidade. Segundo Perry Anderson, o termo foi pela primeira vez utilizado por Arnold Toynbee.

“As razões do iluminismo”, foi publicado pela Companhia das Letras em 1987. É um livro de época. Rouanet afirmou que assistíamos em todo o mundo (em meados dos anos 80) tendências que previam um novo irracionalismo. Para Rouanet esse novo irracionalismo era “mais perturbador do que o antigo, porque não está [estava] mais associado a posições políticas de direita”.

Passados um pouco mais de 30 anos dessa afirmação verificamos que o irracionalismo (que constatamos no terraplanismo e em várias outras formas de negacionismo) radica, justamente, nas posições políticas de direita. A constatação, no entanto, não anula o postulado. O repúdio à razão, escreveu Rouanet, não decorria da negativa sistemática das realidades transcendentes (pátria, religião, família, Estado). Derivava do compromisso da razão com o poder.

Rouanet já anunciava um novo irracionalismo brasileiro. É que, escreveu, muitos egressos de um sistema educacional deficitário transformavam “seu não saber em norma de vida, e em modelo de uma nova forma de organização das relações humanas”. O não-saber tornou-se uma forma muita estranha e irracionalmente prestigiada de saber. O aluno de notas baixas, desinteressado, tornou-se o protagonista central do lugar comum e das banalidades. Passou a ter voz com prestígio midiático.

Em “As razões do iluminismo” há também passagens antológicas de criticismo cultural. Rouanet afirmou que muitos combatiam a cultura de massa norte-americana por que era americana, e não porque era uma cultura de massas. Inversamente, escreveu “a cultura de massas brasileira é apoiada pelo mero fato de ser brasileira, por mais alienante que seja”. Esse trocadilho inteligentíssimo lembra-nos um outro intelectual do Itamaraty, Roberto Campos, que denunciava o “fetichismo do umbigo”: brasileiros preferíamos andar de charretes de acionistas de Paracatu do que andarmos de Mercedes de acionistas de Frankfurt.

No contexto do irracionalismo brasileiro Rouanet anunciava também um crescente antielitismo, cujo objetivo consistia na tentativa de se desqualificar a cultura superior. Os profetas do não-saber voltaram-se contra velhos estereótipos da cultura aristocrática. Rouanet percebeu um “mandarinato da era eletrônica”, que “cumpre competentemente sua missão de sacralizar a cultura de massas”. Estão no Tik Tok.

Não desprezemos a cultura, parece ser a grande lição de Rouanet. Exemplifiquemos. Para esse importante ensaísta, qualquer língua culta é superior a qualquer língua natural: o dicionário de Antônio Houaiss registra cerca de 400 mil palavras, enquanto nenhuma língua natural vai além de três ou quatro mil palavras”.

Essa perspectiva vale para a música, para a literatura, para as artes plásticas, para o direito, e para todas as formas de representação de emoções e alegrias e dramas e problemas humanos.

Em 1987 Rouanet escreveu que “os fatos sociais só mudam com outros fatos sociais, e o irracionalismo brasileiro é hoje um fato social. Mas a razão, convertida em força histórica, pode criar um fato social oposto, fazendo recuar a onda irracionalista que ameaça submergir o país”. Essa passagem faz do pensador que perdemos semana passada um vidente, ainda que o fato social oposto pareça, ainda, um dado flutuante num espaço inexistente. 


1 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.


quinta-feira, 24 de março de 2022

Livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado mostra legado do Visconde do Uruguai na política externa brasileira (Conjur)

 

DIPLOMACIA E DIREITO

Livro mostra legado do Visconde do Uruguai na política externa brasileira

O processo de construção do Estado-nação brasileiro pelas visões, crenças e motivações do político e ex-chanceler Paulino José Soares de Souza é tema do livro "Ideias e diplomacia: o Visconde do Uruguai e o nascimento da política externa brasileira (1849-1853)", que a editora portuguesa Lisbon International Press acaba de lançar.

Para o autor, Paulino de Souza, o Visconde do Uruguai, fundou a diplomacia brasileira
Divulgação

Autor da obra, o diplomata e jurista Paulo Fernando Pinheiro Machadomostra que coube a Paulino, também conhecido como Visconde do Uruguai, a tarefa de conferir ao Brasil independente uma política externa coerente e estruturada, legando ao novo país uma tradição diplomática que serviu de referência para seus sucessores.

Para Pinheiro Machado, Paulino foi o pai fundador da política externa brasileira. Senador do Império, ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, além de embaixador em missão especial na França, ele acreditava que o Brasil deveria exercer uma hegemonia benévola na América do Sul, que lhe permitisse dialogar de igual para igual com as grandes potências — ideia que agradava ao imperador dom Pedro II e que balizaria a atuação externa do Império no momento da formação do Estado nacional.

No livro, o autor mostra também que Paulino foi responsável pela criação da estrutura administrativa da chancelaria e pela profissionalização do corpo diplomático — são de autoria dele os documentos legais que fundamentaram o antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros e as instruções para o exame dos candidatos a "adido de legação", primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira.

Paulino José Soares de Souza "foi, indiscutivelmente, um dos pais construtores do Estado brasileiro e um dos fundadores de sua diplomacia, tal como ela conseguiu se libertar de duas pesadas amarras da herança internacional portuguesa e passou a cuidar, verdadeiramente, dos interesses nacionais", diz o embaixador Paulo Roberto de Almeida no prefácio.

Paulo Fernando Pinheiro Machado é diplomata, jurista, historiador, escritor e financista. Viveu em diversos países e atuou como encarregado de negócios do Brasil em Praga (República Tcheca) e em Copenhague (Dinamarca). É integrante das comissões de Direito Internacional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e da OAB-PR e membro honorário da Comissão Especial de Direito Marítimo, Aeronáutico, Portuário, Aduaneiro e Hidroviário e da Comissão de Relações Internacionais e Integração do Mercosul da OAB-RS.

"Ideias e Diplomacia" custa R$ 39 e está à venda no site da Livraria Atlântico. O prazo para postagem é de 15 dias úteis.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

As estranhas reações à indicação de André Mendonça para o STF - Vladimir Passos de Freitas (Conjur)

 Defendendo a reputação do "acusado": 

Segunda Leitura

As estranhas reações à indicação de André Mendonça para o STF

Por 

https://www.conjur.com.br/2021-dez-26/segunda-leitura-estranhas-reacoes-indicacao-andre-mendonca-stf

O presidente da República, em 13 de julho deste ano, indicou André Luiz de Almeida Mendonça para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, conforme determina o artigo 84, inciso XIV, da Constituição Federal. Para fazê-lo, seguiu as exigências do artigo 101, que exige dos integrantes da Corte mais de 35 e menos de 65 anos de idade, notável saber jurídico e reputação ilibada.

