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sábado, 28 de novembro de 2020

Friedrich Engels, o general e o verdadeiro criador da economia marxista - Ruan de Souza Gabriel (O Globo)

Por que Friedrich Engels, que faria 200 anos neste sábado, não era um mero coadjuvante de Karl Marx

Especialistas lembram como a modéstia do pensador alemão, responsável pela divulgação e formulação da teoria marxista, cristalizou essa impressão e ofuscou um teórico de primeira linha

 Ruan de Souza Gabriel

O Globo, 28/11/2020

https://oglobo.globo.com/cultura/por-que-friedrich-engels-que-faria-200-anos-neste-sabado-nao-era-um-mero-coadjuvante-de-karl-marx-24769966

 

Numa carta a um camarada do Partido Social - Democrata alemão, remetida em 1884, um ano após a morte de Karl Marx, Friedrich Engels comentou sua prolífica colaboração com o autor de "O capital" e referiu a si próprio como "o segundo violino". Em outra carta, escreveu: "Marx era um gênio; nós, no máximo, tínhamos talento".

 

A modéstia de Engels contribuiu para cristalizar sua imagem como a de um mero ajudante que pagava as contas enquanto seu amigo se empanturrava de dialética. Tal imagem, contudo, cai por terra sob uma análise mais robusta. Engels, cujo bicentenário de nascimento é comemorado neste sábado (28) — a data está sendo lembrada com lançamentos de obras importantes dele e sobre ele —, era um revolucionário dedicado e um teórico de primeira linha, que ainda anima estudiosos do marxismo, do feminismo e da ecologia

 

Quando publicou o livro "Engels, o segundo violino", em 1995, o historiador Osvaldo Coggiola, professor da Universidade de São Paulo (USP), quase optou por outro título para afastar a ideia de que ele fosse só um coadjuvante: seria "Engels, o General". O interesse de Engels por estratégia militar lhe rendeu esse apelido na casa de Marx. 

 

Autor de uma elogiada biografia de Engels, publicada em dois tomos (1920 e 1934), e cuja edição condensada a Boitempo lança agora no Brasil, o alemão Gustav Mayer especulou que as metáforas militares às quais Marx recorria em seus textos eram influência do "General". No ano que vem, a editora publica os textos da dupla sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865).

 

Segundo Coggiola, Engels "tinha ideias próprias e às vezes se adiantava a Marx". Em 1844, ele já escrevia sobre economia política enquanto o outro ainda fazia a crítica da filosofia .

 

— Engels era um teórico com todas as letras. É errado imaginar Marx e Engels como uma dupla caipira, na qual Marx é o Zezé Di Camargo, com a voz afinada, e Engels é o Luciano tocando a viola, ou melhor, violino — compara Coggiola.

 

Nascido numa família de industriais alemães, Engels frequentou a universidade esporadicamente, mas era um autodidata competente. Trabalhou na fábrica da família em Manchester, na Inglaterra, até amealhar fortuna suficiente para sustentar a si próprio e a Marx e ainda contribuir para as lutas operárias. Conhecia de perto o proletariado e, em 1845, três anos antes do "Manifesto comunista", escreveu "A situação da classe trabalhadora na Inglaterra". 

 

Depois da morte de seu camarada, editou o segundo e o terceiro volumes do "Capital". Em dezembro, a Expressão Popular lança "Cartas sobre 'O capital'", reunião da correspondência dos dois amigos entre si e também com outros revolucionários acerca da obra-prima do materialismo dialético.

 

Segundo Ricardo Musse, do departamento de Sociologia da USP, Engels não apenas contribuiu com a elaboração da teoria marxista (na década de 1840, ele e Marx escreveram textos incontornáveis a quatro mãos), mas também para convertê-la na política adotada pelos partidos operários, que, à época, dividiam-se em seguidores da dupla alemã, dos anarquistas e de outras correntes socialistas.

 

— Engels é um formulador da teoria e da prática marxista — diz Musse. — Além de divulgar o marxismo, escreveu textos importantes, como sua "Introdução" a "As lutas de classe na França de 1848 a 1850", de Marx, que influenciou as principais vertentes políticas marxistas do século XX: a teoria da revolução de Lênin, a teoria da hegemonia de Gramsci e a social-democracia.

 

Feminismo e ecologia

Para a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, Engels não era nenhum "segundo violino", apenas "modesto". E sempre atual.

 

— Engels foi fundamental para nós, feministas dos anos 70. Em "A origem da família, da propriedade privada e do Estado", de 1884, ele liga a opressão da mulher à propriedade privada — explica Maria Lygia. — No século XIX, a moda era o pensamento abstrato, e os textos dele têm um trato com dados da realidade, que a contemporaneidade aprecia. Ele também trata com lucidez da ecologia.

 

Os estudos de Engels sobre as ciências naturais, realizados entre 1873 e 1886, só foram publicados em 1925, como "Dialética da natureza", recém-lançada pela Boitempo. Segundo a pesquisadora Laura Luedy, da Unicamp, Engels ambicionava organizar as descobertas empíricas numa teoria e desbancar a pretensão de "isenção" da ciência .

