Perdoados
Otávio Cabral
Veja, 2/06/2013
Para atender a potenciais financiadores de campanha, o governo brasileiro perdoa dívida de países chefiados por nababos que enriqueceram à custa do povo
Na comemoração dos cinquenta anos da fundação da União Africana, realizada na semana passada na Etiópia, a presidente Dilma Rousseff deu aos anfitriões um presentão de 840 milhões de dólares. O valor equivale ao total da dívida que doze países do continente haviam contraído com o Brasil e que a partir de agora não terão mais de se preocupar em pagar. O governo brasileiro os perdoou. Na foto oficial do evento, em que os chefes das nações beneficiadas aparecem sorridentes ao lado da brasileira, estão Teodoro Obiang e Omar al-Bashir. O primeiro é o mais longevo ditador africano. Sua biografia inclui o assassinato de inimigos, entre eles um tio. Ao longo dos 34 anos em que comanda com mão de ferro a miserável Guiné Equatorial, acumulou uma fortuna que inclui uma frota de 32 carros de luxo, entre eles sete Ferrari, cinco Bentley, quatro Rolls-Royce, dois Maserati, dois Lamborghini, dois Maybach, dois Mercedes, dois Porsche, um Aston Martin e um Bugatti. Jamais, porém, seu governo pagou os 12 milhões de dólares que deve ao Brasil. Seu colega Omar al-Bashir — 24 anos de poder, dois mandados internacionais de prisão e 9 bilhões de dólares em paraísos fiscais, segundo um promotor do Tribunal Penal Internacional — acaba de ter perdoada a dívida de 43 milhões de dólares que seu país tinha para com o Brasil. Habituados a enriquecer à custa de suas populações, Obiang e Al-Bashir agora darão prejuízo também ao contribuinte brasileiro.
Foi o pragmatismo eleitoral, mais do que a solidariedade aos povos sofredores, que orientou a decisão da presidente Dilma de perdoar a dívida dos países africanos. A questão é que empreiteiras, mineradoras e produtoras agrícolas brasileiras querem atuar nesses países com financiamento do BNDES (o órgão acaba de aprovar a criação de um escritório de representação na África do Sul). Ocorre que a legislação nacional impede a concessão de benefícios a nações com dívidas atrasadas junto ao Brasil. Ao abrir mão da cobrança dos débitos, medida que ainda precisa ser aprovada pelo Senado, o governo pretende remover essa barreira — e deixar o caminho livre para as empresas amigas.
A empreiteira Camargo Corrêa foi convidada por Obiang a construir uma rede de estradas ligando o litoral ao centro da Guiné Equatorial, obra orçada em 2 bilhões de dólares. Empresas agrícolas como a Amaggi, do senador Blairo Maggi (PR-MT), foram chamadas por Al-Bashir para plantar soja no Sudão, que tem relevo e clima semelhantes aos do cerrado brasileiro. A Camargo Corrêa foi a segunda maior financiadora da campanha de Dilma em 2010, com 7,6 milhões de reais. Entre as empresas de soja, só a Amaggi pingou no cofre da campanha 620 000 reais. A presidente conta com a continuação dessa generosidade no ano que vem, quando disputará a reeleição. A expectativa se justifica pelo tamanho do favor prestado. "O perdão da dívida atendeu a um pedido dos financiadores de campanha", confirma um assessor da presidente. "Como troco, a medida dá prestígio político e diplomático ao Brasil na região." Países africanos estão entre os principais eleitores de candidatos brasileiros que chegaram ao comando de organismos internacionais, como José Graziano na FAO (agência de alimentação da ONU)l e Roberto Azevêdo na Organização Mundial do Comércio.
As dívidas perdoadas foram constituídas nos anos 1970 e 1980, quando diversos países africanos deixaram de honrar negócios com estatais e empresas privadas brasileiras. As transações eram garantidas pelo Instituto de Resseguros Brasil, que foi extinto. Os valores, então, passaram a ser devidos ao Tesouro Nacional. O Brasil, alegando ter pouca chance de receber aquilo a que tinha direito, aderiu há dois anos a um projeto da ONU, FMI e Banco Mundial destinado a beneficiar países insolventes. "O valor do qual o Brasil abriu mão não é alto, mas o gesto manterá aberto todo o mercado africano, onde a balança comercial pende para nós", defende o ex-embaixador do Brasil em Washington Roberto Abdenur.
Se são bons para o governo, o PT e seus financiadores de campanha, negócios como esses já se revelaram péssimos para os contribuintes brasileiros. Em 1981, a empreiteira Mendes Júnior foi contratada pelo governo do Iraque para construir uma estrada de seis pistas e 128 quilômetros, por 333 milhões de dólares. Assim como faz agora na África, o governo brasileiro foi o fiador do negócio para manter abertos o mercado iraquiano e o acesso a seu petróleo — o Banco do Brasil abriu linhas de crédito de 209 milhões de dólares à Mendes Júnior. Com o início da guerra entre Irã e Iraque, a inflação no país disparou, os custos com logística aumentaram e a empreiteira tomou um calote do governo que foi de Saddam Hussein. Para receber o dinheiro, acionou, claro, o governo brasileiro. O processo se arrasta há anos e já está avaliado em mais de 10 bilhões de reais.
A aproximação do Brasil com os países africanos foi iniciada no governo Lula com o objetivo de melhorar a balança comercial e aumentar a relevância do país no exterior. Para Lula, o totalitarismo de governantes nunca foi um problema — o ex-presidente chegou a dizer que queria aprender com o ditador do Gabão "como ficar 37 anos no poder". Até a semana passada, a estratégia tinha produzido mais ganhos para o governo e o PT do que para o país. Agora, o rol dos beneficiados inclui também alguns tiranos. A frota de Obiang em breve deverá crescer. (com reportagem de Julia Carvalho e Adriano Ceolin)