O indicado tem 48 anos de idade, portanto, dentro dos limites constitucionais. Seu saber jurídico é notável, bastando lembrar, entre outras coisas, que é doutor e mestre em Direito pela Universidade de Salamanca, Espanha, foi pesquisador e professor visitante da Universidade de Stetson, Estados Unidos, é professor do curso LL.M em Direito: Compliance, da FGV-Rio, do programa de mestrado e doutorado em Direito da Instituição Toledo de Ensino de Bauru e do Programa de Pós-Graduação "stricto sensu" do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social-Cedes, em São Paulo. Finalmente, é detentor de reputação ilibada, pois, na sabatina a que se submeteu no Senado, não se disse uma só palavra que pudesse desaboná-lo.

Portanto, cumprindo todos os requisitos constitucionais, era de se esperar que sua indicação transcorresse sem grandes sobressaltos. No entanto, o que aconteceu foi o oposto. Somente em 1º de dezembro ele foi inquirido e aprovado no Senado, tendo que aguardar quatro meses em espera plena de ameaças de rejeição.

Mas então, se preenchia André Mendonça, com facilidade, os requisitos constitucionais, qual a razão de sua tormentosa espera? Ser pastor evangélico da Igreja Presbiteriana do Brasil. 

Segundo consta, "A Igreja Presbiteriana do Brasil é uma federação de igrejas que têm em comum uma história, uma forma de governo, uma teologia, bem como um padrão de culto e de vida comunitária. Historicamente, a IPB pertence à família das igrejas reformadas ao redor do mundo, tendo surgido no Brasil em 1859, como fruto do trabalho missionário da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos" [1]. Ela foi trazida ao Brasil por Ashbel Green Simonton, na cidade do Rio de Janeiro, em 1859. 

Totalmente entranhada na vida nacional (p. ex., o Instituto Presbiteriano Mackenzie), a IPB desenvolve diversas atividades. Seus pastores, tal qual os padres da Igreja Católica Apostólica Romana, têm por missão auxiliar as pessoas a conduzir-se de acordo com os ensinamentos da Bíblia.

Mas, afinal, o que isto significa de tão perigoso, de modo a despertar temor tão grave? 

A resposta é uma mescla de ideias e sentimentos paralelos, envolvidos por disputas políticas, onde a paixão irracional dá o tom do raciocínio. Neste caldeirão entram desde uma frase dita pelo chefe do Executivo, no sentido de que escolheria um ministro "terrivelmente evangélico", até ocorrências com Igrejas pentecostais sem qualquer tradição, fundadas aleatoriamente com objetivos pouco claros.

No centro da rejeição ao nome de André Mendonça estaria um temor de que os seus julgamentos viessem a ser feitos com fundamento na Bíblia e não na Constituição do Brasil. Em outras palavras, da formação de um Estado Teocrático, como, na atualidade, alguns no Oriente Médio. Implícito a tal suposição, vinha um receio de medidas contrárias às conquistas sociais mais recentes, o que representaria um retrocesso, todas tomadas com fiel obediência ao Presidente da República que o indicou.

Há fundamento para tais suposições?

A primeira observação é a de que o indicado ser cristão significa, exclusivamente, seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. Estes, perenizados nas palavras dos apóstolos no Novo testamento da Bíblia, nada mais são do que buscar a conversão interior, cultivar a humildade, repelir a vaidade, cultivar a solidariedade, a paz, para, a partir delas, mudar o mundo. Toda a civilização ocidental vem pautada por seus princípios e, se muitos erros foram e continuam sendo cometidos, é porque nós, seres humanos, somos imperfeitos e necessitamos perseguir permanentemente o nosso aprimoramento.

Entretanto, abstraindo o fato de ser cristão, que muito longe de ser defeito é virtude, há outros aspectos que ataques irrefletidos e carregados de conotação política não levaram em conta.

Um deles é o de que, sejam quais forem as previsões ou as promessas feitas para alguém sondado para ocupar uma vaga no STF, jamais será possível ter-se, a respeito, certeza absoluta. As razões são várias, mas entre elas está a de que as pessoas podem mudar suas posições a partir do conhecimento da realidade, do amadurecimento e da avaliação dos fatos sob um panorama nacional e não local.

Outro é a forma como se encara a suposta lealdade. Para uns, ela consiste em uma servil obediência a quem fez a indicação. Aqui há um erro de foco. Se algum ministro procedeu ou vier a proceder de tal forma, o problema será de caráter e não de "lealdade". Gratidão deve haver, por óbvio. E isto deve traduzir-se em atos de atenção e solidariedade ao longo da vida. Julgar de acordo com o desejo de quem fez a indicação é outra coisa. Isto está mais para um pacto de sangue da máfia siciliana do que para o nobre sentimento de lealdade. Grandes ministros, como Teori Zavascki (indicado pela presidente Dilma Rousseff) e Cezar Peluso (indicado pelo presidente Lula da Silva), nunca votaram pagando o "favor".

Ainda, os presidentes da República atuam por mandato. Portanto, um indicado estará mais próximo de quem indica apenas por um período que, por vezes, pode ser curto e, em outras, no máximo, dobrado por uma vez. E depois terá décadas de afastamento formal.

A partir da discreta personalidade do ministro André Mendonça, vejamos se há indicadores de que venha a agir incorretamente. E aí temos o terceiro requisito para alguém que ocupe a mais elevada posição do Judiciário brasileiro: moral ilibada. 

Do ponto de vista de antecedentes, é impossível encontrar máculas na vida do indicado. Sua vida, como pode imaginar o mais ingênuo dos brasileiros, foi vasculhada de cima a baixo pelos contrários à sua indicação. E nada foi encontrado. Se tivesse feito uma malcriação à professora do segundo ano primário na pequena Miracatu (SP), certamente isto teria vindo à tona.

O fato é que o novo ministro tem longa trajetória como membro da Advocacia-Geral da União (desde 2000), chegando à posição máxima na hierarquia, qual seja, ministro Advogado-Geral da União, sem qualquer mácula.

E mais. Em um país em que a corrupção dá mostras de forte resistência, conseguindo expressivas seguidas vitórias, traz o novo ministro larga experiência no seu combate [2]. Com efeito, foi ele assessor especial do ministro da Transparência e Controladoria-Geral da União, coordenou a negociação do acordo com o Grupo OK, relacionado ao conhecido caso da construção do TRT de SP, gerando expressiva recuperação de ativos, coordenou as equipes de negociação dos acordos de leniência celebrados pela CGU e AGU nos casos relacionados com a Operação Lava Jato e é autor do livro Negociación en casos de corrupción: fundamentos teóricos y prácticos [3]. Portanto, é um experto no assunto.