 

— Engels apontou as consequências nefastas da dominação da natureza com vistas à acumulação continuada de capital, e defendia que o conhecimento das leis da natureza deveria ser aliado a uma revolução do modo de produção e da ordem social — observa Laura. 

 

— Nos anos 80, a centralidade da ecologia no projeto marxista foi reconhecida, sobretudo, pela escola da ruptura metabólica" e a "ecologia-mundo", que recuperam as teses de Engels sobre dialética e ordem natural.

 

O texto "O papel do trabalho na hominização do macaco", incluído na "Dialética", no qual Engels junta o marxismo e a Teoria da Evolução de Charles Darwin, é um exemplo de que ainda soa bem a música do "segundo violino". "Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias humanas sobre a natureza", alertava Engels. "Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo".

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Lançamentos:


"Friedrich Engels: uma biografia"

Autor: Gustav Mayer. Tradução: Pedro Davoglio. Editora: Boitempo. Páginas: 336. Preço: R$ 67.


"Dialética da natureza"

Autor: Friedrich Engels. Tradução: Nélio Schneider. Editora: Boitempo. Páginas: 400. Preço: R$ 83.


"Cartas sobre 'O capital'"

Autores: Karl Marx e Friedrich Engels. Tradução: Leila Escorsim. Editora: Expressão Popular. Páginas: 384. Preço: R$ 45.

 

sábado, 23 de maio de 2020

Elogio da Exploração (1990) - Paulo Roberto de Almeida

Trinta anos depois que escrevi esse texto provocador – que depois foi incorporado a meu livro de quase uma década após; in: Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999) – alguém me lembrou dele, no Academia.edu. Vou transcrever novamente, na forma em que foi originalmente escrito.
Paulo Roberto de Almeida


ELOGIO DA EXPLORAÇÃO

Paulo Roberto de Almeida

Cinco séculos depois de Erasmo ter ousado proceder a um elogio da loucura (Encomium moriae) e cem anos após Paul Lafargue ter defendido o direito à preguiça (Le Droit à la Paresse), não deveria haver nada de muito surpreendente no fato de se pretender encontrar aspectos positivos na Exploração. Antes de ser mal interpretado, esclareço que estou referindo-me efetivamente à velha e abominável “exploração do homem pelo homem”.
Se existe algum elemento de verdade no conhecido apotegma, segundo o qual “existe apenas uma coisa pior do que ser explorado, que é a de não ser explorado”, a exploração deveria ter lugar assegurado no panteão das realizações humanas. Com efeito, ela se apresenta como um dos elementos de organização social de maior força agregadora e de maior vitalidade institucional. No entanto, a legitimidade da exploração sempre foi expurgada da memória social, constituindo-se numa espécie de mito fundador rejeitado universalmente pelo inconsciente coletivo. Apesar disso, ela parece ser estruturalmente necessária enquanto sustentáculo da vida social, surgindo historicamente como um verdadeiro requisito de civilização e como um componente indispensável de toda e qualquer sociedade dinâmica. 
Ao lado da Dominação, a Exploração é uma das forças mais poderosas que motivam o progresso social e o avanço material das civilizações, ao organizar a sociedade para o crescimento do produto em bases mais racionais e ao permitir, contraditoriamente, o surgimento de condições sociais favoráveis ao estabelecimento de uma maior igualdade de chances no conjunto da sociedade. 
Mas, antes de que se tome este exercício de crítica intelectual como uma mera provocação — o que ele, de certo modo, o é, efetivamente — devo esclarecer que pretendo tão somente oferecer algumas notas sobre os condicionantes históricos do desenvolvimento social como forma de sustentar um novo tipo de discurso sobre essa relação social tão execrada e no entanto tão generalizada, a ponto de ser verdadeiramente universal nas sociedades complexas. 
Mais do que um simples elogio, a Exploração requer explicação e compreensão, ou aquilo que em termos metodológicos weberianos se chamaria de Verstehen. Minha intenção é, sucintamente, de proceder ao alinhamento de uma série de proposições relativamente diretas — mas de cunho geralmente abstrato — e pedir a meus leitores que tentem encontrar contra-proposições historicamente credíveis e empiricamente sustentáveis. 
É evidente que os partidários da vulgata unilinear marxista sobre a sucessão dos “modos de produção” poderão desde logo argumentar com exemplos retirados da chamadas “sociedades primitivas”. A estes devo, no entanto, advertir que estou referindo-me a sociedades históricas, isto é, dotadas da mola do Progresso e aptas a retirar da atividade produtiva um excedente para investimento futuro e incremento das oportunidades de consumo. Apesar de que este modesto ensaio possa ser também considerado como um exercício de antropologia cultural, ele não pretende circunscrever seus argumentos a um determinado tipo de formação social, mas sim generalizá-los em função da categoria mais comum de sociedade histórica, que é aquela dividida em classes (incluídas neste conceito igualmente as que algum dia tiveram a pretensão de se considerar “socialistas”).
Sem pretender oferecer aqui a teoria e a prática da Exploração, as proposições de caráter abstrato que faço — procurando aproximar-me das categorias universais que Weber chamaria de Ideal-typus — são as seguintes:

1) Todas as sociedades organizam-se estruturalmente segundo uma relação mais ou menos estreita com o seu meio ambiente, mas é nas chamadas sociedades primitivas que a “ditadura da natureza” é mais marcada. Nas sociedades relativamente complexas, isto é, dotadas de meios técnicos suscetíveis de transformar o meio ambiente, a emancipação do Homem vis-à-vis a Natureza acarreta igualmente uma divisão sexual e social do trabalho, base ulterior da divisão da sociedade em classes. 
2) Todas as sociedades históricas são, ou foram, sociedades divididas em classes sociais, ou seja, sociedades organizadas com base em relações de dominação política e de exploração do trabalho produtivo. Não há exemplos, na antropologia ou na história comparadas, de sociedades históricas que não tenham sido, ao mesmo tempo, sociedades desiguais: nessas sociedades, uma determinada categoria de pessoas detém a capacidade de comandar outras pessoas (de fato, a maioria) e delas extrair recursos excedentes em termos de produção econômica.
3) A apropriação de excedentes econômicos produzidos pelas classes trabalhadoras (exploração), e a imposição de uma forma qualquer de comando autoritário sobre o conjunto da população (dominação), parecem obedecer a uma mesma lógica social: a monopolização, por parte de uma categoria de pessoas, de determinados bens raros, nesse caso representados pela Propriedade e pelo Poder. O conceito econômico de “raridade” — ou “escassez relativa” — parece apropriado para caracterizar tanto essa concentração do excedente disponível na esfera econômica como a monopolização do poder político em mãos de uma elite social.
4) A concentração e a centralização desses bens raros nas mãos de uma elite dominante são normalmente legitimadas por algum tipo de racionalização, já que aqueles processos não podem ser mantidos unicamente através do emprego constante (ou da ameaça de uso) da violência institucionalizada. Uma “ideologia da dominação” — que é, ao mesmo tempo, uma justificativa da exploração — tende assim a acompanhar todas as situações de desigualdade estrutural.
5) Nas sociedades de classe modernas e contemporâneas, a exploração assume principalmente a forma do desenvolvimento econômico, cuja característica essencial é a capacidade da sociedade de produzir inovações tecnológicas. Nas civilizações materiais organizadas com base na propriedade privada e no livre comércio (mercado), o desenvolvimento contínuo das forças produtivas deu origem a um verdadeiro “modo de produção inventivo”, transformando o progresso tecnológico em rationale da vida econômica e social.
6) A exploração nem sempre pode ser qualitativamente aferível: em todo caso sua percepção é, mais bem, de ordem subjetiva. Tampouco ela parece ser quantitativamente mensurável, embora exercícios marxianos tenham tentado medir tal indicador através da “taxa de mais valia”. Todas as avaliações estimativas no sentido de traduzir esse conceito na prática econômica corrente se viram, no entanto, frustrados por sérias dificuldades metodológicas e por barreiras empíricas não menos importantes.
 7) O sucesso relativo de uma nova forma de organização social da produção material significa, concretamente, uma maior disponibilidade de bens e serviços anteriormente raros ou de alto custo unitário; ele se traduz, igualmente, numa maior capacidade em exercer um controle ampliado sobre o meio ambiente societal. O modo de produção é tanto mais inventivo quanto ele conseguir transformar um maior número de bens raros em produtos e serviços de consumo corrente: sua funcionalidade social, em termos históricos, está precisamente nessa capacidade em atribuir um valor de troca a uma gama relativamente ampla de necessidades humanas.
8) Ao disseminar mercadorias e transformar ecossistemas, o progresso tecnológico cria desigualdades econômicas e sociais suplementares àquelas ordinariamente existentes, mas que são em grande parte o resultado de uma maior divisão social do trabalho e de uma crescente especialização de funções produtivas. A transformação criativa que deriva do modo de produção inventivo gera, igualmente, desequilíbrios sociais e regionais, que se traduzem não apenas em termos de obsolescência de meios de produção e de subutilização de recursos humanos, mas também na marginalização de regiões inteiras e sua subordinação econômica a centros mais desenvolvidos. Enquanto novos espaços sociais são incorporados aos circuitos da exploração, outros deixam de ser funcionalmente rentáveis na cadeia de expropriação de excedentes, ou seja, sua exploração já não é mais compatível com os custos marginais.
9) As relações desiguais de apropriação de bens raros não ocorrem apenas num âmbito puramente interclassista ou intra-societal, mas prevalecem igualmente num nível inter-societal, confrontando formações nacionais desigualmente dotadas em recursos e diversamente inseridas num mesmo sistema global. A exploração e a dominação não têm, assim, um caráter nacional exclusivo, mas a aplicação desses dois princípios a nível transnacional confunde-se, em muitos casos, com as relações desiguais que prevalecem internamente entre classes sociais.
10) A racionalização conceitual do desenvolvimento histórico e social, ao coincidir no tempo com a formação e o fortalecimento dos Estados-nacionais (séculos XVI-XVIII), impôs, a estes últimos, encargos e responsabilidades muito precisas em relação ao desenvolvimento concreto de suas sociedades respectivas. O estado do Progresso passou a exigir, cada vez mais, o progresso do Estado, tendência apenas minimizada nas formações sociais que atravessaram um processo relativamente completo de Nation making antes de ingressarem numa fase de State building.
11) Na época do Iluminismo, foram criadas legitimações doutrinárias e filosóficas à prática da exploração. Essas formulações ideológicas consubstanciaram-se, posteriormente, no pensamento liberal clássico, de que são exemplos, no plano econômico, os conceitos de “equilíbrio dos mercados”, da “mão invisível”, de “vantagens comparativas” ou de “laissez-faire”. A força doutrinária do pensamento liberal contaminou também as elites dominantes dos próprios países submetidos a alguma forma de exploração e de dominação, a tal ponto que a expropriação direta de recursos (espoliação colonial) ou a apropriação indireta de trabalho materializado (intercâmbio desigual) puderam ser justificadas pela sua funcionalidade em relação ao princípio do desenvolvimento material das sociedades envolvidas. Mas, mesmo um igualitarista radical como Marx viu na instituição colonial, ou seja, na incorporação de novas áreas à exploração capitalista, um grande fator de desenvolvimento material em sociedades mais atrasadas.