Ao final, na falta de dados concretos, sobrevieram outras acusações contra o indicado, como a de mau uso da Lei de Segurança Nacional quando à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ora, a lei estava em vigor e usá-la era praticar ato de ofício.

Em suma, em boa hora o Senado aprovou a indicação de André Luiz de Almeida Mendonça para o cargo de ministro do STF. Supremo absurdo seria o fato de ser cristão prejudicá-lo, não sendo demais lembrar que o preâmbulo da Constituição, explicitamente, reconhece ser ela promulgada sob a proteção de Deus e o artigo 5º, inciso VI, assegura a todos a liberdade de crença. Nada melhor que o período de Natal para que isto seja lembrado.

O passado do novo integrante da Corte, sua simplicidade, habilidade conciliatória, aversão ao exibicionismo, dão a certeza de que bem cumprirá sua nobre missão. É o que o Brasil precisa.


[1] Disponível em: https://ipb.org.br/ipb/história. Acesso em 22 dez. 2021.

[2] Informações obtidas a partir de consulta feita em Busca Textual - Currículo Lattes (cnpq.br). Acesso em 23 dez. 2021.

[3] MENDONÇA, André Luiz de Almeida. Valencia: Editora Tirant lo Blanch, Espanha, 2018.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Embargos Culturais: Os vários legados de Victor Nunes Leal - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Conjur)

O grande mestre cassado pela ditadura resolveu o enigma do nosso fracasso como país, como nação, como Estado: a subalternidade do município como foco central da vida da nação. Ninguém vive na União, ninguém vive nos estados, todos vivemos num município, daí a importância fulcral da funcionalidade e da centralidade administrativa do município para a vida de cada um de nós. No entanto, o município foi sempre esquecido nos arranjos constitucionais e colocado apenas a serviço das oligarquias, os coroneis (e existem até hoje, sob formas aparentemente modernas). Daí também a grande diferença, entre termos de desenvolvimento, entre, de um lado, as formações políticas anglo-saxãs, cuja democracia, cuja vida, cujo funcionamento parte da aldeia, do village, no máximo do county, do condado, para depois se projetar em esferas mais amplas, e de outro lado, nossos municípios que praticamente não têm vida própria, nem finanças próprias, tudo dependendo do estado ou da União. Vai ser preciso refundar a nação. 

Paulo Roberto de Almeida

Embargos Culturais

Os vários legados de Victor Nunes Leal

Por 

Victor Nunes Leal (1914-1985) foi infatigável estudioso, de quem se dizia acordar às duas horas da madrugada para preparar suas aulas de Direito Constitucional. Doutor em Ciências Sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu multifacetária atividade. Foi advogado, jornalista, ministro do Supremo Tribunal Federal, consultor-geral da República, chefe da Casa Civil (no Governo Juscelino). Era um mestre, no sentido mais puro da expressão. Afastado do STF pelo Ato Institucional em 1969, permaneceu na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo. 

O insuperável Roberto Rosas, em "Perfis do Mundo Jurídico"[1] sintetizou as inúmeras habilidades de Nunes Leal. O tema das súmulas, hoje central na expressão prática da vida jurídica, que Roberto Rosas também tratou em livro fundamental[2], radica, objetivamente, em legado de Nunes Leal, mineiro da Carangola. Metódico, Nunes Leal reunia e resumia em cadernos (que já vi expostos na biblioteca do STF) pontos convergentes entre temas discutidos e as várias decisões proferidas. Sintetizava uma linha de pensamento, que reduzia em fórmula rápida e direta. 

Emendou-se o Regimento do STF, concebendo-se um "enunciado de súmula", decidido pelo Plenário, proposto por uma então criada Comissão de Jurisprudência, ou por qualquer dos ministros, nesse caso, com parecer da Comissão. Nesse tema, há interessante estudo de Marcus Gil Barbosa Dias, que foi assessor de Sepúlveda Pertence e que mapeou a luta de Nunes Leal contra o desconhecimento que o STF tinha, em relação às próprias decisões[3]

Nunes Leal batiza a biblioteca do STF e o centro de estudos da AGU. Era vice-presidente do STF quando foi compulsoriamente aposentado pelo governo militar. As emblemáticas decisões de Nunes Leal foram comentadas por Fernando Menezes de Almeida, autor de preciocíssimo Memorial Jurisprudencial desse combativo juiz e advogado[4]

Esse estudo inicia-se com comentários ao decidido no Recurso Extraordinário 54.190; segundo Fernando Menezes de Almeida, "trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundo debatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo a amplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de se as interpretar"[5]. Essa decisão, penso, é a certidão de batismo das súmulas, em sua dimensão operacional. É o antepassado mais vivo do inciso IV do art. 927 do atual Código de Processo Civil.

O municipalismo é outro tema central em Nunes Leal. Chamo a atenção para O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Coronelismo, publicado em livro importante para compreensão da realidade brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto[6]. No núcleo do pensamento de Nunes Leal, o estigma da centralização, que tem marcado nossa experiência política. O fracasso do modelo dos donatários (criado em 1532) determinou a criação do sistema do governador-geral (com sede em Salvador). Salvo pouquíssimas manifestações nativistas (Emboabas, Mascates), quase nada se fez, em termos de autonomia municipal. 

A experiência joanina (1808-1821) deu muita importância para o Rio de Janeiro, em detrimento dos demais lugares do país. O texto constitucional de 1824 desconhecia a vida da vila, circunstância mantida pelo Ato Adicional de 1834, em que pese pregações descentralizadoras do Padre Diogo Antônio Feijó. O texto republicano de 1891 (reformado em 1926) possibilitou o controle do município pelo poder central, no contexto da política do café-com-leite e do coronelismo, ambiente político e eleitoral pesquisado por Nunes Leal, que estudou também a estrutura normativa da carta de 1946, quando ao município já se outorgavam poderes, competências, características, ainda diminuídos por mentalidade que tudo outorga ao federal, substantivo que usamos muitas vezes como adjetivo.

Para Nunes Leal a propriedade da terra é fator de liderança política local, de onde a relação entre poder e política. É que tal propriedade é historicamente concentrada, determinando dicotomia na composição das classes na sociedade rural. O chefe construía poder a partir do meio agrícola, exercendo-o no meio urbano, que controla à distância, seja da propriedade ou da capital, estadual ou federal.

É no município, no entanto, que se desenvolve a vida real. É no ambiente cotidiano que se aferem serviços públicos, pelo que elenco de competências identificadas em textos normativos apenas contemplam realidade fática. Emperrada pela política tradicional da República Velha, a vida municipal encalacrou-se entre valores como moralização e eficiência, nos primeiros dias do golpe de 1930. Porém o municipalismo foi sufocado com a carta de 1937, que consagrou as orientações de Francisco Campos, suprimindo o princípio da eletividade dos prefeitos. Ao não mencionar o município, o modelo republicano de 1891 promoveu um silêncio enigmático, esfíngico, que possibilitou consolidação normativa, que ensejou o esvaziamento do poder local. 