12) O debate contemporâneo sobre as origens do atraso de sociedades outrora colonizadas tendeu a ver na exploração e na dominação dessas sociedades uma das molas propulsoras do desenvolvimento nas formações dominantes e, inversamente, naqueles dois fenômenos os principais fatores de subdesenvolvimento nas primeiras. Em que pese a contribuição adicional desses fatores, ao lado da exportação de excedentes demográficos, para o avanço material das sociedades mais poderosas, as alavancas mais significativas no processo de desenvolvimento econômico e social dessas sociedades foram, e são, de ordem propriamente interna. Essas alavancas, que constituem condições prévias ao desenvolvimento sustentado, derivam de um conjunto de relações sociais condizentes com o modo inventivo de produção e situam-se, por assim dizer, na própria raiz da organização social da produção nessas sociedades. Inovação tecnológica e poder econômico constituem requisitos necessários ao - e não efeitos do - exercício da vontade imperial. 
13) A espoliação colonial e a dominação mundial não podem ser implementadas sem a capacitação intrínseca do pretendente, o que significa a existência de uma estrutura social e de recursos materiais e humanos compatíveis com a voluntas dominadora. Embora uma das fontes de “acumulação primitiva” possa ser constituída pela exploração de sociedades dominadas, esta não é nem o mais importante fator de avanço material das sociedades centrais, nem o requisito suficiente para o desenvolvimento contínuo destas últimas. A chamada “aventura colonial” foi antes uma busca de prestígio político do que um empreendimento econômico, envolvendo, na maior parte dos casos, custos superiores aos benefícios incorridos. 
14) A única forma de subtrair-se à exploração e à dominação de outrem, tanto no plano nacional como no das relações inter-societais, parece assim situar-se na auto-capacitação tecnológica e humana, o que vale dizer, dotar-se de seu próprio modo inventivo de produção, base material e fonte primária de poder econômico e político. A soberania, seja a individual ou a coletiva, deriva da faculdade de organizar a exploração e a dominação em bases propriamente autônomas, ou seja, criar o seu próprio fulcro de poder social. Em outros termos, a internalização dos efeitos sociais e econômicos da exploração e da dominação só pode ser obtida por meio da conversão de uma formação social em centro de seu próprio sistema nacional, dotando esta última de sua respectiva periferia.
15) As sociedades que conheceram rupturas violentas da ordem política, durante seu processo de modernização econômica e social, eram, via de regra, as menos desenvolvidas materialmente em relação a seu entorno geográfico, em suma, sociedades onde a exploração menos tinha feito progressos. Em termos históricos concretos, é a insuficiência de desenvolvimento capitalista, e não uma pretendida “super-exploração capitalista”, que abre as portas a revoluções burguesas e anti-burguesas. Isto é válido tanto para as revoluções burguesas “clássicas”, de que a francesa constitui o paradigma par excellence, como para as revoluções sociais na Rússia, na China e, mais perto de nós, no México.
16) As tentativas de superar a “democracia formal”, de caráter burguês, e de eliminar radicalmente a exploração de tipo capitalista, substituindo-as pela “democracia real” e pelo igualitarismo social, não conseguiram, nem mesmo no caso das experiências de cunho auto-gestionário, sequer arranhar o sólido edifício da exploração, logrando apenas destruir toda e qualquer possibilidade de governo democrático, sem adjetivos. Como diz a conhecida anedota, se o capitalismo é um sistema de exploração do homem pelo homem, sob o socialismo ocorre exatamente o inverso.
17) Da mesma forma, não se conseguiu até agora conceber, colocar em prática e fazer funcionar, efetivamente, qualquer sistema de organização social da produção que combinasse eficiência produtiva e equidade social, eliminando, total ou parcialmente, qualquer vestígio de exploração, isto é, que não fosse baseado num sistema de alocação de recursos e de redistribuição de excedentes caracterizado por um processo decisório autoritário e mesmo antidemocrático, em escala microeconômica. A propriedade coletiva dos meios de produção, que, junto com o “planejamento democrático” da produção, deveria garantir o desaparecimento definitivo de qualquer tipo de exploração social, não apenas deu início a formas disfarçadas (quando não abertas) de exploração dos trabalhadores diretos, como conduziu a um sistema eminentemente caracterizado pelo desperdício de recursos materiais e humanos (e, portanto, a uma maior exploração da sociedade, em seu conjunto) e marcado pelo florescimento de práticas políticas antidemocráticas, em escala macrossocial.
18) A experiência histórica indica que a difusão do desenvolvimento, em suas diversas formas materiais (incluindo suas manifestações culturais), emana sempre dos diversos centros de poder econômico e político. Os benefícios da acumulação revertem inevitavelmente aos mesmos centros, após ter o processo global de exploração cumprido sua missão histórica de amealhar recursos adicionais para a sociedade originalmente dominante. 
19) Não parece haver, pelo menos no horizonte histórico do sistema interestatal contemporâneo, alternativas válidas de afirmação nacional que logrem superar a assimetria estrutural da relação centro-periferia: ou as sociedades e nações dominadas conseguem transformar a exploração e a dominação em alavancas autônomas do seu próprio progresso econômico ou elas estão condenadas (num sentido propriamente hegeliano) a continuarem como meros objetos da História. 
20) No entanto, como todo processo histórico, a relação centro-periferia é eminentemente instável e perfeitamente mutável, tanto em seu contorno como em sua composição, podendo substituir atores, transformar cenários e ocupar novos palcos sociais. A História, absolutamente indeterminada, sempre oferece uma margem de liberdade, tanto aos homens quanto às nações.

As proposições alinhadas acima, deliberadamente provocativas, deveriam incitar sua contestação, tanto no plano lógico como no terreno histórico. É, aliás, desejo de seu autor que o presente “elogio da exploração” não seja simplesmente visto como um mero divertissement acadêmico, mas como uma tentativa de engajar a responsabilidade do intelectual na discussão de um tema essencialmente incômodo e altamente propenso a considerações de natureza ideológica. Tanto a crença liberal como a imaginação dialética deveriam se sentir desafiadas a descer na arena conceitual para expor seus próprios argumentos sobre a legitimidade histórica ou a inaceitabilidade moral desta realidade social que constitui a exploração. Pelo menos até aqui, ela parece estar empiricamente validada pelos laboratórios da história.
Deve-se finalmente acrescentar que, o “discurso realista”, de que estas notas constituem um simples exercício, encontra sérias objeções morais a nível da praxis política e social - num contexto nacional ou internacional - razão pela qual ele deve ser freado por princípios éticos suscetíveis de serem defendidos por lideranças político-partidárias e estadistas responsáveis. Não se deve esquecer, porém, de que a realidade subjacente a ele - ou seja, a estrutura das relações de exploração e de dominação - constitui o fundamento último e a razão imanente que sustentam a atuação dos Estados e elites dominantes em todas as épocas históricas.