Nunes Leal identificou pontos essenciais que informam a trajetória do municipalismo brasileiro. Constatou centralização arbitrária, que faz do município meio e não fim, tornando a vida local espaço de manobra para poder distante. Percebeu que injunções locais eram trianguladas por polos de poder (vinculado à posse da terra), de submissão econômica e de procedimento eleitoral falsificado, o que justificou título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto

Compreendeu que todas as funções da vida prática se dão no município, que detém fins e por isso carece de deter meios também. Observou que a eletividade é princípio sonegado, em nome de uma moralidade volátil, distante. Sublinhou que o silêncio normativo paralisa o município, tomado por tradição histórica que respeita o macro, o grande, consubstanciado no poder central. Despreza-se o micro, o local, onde se vive cotidiano que tem massacrado os mais carentes, cujos gritos e soluços não provocam ouvidos moucos de sistema centralizado. 

É que forças centralizadoras se oxigenam no município, aos quais retribuem com o esquecimento e atitudes interesseiras, como constatado por Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto é um livro clássico, que exige permanente atenção, leitura e releitura. Os tempos mudaram, porém, muitas estruturas ainda nos marcam profundamente. 

De igual modo, as súmulas, que antecedem súmulas vinculantes e precedentes qualificados, e tantas figuras contemporâneas, a exemplo de incidentes de resolução de demandas repetitivas e de incidentes de assunção de competência. Foi Fernando Almeida quem coletou passagem de Aliomar Baleeiro no MS 15.866, que se referiu a Nunes Leal como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal Federal andando pelas ruas”. 

 

[1] Roberto Rosas, Perfis do Mundo Jurídico, Ribeirão Preto: Migalhas, 2011. 

[2] Roberto Rosas, Direito Sumular, São Paulo: Malheiros, 2012. Roberto Rosas dedica esse livro de leitura obrigatória entre outros, para Victor Nunes Leal. 

[4] Fernando Menezes de Almeida, Memória Jurisprudencial- Ministro Victor Nunes Leal, Brasília: STF, 2006. 

[5] Fernando Menezes de Almeida, cit., p. 11. 

[6] Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Alfa Ômega, 1976.


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade - Arnaldo Godoy (Conjur)

 

Embargos Culturais

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade

Por 

Em "Da codificação, crônica de um conceito"[1] o autor, Fábio Siebeneichler de Andrade, sugere pistas para a identificação das motivações políticas, filosóficas e instrumentais que orientam os processos de codificação do direito. Entende-se, na leitura desse belíssimo livro, que do ponto de vista político a codificação atende a projetos de centralização. Além do que, do ponto de vista filosófico, a codificação pretenderia demonstrar que o direito positivo seria uma construção normativa dos valores do direito natural. O código, nesse sentido, seria o direito natural legislado. E ainda, instrumentalmente, a codificação seria indício de segurança jurídica e de certeza na aplicação do direito. 

O autor sustenta esse argumento seccionando o livro em três partes. Discorre sobre os processos históricos de codificação, em seguida avalia uma suposta crise dos códigos, em forma do argumento da descodificação, concluindo com prognósticos sobre o futuro da codificação. Acredita nos códigos. Explicita a origem da expressão. O codex remete-nos a uma tabuleta de madeira, mais tarde untada com cera, na qual se escrevia. Agrupados, tinha-se formato que nos lembra o livro atual, em contraposição ao volume, no qual as anotações eram dispostas em forma de rolo. Textos normativos eram registrados em um codex, e a expressão então designou essa forma de fixar a norma jurídica. 

O código, como concebido contemporaneamente, é documento jurídico no qual há planejamento lógico e agrupamento sistêmico, no argumento do autor. Nesse sentido, fora de propósito entendermos o Código de Hamurábi, a Lei das 12 Tabuas ou qualquer outro documento normativo antigo como código, ainda que o façamos por força de tradição de registro literário. Na concepção contemporânea de código, associada a padrões do iluminismo, tem-se mecanismo de enfrentamento do problema da dispersão das fontes do direito. O código pretende apreender uma totalidade temática, disciplinando-a como sistema. Permite a busca da coerência do ordenamento jurídico, fulminando lacunas e resolvendo antinomias. O código, basicamente, facilita o acesso às normas. É fórmula para a obtenção da unidade e da segurança do direito. 

No argumento do autor, o código decorre de um planejamento lógico e de um agrupamento sistêmico. É construído mediante um método geométrico e dedutivo, no qual os artigos são expostos como teoremas vitais. Em uma perspectiva histórica, o código é agente da estatização do direito privado, afirmando poder político, que se revela como seu garantidor de aplicação. Realiza-se o plano político de Rousseau, para quem há uma primazia da fonte legislativa sobre a autoridade tradicional. 

Fábio Siebeneichler de Andrade retoma a tradição do direito romano, imprescindível para que entendamos a dinâmica conceitual de um código, ainda que não se possa falar com certeza da codificação do direito antigo, incluído o Código de Justiniano. Esse último figura como método, a exemplo das Institutas e das divisões propostas, especialmente em direito natural, das gentes e civil, a par de pessoas, coisas e ações.  O autor explora a tradição medieval dos glosadores e dos comentadores, que fixaram um método de estudo. É o mos italicum, que remonta a Bártolo de Sasoferrato e aos juristas eruditos da Escola de Bolonha. Há também reflexões em torno do jusnaturalismo racionalista e à compreensão dos fatores políticos da codificação.

O autor centra o livro nas grandes codificações europeias, especialmente quanto ao papel de Napoleão n contexto da redação de seu código. Informa-se que Napoleão participou das sessões nas quais os textos eram discutidos, intervindo 84 vezes, quando usou da palavra e argumentou, especialmente no tema do divórcio. Há explicações quanto à famosa polêmica Savigny contra Thibaut, relativa à necessidade de redação de um código civil para a Alemanha. Essa polêmica configura-se como um dos momentos mais tensos na construção do direito alemão no século 19, projetando-se seus efeitos para debates em outros países, até cotidianamente. Essa disputa revelou tensão entre o racionalismo iluminista e o historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do direito romano. Savigny era contrário à codificação. Thibaut a defendia. Venceu esse último, com a promulgação do Código, em 1900. 