Paulo Roberto de Almeida é Mestre em Economia Internacional, Doutor em Ciências Sociais e ex-Professor de Sociologia Política na UnB.
[Montevideo, 15/08/90]
[Relação de Trabalhos nº 194]
Inédito
Publicado in Paulo Roberto de Almeida, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999).

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo - livro em Kindle de Paulo Roberto de Almeida

Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Portuguese Edition) eBook Kindle

Coletânea de ensaios sobre o marxismo, o comunismo, o socialismo, no plano da teoria política e da história contemporânea, sobre temas como: 

1. A parábola do marxismo em perspectiva histórica; 
2. A ideia de revolução burguesa no marxismo brasileiro; 
3. Agonia e queda do socialismo real; 
4. O modo repetitivo de produção do marxismo vulgar no Brasil; 
5. O Fim da História, de Fukuyama: o que ficou?; 
6. Os mitos da utopia marxista; 
7. O fracasso do marxismo teórico e do socialismo prático; 
8. A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos; 
9. Sobre a responsabilidade dos intelectuais; 
10. Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?

Os dez ensaios aqui coletados foram concebidos e elaborados como respostas a tomadas de posição por parte de acadêmicos da grande tribo marxista e socialista que ainda pontifica impavidamente em auditórios geralmente receptivos de estudantes de humanidades e ciências sociais, quando não em outras vertentes do ambiente universitário.
Vários dos ensaios aqui reunidos, escolhidos entre dezenas de outros que pertencem à mesma família de “escritos de combate”, foram justamente publicados num típico pasquim da esquerda universitária, com o qual colaborei durante uma dezena de anos, sempre a contra corrente das tendências majoritárias (e recebendo críticas e contestações diretas a vários deles). Minha colaboração foi descontinuada sintomaticamente depois que sustentei uma discussão sobre a responsabilidade dos intelectuais nas grandes tragédias do socialismo totalitário, vindo ela finalmente a termo depois que eu questionei a inteligência daqueles que continuavam aderindo à liturgia comunista.
Esta antologia resume e expõe minhas relações de afinidade e distanciamento em relação ao marxismo e ao socialismo, mas ela não tem o objetivo de supostamente me situar no campo de uma “direita conservadora”, que de toda forma não existe no Brasil, nem no plano teórico, nem no terreno da prática. Detesto rótulos redutores e simplificadores, preferido exercer meu direito ao ecletismo doutrinário e ao ceticismo sadio, e por isso mesmo estou sempre pronto a defender argumentos de estrita racionalidade econômica, na busca das melhores soluções aos angustiantes problemas do Brasil, que sempre estiveram no coração de minhas leituras, estudos, reflexões e escritos no último meio século pelo menos. A coletânea aqui realizada é uma pequena amostra dessas preocupações com a educação dos mais jovens, com base em meu conhecimento adquirido nos livros, na atenta observação da realidade, na experiência adquirida ao longo de uma dupla carreira extremamente absorvente, no exercício da diplomacia profissional e nas lides acadêmicas desempenhadas de modo voluntário.

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Detalhes do produto

  • Tamanho do arquivo: 844 KB
  • Número de páginas: 284 páginas
  • Quantidade de dispositivos em que é possível ler este eBook ao mesmo tempo: Ilimitado
  • Editora: Edição de autor; Edição: 1 (20 de dezembro de 2019)
  • Data da publicação: 20 de dezembro de 2019
  • Vendido por: Amazon Digital Services LLC
  • Idioma: Portuguese
  • ASIN: B082YRTKCH
  • Dicas de vocabulário: Não habilitado
  • Empréstimo: Habilitado
  • Leitor de tela: Compatível 
  • Configuração de fonte: Habilitado 

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O globalismo, acreditem, é o instrumento da comunização do mundo. Parbleu!

Antes de transcrever a última peça literária do nosso ministro das relações exteriores, vou tentar entender algumas coisas.
Certas coisas é preciso ler, reler, voltar a ler, para tentar saber se estamos entendendo errado, ou é o argumento que peca por total falta de lógica.
Vejamos esta frase, por exemplo: 
"Desde 1989-1991, quando desabou o “socialismo real”, o marxismo vem trabalhando para desenhar novos instrumentos de construção do comunismo. O principal desses instrumentos é o globalismo (termo que utilizo numa acepção algo distinta daquela mais corrente que o define como a criação de uma governança mundial; para mim, diferentemente, o globalismo é a captura da economia globalizada pelo aparato ideológico marxista através do politicamente correto, da ideologia de gênero, da obsessão climática, do antinacionalismo)."

Eu sinceramente gostaria de compreender, não na teoria do ministro, mas na prática da vida corrente, como é que o tal de "aparato ideológico marxista" – acho que ele leu Althusser demais – consegue capturar a "economia globalizada", para construir esse tal de globalismo.
Não existe nenhuma evidência nesse sentido, e por isso cabe dizer: argumento ôco...

Ou vejamos esta outra frase aqui: 
"A principal fragilidade do sistema liberal é a seguinte: o sistema liberal não pensa. Não trabalha no mundo das ideias. Criou uma repulsa por tudo aquilo que chama de “ideológico”. Curiosamente, o sistema liberal em geral – e no Brasil os isentões em particular – aplicam a pecha de “ideológico” àqueles que procuram estudar o marxismo contemporâneo e entender seu “horizonte comunista”."

Aqui eu compreendo, mas não consigo aceitar essa assertiva: talvez eu não me enquadre nessa condição, pois não apenas sou um liberal que pensa, como penso no marxismo, no socialismo, no comunismo, como está evidenciado nesta minha mais recente obra: 

Marxismo e socialismo no Brasil e no mundo: trajetória de duas parábolas da era contemporânea (Brasília: Edição do Autor, 2019). Disponível livremente, em 10/12/2019, nas plataformas Academia.edu (link: https://www.academia.edu/41255795/Marxismo_e_Socialismo_2019_) e Research Gate (link: https://www.researchgate.net/publication/337874789_Marxismo_e_Socialismo_trajetoria_de_duas_parabolas_na_era_contemporanea_2019). 