Fábio Siebeneichler de Andrade trata em seguida da codificação do direito privado no Brasil. Destaca a influência das Ordenações, retoma o artigo 179, XVIII, da Constituição de 1824 (que determinava a confecção de um código civil), lembra o esforço de Teixeira de Freitas (e sua Consolidação), bem como as atuações de Nabuco de Araújo, de Joaquim Felício dos Santos (Apontamentos), de Coelho Rodrigues, chegando ao projeto de Clóvis Beviláqua e ao subsequente debate entre Rui Barbosa e Barata Ribeiro, limitado a problemas de gramática e de estilo. O leitor pode ampliar o contexto temporal da discussão, com a leitura da História do Novo Código Civil, de Miguel Reale. O autor também sintetiza a história de outras constituições latino-americanas, a exemplo da Argentina e do Chile. 

Trata, na parte final, dos processos de descodificação, que revelam a crise dos códigos, cujos temas são capturados pela ascensão do direito público, mais especificamente pela constitucionalização do direito privado. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se microssistemas normativos, que na visão do autor expressam instâncias de particularismo jurídico. Defendendo a função harmonizadora dos códigos, Fábio Siebeneichler de Andrade conclui que o modelo — código — representa uma categoria normativa "altamente representativa que por estar associada ao princípio da continuidade sempre estará a (co) ordenar o direito privado". 

[1] Essa resenha foi publicada originariamente na Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 24, ano 7, pp. 371-3, São Paulo: RT, julho-setembro 2020.


terça-feira, 24 de novembro de 2020

TRF-4 extingue ação que cobrava R$ 6 trihões da China por pandemia - Conjur


1 PIB BRASILEIRO

TRF-4 extingue ação que cobrava R$ 6 trihões da China por pandemia

Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2020, 16h11


Os presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping
Valter Campanato/Agência Brasil

 

Por unanimidade a 4ª Turma do Tribunal Regional da 4ª Região decidiu extinguir uma ação popular que pedia que o presidente da China, Xi Jinping, pagasse R$ 6 trilhões ao Brasil.

O pedido foi ajuizado por um advogado de Florianópolis sob a justificativa de que o país asiático, maior parceiro comercial do Brasil, deveria indenizar nosso governo pelos prejuízos provocados pela pandemia do novo coronavírus.

Na ação, o advogado argumenta que "existem provas de que o novo coronavírus teria sido fabricado em um laboratório chinês". Também aparecem como réus no processo o presidente da República, Jair Bolsonaro, o secretário especial de comunicação do governo brasileiro, Fábio Wajngarten, o Instituto de virologia de Wuhan, a OMS e as Forças Armadas da China.

Ao analisar a demanda, o colegiado entendeu que o pedido do autor não se insere dentro das possibilidades previstas pelo instrumento da ação popular.

Segundo caso
Não é o primeiro processo movido por um brasileiro que tenta responsabilizar a China pela pandemia do novo coronavírus no mundo. Em março, um contabilista de Rondônia ajuizou uma ação popular na Justiça Federal do Distrito Federal na qual exigia que a União obrigasse a China a arcar com prejuízos causados pela epidemia de Covid-19. O processo também foi extinto.

A solicitação foi feita com base no artigo 1º do Projeto da Comissão de Direitos Internacionais das Nações Unidas Sobre Proteção Diplomática. O dispositivo responsabiliza países por danos provocados por atos ilícitos.

"O governo brasileiro, utilizando dos seus recursos internos, vem sistematicamente promovendo os atos necessários a evitar que o povo brasileiro sofra maiores danos em decorrência da contaminação por coronavírus", dizia a peça.

Um estudo feito por cientistas dos Estados Unidos, Inglaterra e Austrália concluiu que o novo coronavírus foi originado naturalmente por meio de seleção natural, e não em laboratório, como dizem algumas teorias que ganharam força no Brasil.

5008874-67.2020.4.04.7200
1015852-66.2020.4.01.3400

COMENTÁRIOS DE LEITORES

1 comentário

CIENTISTAS E OUTROS CIENTISTAS

Rejane G. Amarante (Advogado Autônomo - Criminal)

Cientistas afirmam que o vírus de Wuhan é natural. Outros cientistas afirmam que foi criado em laboratório, é sintético. Há um Biolaboratório em Wuhan. Um médico chinês foi perseguido e morreu, por tentar alertar o mundo, através das redes sociais, sobre um novo vírus mortal na China em DEZEMBRO de 2019. Um jornalista e também advogado chinês saía pelas ruas e locais públicos de Wuhan, filmando tudo e enviava pelas redes sociais. Desapareceu em fevereiro de 2020.
Os danos patrimoniais no mundo inteiro são enormes.
Os lucros que alguns setores e específicas empresas vêm auferindo COM A PANDEMIA são simplesmente suspeitos.

Responder


segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Luis Gama, o maior abolicionista do Brasil - Ligia Fonseca Ferreira (Conjur)

"Lições de Resistência"

Obra de Luiz Gama é tão fascinante quanto a vida do abolicionista, diz pesquisadora

 

Nascido em 1830, de pai branco e mãe livre, foi vendido como escravo aos 10 anos de idade. Depois de se alforriar, aos 17 anos, aprendeu a ler e passou a estudar Direito por conta própria, frequentando a biblioteca e assistindo aulas no Largo São Francisco como ouvinte. Advogou pela libertação de mais de 500 escravos, sem cobrar honorários. Se sustentava trabalhando como jornalista. Aos 29, já era considerado "o maior abolicionista do Brasil", mas só recebeu o título de advogado 130 anos após sua morte.

A biografia de Luiz Gama, resumida acima, é conhecida. Mas um aspecto essencial da contribuição do intelectual parece ter sido relegado, injustamente, ao esquecimento: seu legado, a obra escrita que produziu em vida. É essa inquietação que motiva Ligia Fonseca Ferreira, professora de letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"Sabemos que  Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá foi para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra de Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa."

Figura notável no século XIX e único intelectual negro brasileiro a ter sofrido a escravidão, o advogado, abolicionista e escritor, nascido em Salvador em 21/7/1830, valeu-se da imprensa como principal meio para difundir suas ideias. Publicou, com uma constância surpreendente, em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, tais como o Correio PaulistanoO Ipiranga, Radical Paulistano, A República, Gazeta da Tarde, Gazeta do Povo, entre outros. 

Ainda assim, diz Ligia, os escritos de Gama acabaram caindo no esquecimento. Pensando nisso, ela organizou o recém lançado Lições de resistência — Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc, 2020).

"O que eu proponho é que o Luiz Gama seja lembrado como um ator importante do jornalismo. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um 'trabalhador incansável do jornalismo'. Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito", afirmou Ligia em entrevista concedida à ConJur por telefone. 

A obra é vendida pela Livraria ConJur (adquira clicando aqui). São mais de 40 textos inéditos, publicados entre 1864 e 1882, tendo como eixos temáticos a escravidão, a abolição, as ideias republicanas e os direitos humanos.

O livro dá continuidade a uma outra empreitada da professora. Em 2011 ela já havia organizado o Com a Palavra, Luiz Gama — Poemas, artigos, cartas, máximas  (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, R$ 55), obra que reúne vários textos e ilustrações inéditas. 

Confira os principais trechos da entrevista:

ConJur — Luiz Gama é geralmente lembrado pela pauta abolicionista. Como o tema aparece em sua obra e o que mais ele defendia?
Ligia Fonseca Ferreira —
 O abolicionismo era uma tema crucial e, no contexto daquela época, ser abolicionista para ele significava também ser republicano. Ou seja, para Luiz Gama, a pauta abolicionista acompanhava-se do combate ao regime imperial vigente na época. É preciso lembrar que ele foi uma figura proeminente das ideias republicanas. Naquele momento, o Brasil tinha uma posição singular como o único país das Américas que conservava uma monarquia e era escravocrata. A maioria dos países do continente, depois de independentes, proclamaram a república, sem necessariamente abolir a escravidão. 

Luiz Gama definia-se, nos jornais, como "extremo democrata", palavra que, naquele momento, era quase um sinônimo de republicano. Ele dizia ter "um sonho sublime" de um país "sem reis e sem escravos", que se chamasse Estados Unidos do Brasil, olhando para o modelo federativo do país norte-americano. A nação deveria se organizar politicamente, com estados federados, o que nós, bem ou mal, somos hoje. E o primeiro nome do nosso país, durante o regime republicano, foi "Estados Unidos do Brasil". Muitos historiadores afirmam ter sido Luiz Gama um dos primeiros a empregar essa expressão.

ConJur — Essas ideias eram bem aceitas?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Essas ideias não eram só dele, mas sim de todo um grupo de abolicionistas e republicanos maçons de São Paulo. Um evento vai desferir um golpe fatal na monarquia e disseminar a ideia abolicionista: a Guerra do Paraguai [1864 a 1870] e o seu desfecho, que evidenciaram os limites do trabalho escravo e da condição dos africanos. A partir desse ponto começa a crise do regime imperial e do sistema escravista, que perdurariam por cerca de vinte anos até a Abolição e Proclamação da República. 

Enquanto isso, Luiz Gama desenterra uma lei de 7 de novembro de 1831, que declara livre todos os escravos vindos de fora do império e, teoricamente, impõe penas severas aos traficantes. Quando Gama relembra a vigência dessa lei, querendo fazer a previsão valer, ele balança as instituições do país e igualmente a moral pública. É preciso lembrar que, depois da lei de 1831, cerca de 700 mil africanos foram contrabandeados para Brasil. Basta fazer as contas de quantos, além destes e dos seus descendentes, sofreram, como diria Luiz Gama, "escravidão indébita".

ConJur — Há algo de curioso e de atual nos textos. Os artigos sobre liberdade de imprensa, por exemplo, poderiam facilmente ser publicados hoje. Luiz Gama também citava nominalmente os juízes que tentavam censurar jornais ou que proferiam decisões para ele ilegais. Isso gerava discussões nos jornais e no Judiciário e fazia com que Gama tivesse muitos inimigos?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Gerava muito mais que discussões. Ele colocava o dedo em uma ferida imensa e chegou a ser processado e ameaçado. Não só tinha muitos inimigos como os nomeava, confrontava-se com eles por meio da imprensa. Teve, inclusive, uma briga pública com Rafael Tobias de Aguiar, filho da marquesa de Santos e de um dos homens mais ricos de São Paulo, o brigadeiro Tobias de Aguiar, que hoje dá nome à Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). 

Luiz Gama expunha sentenças de que discordava, apontando erros cometidos por juízes. Em alguns casos, convidava seus leitores a se dirigirem à redação do Correio Paulistano, um dos principais jornais paulistanos no qual era colaborador assíduo, para verificarem com seus próprios olhos os despachos que, segundo ele, demonstravam a "maneira extravagante como se administra a justiça no Brasil".

Ele também denunciou em artigos as ameaças que recebia. No texto "Ao Público" (Correio Paulistano, 24 de setembro de 1870), diz: "Mais de uma vez amigos íntimos e importantes, residentes no interior da província, hão me dado aviso para acautelar-me, com segurança, contra planos de atentados sérios, projetados contra minha humilde pessoa". Há uma grande ironia no que ele escreve, algo que ainda hoje nos faz rir. Por que ameaçar uma "humilde" pessoa, que não faz nada de mais, a não ser atacar poderosos fazendeiros e proprietários de escravos? Ele também era muito corajoso, chamando os escravagistas de "salteadores" [assaltantes]. O que eles assaltavam? A liberdade de milhares de pessoas, os africanos e seus descendentes, que eram escravizadas ao arrepio da lei. 

ConJur — A senhora costuma dizer que enquanto jornalista, enquanto pensador que difundia suas ideias em jornais, Luiz Gama é mais reconhecido do que lembrado. O que isso significa?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Que ele é muito citado, mas a sua obra é pouco conhecida. Sabemos que o abolicionista e ativista foi presença constante em importante órgãos de imprensa de sua época. Portanto, o que eu proponho é que o Luiz Gama seja igualmente lembrado como um ator importante do jornalismo. Ele se fez presente como colaborador do jornalismo e como notícia. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um "trabalhador incansável do jornalismo". Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito. 

ConJur — Luiz Gama, enquanto personagem, teve uma vida muito particular. Isso acabou por esconder sua obra? 
Ligia Fonseca Ferreira —
  Luiz Gama teve uma vida fabulosa. Ele foi escravizado, mas se tornou letrado, poeta, advogado e jornalista. Foi um abolicionista grandioso. Quase nunca perdia suas causas. Teve uma voz muito atuante e foi ouvido. Ele é filho da "africana livre" Luiza Mahin, hoje um ícone do feminismo negro no Brasil. Foi vendido pelo próprio pai, mas conseguiu libertar-se e, mais do que isso, ter as "provas" judiciais, seguramente, de ter nascido livre. Isso tudo é grandioso. 

No entanto, não devemos nos fascinar pela biografia de Luiz Gama a ponto de esquecermos a sua obra, o que ele escreveu, como, com que intenção. O Luiz Gama era sobretudo um advogado, se anunciava na imprensa. Em paralelo, o ativismo abolicionista e republicano se dá nas páginas dos jornais, o que colaborou para que se tornasse uma figura popularíssima na capital paulista. 

O que as pessoas sabem, por exemplo, sobre a vida do Machado de Assis? Ele teve filhos, teve esposa? Quem eram seus pais? Não se sabe muito sobre ele. O que a gente conhece do Machado de Assis é a sua obra.