Pois bem, passemos ao mundo da imaginação imaginativa...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 19/12/2019

Ministro das Relações Exteriores – Artigos
 Criado: 18 de Dezembro de 2019 - 12h04
Ernesto Araújo, Ministro das Relações Exteriores.
Em artigo exclusivo, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, traça um panorama da ameaça comunista nos países latinos
O intelectual e ativista marxista boliviano Álvaro García Linera, logo após ser eleito vice-Presidente da Bolívia na chapa de Evo Morales, em 2005, declarou: “O horizonte geral da nossa era é o comunismo.”
Não há dúvida de que a América Latina viveu dentro de um horizonte comunista desde 2005, ou possivelmente desde um pouco antes, desde a vitória de Lula em 2002, ou desde a vitória de Chávez em 1999. Na verdade, esse horizonte começou a raiar com a criação do Foro de São Paulo, em 1991.
Veja-se bem a expressão: dentro de um horizonte comunista. Não em um sistema explicitamente comunista. Muitas pessoas ridicularizam a discussão sobre a presença do comunismo na América Latina atual dizendo que os partidos autoproclamados comunistas são fracos ou inexistentes e que em nenhuma parte – exceto um pouco na Venezuela – cogita-se de instaurar um sistema com propriedade coletiva dos meios de produção ou ditadura do proletariado.
Em primeiro lugar, há que observar o seguinte: o comunismo não é a propriedade coletiva dos meios de produção. O comunismo não é a ditadura do proletariado. Propriedade coletiva e ditadura do proletariado – o socialismo – são instrumentos para chegar ao comunismo, que é o estágio último da sociedade humana concebido por Marx, o zero absoluto do ser humano, onde o controle sobre o homem é tão completo que já prescinde do Estado (portanto prescinde da ditadura do proletariado). Um controle sem sujeito, apenas objetos imbecilizados, onde já não há propriedade coletiva nem individual porque já não há diferença entre indivíduo e coletividade, um sistema que se autoperpetua infinitamente, um buraco negro da humanidade, de cujo horizonte já nenhuma luz escapa. O comunismo não é a abolição do capitalismo, o comunismo é (para tomar emprestado um título de C.S.Lewis) a abolição do homem.
O socialismo, dentro da loucura marxista, é apenas um instrumento para chegar ao comunismo, mas isso não significa que não haja outros. Desde 1989-1991, quando desabou o “socialismo real”, o marxismo vem trabalhando para desenhar novos instrumentos de construção do comunismo. O principal desses instrumentos é o globalismo (termo que utilizo numa acepção algo distinta daquela mais corrente que o define como a criação de uma governança mundial; para mim, diferentemente, o globalismo é a captura da economia globalizada pelo aparato ideológico marxista através do politicamente correto, da ideologia de gênero, da obsessão climática, do antinacionalismo). 
Assim, tudo o que os marxistas desde 1989 fazem e pensam é manter aberto o horizonte comunista. Sabem que já não podem pregar abertamente o comunismo porque o mainstream (ainda) o rejeita, mas podem ir-se aproximando, avançando aqui e ali, ganhando terreno e ocupando espaços. Horizonte por definição é um lugar aonde nunca se chega, mas que necessariamente orienta e referencia nossa localização espacial. O objetivo ficou talvez mais distante do que era no tempo da União Soviética, mas continua presente. Talvez tenha ficado mais próximo É isso o que querem dizer com o “horizonte comunista”. 
Essa expressão, aliás, serve de título a um livro da marxista Jodi Dean, publicado em 2012, The Communist Horizon um de tantos trabalhos surgidos desde o final dos anos 90 discutindo justamente as formas de preservar a “utopia” comunista e reinseri-la na realidade política e social concreta de um mundo aparentemente avesso ao comunismo. Na mesma linha vão os três volumes intitulados The Idea of Communism, coleção de ensaios de dezenas de autores marxistas, coordenados pelos dois principais pensadores dessa horripilante corrente na atualidade, Alain Badiou e Slavoj Zizek. O “horizonte comunista”, a “ideia do comunismo” são a mesma coisa: mil maneiras de manter viva a ideologia comunista, tantas vezes derrotada pela realidade. Dizia Mao Tse Tung: “De derrota em derrota, até a vitória final.” Esse é o programa. Aproveitar as aparentes derrotas para fortalecer-se e seguir avançando. Pode-se argumentar que neste Século XXI o projeto comunista está mais forte do que nos anos 80, justamente porque ninguém o vê e pode operar à sombra da sociedade de consumo. Em lugar de combater o capitalismo em nome de uma alternativa socialista claramente fracassada, infiltrar-se de maneira sutil dentro do capitalismo. 
Vão já, portanto, quase trinta anos – mas os últimos 20 são especialmente significativos – em que o marxismo está cavando túneis por baixo da superfície aparentemente segura e tranquila da sociedade liberal. Os marxistas nunca se renderam a essa sociedade. Reúnem-se, pensam, programam, aplicam diferentes estratégias que vão solapando o mundo liberal-democrático, de diferentes modos, com diversas geometrias, explorando de forma inteligente e perversa as fragilidades do sistema liberal.