No caso do Luiz Gama é o inverso. Todo mundo diz que a vida dele daria um filme, uma minissérie. E daria, até levando em conta todos esses fatos incríveis que mencionamos, da mãe africana que participou de insurreições de escravizados em Salvador, foi presa, possivelmente deportada; do pai, um homem branco que o vendeu, e também teria participado da Sabinada, revolta importante na Bahia em 1837. Sabemos que  Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra do Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa.

Luiz Gama tinha um projeto de vida, de cunho humanista, voltado para a defesa do direito dos escravizados e pelas liberdades democráticas. O título do livro foi retirado de um de seus artigos e bem resume sua dedicação à causa dos escravizados e a obsessão por uma justiça que atuasse de forma idônea: "Se algum dia [...] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a 'resistência', que é uma virtude cívica."

Prêmios, homenagens nos aniversários de nascimento e de morte, medalhas com seu nome são importantes, mas apenas reforçam a necessidade de ser lido e estudado por profissionais e estudantes de direito, de letras, de história, de jornalismo. 

ConJur — Antes de seus livros, quase todo o pensamento de Luiz Gama estava em jornais. Isso explica o desconhecimento a respeito da obra?
Ligia Fonseca Ferreira —
 Talvez a dificuldade para se ter acesso aos jornais explique um pouco esse desconhecimento. Mas também não houve muita preocupação em se resolver isso.

ConJur - A senhora organizou, em 2011, um outro livro, o Com a palavra Luiz Gama, uma antologia contendo, entre outros, cerca de 19 artigos jornalísticos inéditos. Agora, com Lições da resistência, são mais de 40 artigos inéditos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de outros tantos pouco conhecidos. Como foi o trabalho para encontrar esse material?
Ligia Fonseca Ferreira — Boa parte da consulta foi feita na hemeroteca [acervo de periódicos] digital da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Esse material só ficou disponível em 2012. Antes disso, para o livro de 2011, eu buscava documentos em arquivos físicos, o que gerava um problema: às vezes você encontra o jornal, outras não, as coleções nem sempre eram completas. Às vezes o jornal está lá, mas ele não pode ser manipulado. Isso aconteceu, por exemplo, com a Gazeta do Povo, jornal que publicou muitos textos de Luiz Gama. Uma coisa que eu não tinha visualizado inicialmente era que grande parte do que saía na Gazeta do Povo, a partir de 1880, era posteriormente publicado na Gazeta da Tarde, importante folha abolicionista do Rio de Janeiro. Foi, portanto, mais fácil agora localizar os textos publicados no Rio com a busca na hemeroteca da Biblioteca Nacional. 

Mas, saindo um pouco da pergunta, descobri algo interessante. Havia anúncios frequentes do Luiz Gama advogado, oferecendo seus préstimos, dando o endereço de sua banca. Ele anunciava os seus serviços na Gazeta do Povo, em geral na primeira página e na primeira coluna, onde também anunciavam outros advogados. Então, é curioso observar que sua presença — como colaborador, como notícia, e também como anunciante — era constante nas páginas de diversos órgãos da imprensa.

domingo, 26 de julho de 2020

Arnaldo Godoy "liquida" o Conselheiro, na sua segunda postagem sobre Canudos

EMBARGOS CULTURAIS

Euclides da Cunha e a Troia de taipa dos jagunços


Em 1883 um pensador alemão dissertou sobre as diferenças nos métodos utilizados nas ciências naturais e nas ciências do espírito. Para esse pensador, William Dilthey (1833-1911), as ciências naturais são causais, centradas nas categorias dos antecedentes, enquanto que a história, que é uma ciência do espírito, seria compreensiva, focada na apreensão dos vários significados da ação humana. Euclides da Cunha, de algum modo, desafiou essa linha divisória. Era sobretudo um cético. Mas era também um cientista que escrevia com arte. E era um artista que escrevia com base na ciência ou, melhor, no que reputava científico.
Em carta a José Veríssimo, datada de 1902, Euclides defendia-se de uma crítica feita aos Sertões, observando que “o escritor do futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências”. Euclides agregou à formação de engenheiro uma densa formação literária. Formalmente, segundo o sempre lembrado Roberto Ventura, Euclides estudou álgebra, geometria analítica, cálculo diferencial e integral, física experimental, química, desenho topográfico, tática, estratégia, história militar, fortificações, noções de balística, direito militar, desenho e análise da Constituição do Império. Não se pode exagerar a aderência de Euclides aos esquisitos do positivismo1. Euclides, em carta ao pai, criticou Benjamin Constant, um dos grandes nomes do positivismo entre nós, a quem então reputou como seu “antigo ídolo”. A carta é de 14 de junho de 1890. Euclides distanciou-se do positivismo que conheceu no Exército.
A leitura dos vários textos de Euclides (“Os Sertões”, “À margem a História”, “Contrastes e Confrontos”) revela a inexistência de fronteiras epistemológicas nesse importante autor nacional. Euclides pretendia-se múltiplo, transdisciplinar. Era criminólogo, sociólogo, antropólogo, historiador, historiador militar, botânico, jornalista, geólogo, a par, naturalmente, de estilista incomparável. Segundo Walnice Nogueira Galvão, na minha opinião a mais abalizada intérprete de Euclides da Cunha, o escritor sabia “quase tudo pela rama, coisas que tinha aprendido nos bancos escolares da Escola Militar e que costumava citar de ouvido, deturpando-as”. Essa a razão pela qual há muita informação inconsistente nas seções mais científicas desse grande livro.
Uma tentativa de estação em alguns desses atributos de Euclides é o tema da presente intervenção. É preciso estudar os autores brasileiros. Comecemos com o criminólogo. Canudos, escreveu Euclides, “era o homizio de famigerados facínoras”. A lei era o arbítrio do chefe, Antonio Conselheiro. A justiça era o conjunto de suas “decisões irrevogáveis”. Na cadeia, que os sertanejos chamavam de “poeira”, “viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas”. O homicídio, naquele interior que assustou Euclides, o delito religioso (falta às rezas) era objeto de maior reprimenda do delito maior, em todas as culturas, isto é, o homicídio: uma constatação criminológica vazada sob a forma de ironia.
De acordo com o narrador dos Sertões a justiça no reduto do conselheiro era “inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados”. Buscava-se a punição de uma certa delinquência, especialíssima, pelo que em Canudos ocorria “uma inversão completa do conceito de crime”. Proibia-se o alcoolismo, que o preciosismo semântico de Euclides denominava de “dipsomania”. As penas para quem usasse da aguardente eram severas: “ai daquele que rompesse o interdito imposto”.
Euclides era também um sociólogo, provocação de Antonio Candido, em conferência na semana euclidiana, já no distante ano de 1947. Segundo Antonio Candido, “para Euclides, a população sertaneja é um bloco étnico e cultural; uma sociedade insulada em cujo corpo não se processou a divisão intensa do trabalho social, diferenciador e enriquecedor”. Euclides pormenorizou a organização de Canudos, “o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito”. Era a “urbs monstruosa, de barro”, a “civitas sinistra do erro”, um povoado novo, que em algumas semanas já era um lugar velho, um punhado de ruínas.
Na descrição de Euclides em Canudos não se distinguiam as ruas. Havia becos estreitíssimos, “mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso”. Descreveu um desconforto permanente, uma pobreza repugnante, “traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça”. Adiantando-se na apresentação de um tipo próximo ao Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, Euclides tratava de “cômodos exíguos” nos quais havia “trastes raros e grosseiros: um bando tosco, dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes (...) era toda a mobília”.
Euclides apresentava uma população que “jugulada pelo seu prestígio” contava com “todas as condições de estádio social inferior”. Era o mundo de um sertanejo simples que “transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto”. Não havia apego à propriedade, vingando uma “forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos; apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas”.
Euclides também se revela um antropólogo. É o que lemos na descrição pormenorizada que fez de Antonio Conselheiro, na segunda parte de seu livro sobre a campanha de Canudos. O Conselheiro, segundo Euclides, somente poderia ser entendido no contexto psicológico da sociedade que o criou. Era um psicótico, perdido na turba dos neuróticos vulgares. Para Euclides, o Conselheiro não apresentava necessariamente uma moléstia grave, era o aspecto de um mal social gravíssimo. Em excerto de efeito, observava que o Conselheiro foi para a história do mesmo modo que poderia ter ido para um hospício.
O Conselheiro representava um misticismo feroz e extravagante, calcado em crenças ingênuas, em um fetichismo bárbaro, em aberrações de católicos fanáticos, em “tendências compulsivas de raças inferiores”, bem como na indisciplina geral da vida sertaneja. Para Euclides, “a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida em sociedade”. O autor dos Sertões acreditava que o Conselheiro era documento vivo de atavismo; era “uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie”. Entendia que o Conselheiro receberia diferentes análises de um médico e de um antropólogo: para o médico seria um caso de delírio sistematizado, para o antropólogo um “fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização”. O Conselheiro, segundo Euclides, entendia-se como protagonista-delegado de uma vontade dos céus, com função de apontar os pecados e prescrever o caminho para a salvação.
O Conselheiro, prossegue Euclides, significava-se em uma zona indefinida. Estava no limbo que separa facínoras de heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, gênios e degenerados. O Conselheiro fora traído pela esposa, circunstância peculiar que o ligava a Euclides, como se sabe da tragédia que levou o escritor à morte prematura. A mulher do Conselheiro havia fugido com um policial, que supostamente a raptara. A mulher de Euclides, Ana, apaixonara-se por um jovem militar, Dilermando de Assis. Comentarei o caso em intervenção próxima futura, sob um prisma jurídico, e não passional. Não me sinto autorizado a perscrutar a intimidade sentimental das pessoas, vivas ou mortas. E nem tenho interesse.
Euclides descreve a trajetória do Conselheiro, sua origem no ambiente de famílias inimigas (Macieis e Araújos), um mundo de tocaias, emboscadas, vingança, amor e ódio. A descrição do Conselheiro é a que toca nosso imaginário nacional: “cabelos crescidos até os ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos”. Era um homem estranho, que andou muito tempo sem rumo certo. Euclides conta que o Conselheiro era indiferente à vida e aos perigos, alimentava-se “mal e ocasionalmente, “dormindo ao relento e à beira dos caminhos, numa penitência desnuda e rude”. Vivia de esmolas, mas não aceitava excessos. Um homem sofrido, que “anestesiara-se com a própria dor”. Carregava a indiferença superior de um estoico.
Euclides mostrou-se também como um constitucionalista. Analisou a relação dos canudenses com a República, no contexto do tema então espinhoso do casamento civil. A Constituição de 1891 era uma transposição de algum modo descarada dos arranjos institucionais norte-americanos, e que sabemos hoje predicada na influência de Rui Barbosa. Adiantou-se na teoria da transposição, de grande prestígio nos estudos de direito constitucional comparado.
Em “À margem da história”, ao comentar em excurso histórico a Constituição de 1824, Euclides observou que “uma constituição, sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumuladas no revolver das ideias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro garantido pela energia conservadora do passado”. O legislador constitucional de 1824, segundo Euclides, elaborava um trabalho todo subjetivo, um “capricho de minoria erudita discorrendo dedutivamente sobre alguns preceitos abstratos, alheia ao modo de ser da maioria”. Tratava-se de um “projeto constitucional, quase abortício ou temporão, precipitado nas votações atropeladas, ou tangidas pelos ultrarradicais”. O projeto não avançou. Sabemos que D. Pedro I interveio e que da intervenção resultou o texto constitucional de 1824. Trata-se de um bem concebido texto político, para os limites conceituais da época, sobressaindo-se a possibilidade de alteração constitucional por legislação ordinária, se o objeto da reforma não fosse matéria substancialmente constitucional. Já se dividia empiricamente o texto constitucional temas formais e materiais.
Euclides, talvez mais do que tudo, foi também um historiador militar, como assinalado, entre outros, por Umberto Peregrino2. As descrições das batalhas são precisas (acredita-se) e isentas de qualquer forma de sectarismo. No entanto, ao fim da empreitada, percebe-se a revolta de Euclides para com o massacre que se desatava. O fecho dos Sertões é antológico: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.
Euclides era um cético. Com o socorro de Sérgio Milliet posso me lembrar, a propósito de Euclides, que o ceticismo não exclui a paixão, que a dúvida não quer dizer incapacidade de amar, porque quanto maior o amor, maior pode ser a dúvida. O ceticismo, especialmente em Euclides, era um método de trabalho, muito mais do que uma filosofia. É o que percebo no estudo descritivo e compreensivo da Troia de taipa dos jagunços.

1 Devo essa expressão “esquisitos do positivismo”, bem como o alerta da posição de Euclides em relação aos positivistas a Bruno de Cerqueira, historiador, filólogo, etimólogo e antropólogo que vive em Brasília, atualmente trabalhando na Funai. Bruno é autor de várias obras que tratam da monarquia no Brasil, um dos campos de sua vasta erudição.
2 Devo essa percepção a Roberto Rosas, cultíssimo advogado militante em Brasília, que foi Ministro do TSE, historiador do direito, e que gentilmente me encaminhou textos raríssimos sobre Euclides da Cunha, com especial referência ao próprio Umberto Peregrino e a estudos sobre a passagem de Euclides no Itamaraty, redigido por Renato Almeida.
Topo da página
 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2020, 8h00