A principal fragilidade do sistema liberal é a seguinte: o sistema liberal não pensa. Não trabalha no mundo das ideias. Criou uma repulsa por tudo aquilo que chama de “ideológico”. Curiosamente, o sistema liberal em geral – e no Brasil os isentões em particular – aplicam a pecha de “ideológico” àqueles que procuram estudar o marxismo contemporâneo e entender seu “horizonte comunista”. Ou seja, os ideólogos que se esforçam dia e noite por criar os novos instrumentos do comunismo (e que publicam suas ideias em livros amplamente disponíveis) são ignorados e deixados trabalhar em paz, sob uma espécie de indiferença benigna por parte do establishment. Já os amantes da liberdade que lêem esses trabalhos marxistas para entender o novo projeto comunista e assim poder combatê-lo são chamados de “ideológicos”. O mundo isentão lida apenas com a figura fictícia de um certo comunismo “derrotado em 1989” e recusa-se terminantemente a reconhecer – muito menos a enfrentar – o projeto comunista real que atua hoje por toda parte.
O isentismo é antes de mais nada uma forma de preguiça intelectual. 
Também é uma forma de acomodação. O isentismo não enfrenta o comunismo. Não chega nem perto. Não quer enfrentar. Não quer reconhecer que ele existe porque, se reconhecer, vai ter de fazer alguma coisa. Assim, o isentismo se inscreve confortavelmente dentro do horizonte comunista e, no dia em que o comunismo chegar e roubar-lhe a liberdade que ele acredita possuir de graça sem precisar lutar por ela, o isentão não vai nem perceber, pois sua cegueira ideológica – ou seja, sua cegueira para a ideologia que penetra na sua mente – já lhe terá consumido todas as faculdades e sentimentos de resistência. 
Isso na melhor das hipóteses. Em outra hipótese, o isentão sabe conscientemente que seu isentismo se insere dentro do horizonte comunista e está muito feliz com isso. Faz parte voluntariamente do projeto. Não se acha comunista, mas compartilha com o projeto comunista todo o essencial: o materialismo e o ódio ao espírito, a sede insaciável de poder e de controle absoluto. A pressa com que hoje, no Brasil, os isentos correm para os braços da extrema esquerda e vice-versa, formando uma estranha “isentoesquerda”, é o sinal abjeto dessas afinidades profundas.
Então, temos em todo o mundo, a partir da virada do século, a progressiva construção de uma sociedade que é liberal apenas na suferfície, na aparência de uma economia capitalista com instituições democráticas e direitos humanos bem bonitinhos, mas que na sua subestrutura não é nada disso. Debaixo do liberalismo, no porão, os engenheiros do “ideal comunista” manejam suas alavancas. No porão grassa a corrupção, o conluio com o crime organizado, a tolerância para com a violência mais brutal, as drogas (seu tráfico e seu uso), o capitalismo distorcido pelo controle estatal, a repressão ao pensamento e à livre expressão, o anticristianismo e o antiespiritualismo, o furioso moralismo materialista, a manipulação da ciência.
E os isentões, onde estão? Estão jogando pedra justamente naqueles líderes que, no Brasil e no resto do mundo, querem descer ao porão para lutar contra todas essas mazelas. O isentão, quando você aperta, ele não quer uma economia livre, ele não quer uma internet livre, não quer um idioma livre capaz de expressar a complexidade e beleza do espírito humano em sua aventura multidimensional. Quer uma economia direcionada pelo conchavo político, quer o controle social da comunicação pelo monopólio da grande mídia, quer uma novilíngua continuamente empobrecida pela ditadura do politicamente correto que substitui a ditadura do proletariado como instrumento preferencial de construção do comunismo. Sim, o isentão está enclausurado no horizonte comunista. 
No Brasil estamos rompendo o horizonte comunista e reenquadrando o liberalismo no horizonte da liberdade. O horizonte comunista está sendo rompido igualmente em outros lugares, certamente nos EUA, também no Reino Unido, na Hungria e na Polônia, penso que está sendo rompido na África, onde os últimos laivos da associação espúria entre comunismo e libertação, que vigorou por décadas desde as lutas anticoloniais, parecem estar-se dissipando. A Igreja Católica, em parte, se havia inscrito também dentro do horizonte comunista, a partir dos anos 60 e 70, mas ali a verdadeira fé parece estar resistindo e repelindo o avanço marxista sobre a sua doutrina bimilenar. 
O horizonte comunista está sendo rompido na própria Bolívia, onde o povo deu um basta a Evo Morales e García Linera, que queriam continuar arrastando os bolivianos para o abismo à custa da fraude eleitoral. 
Porém o horizonte comunista quer voltar a estrangular-nos. Quer regressar na Bolívia (Evo Morales foi acolhido pelo novo governo e está ali, a poucos quilômetros da fronteira, à espreita). Quer voltar no Chile, no Equador e na Colômbia, quer voltar no Brasil. Quer “iluminar” com suas trevas essas grandes nações que são a Venezuela, o México e a Argentina.
Precisamos olhar para além desse horizonte comunista, que não é um horizonte onde há árvores e campos mas sim as paredes de uma cela, esse horizonte que não é onde a terra encontra o céu mas onde a terra encontra o inferno. Tudo o que temos para combater o avanço dessas paredes e a aproximação desse abismo é o apego à liberdade. A liberdade que, insisto, não é uma ideologia, mas o eixo central do ser humano. 
Para começar, precisamos estudar o comunismo a partir do que dizem e fazem os comunistas, em lugar de sair aos gritos de “ideológico, ideológico” condenando quem o estuda e quem o enfrenta.