Por que Friedrich Engels, que faria 200 anos neste sábado, não era um mero coadjuvante de Karl Marx
Especialistas lembram como a modéstia do pensador alemão, responsável pela divulgação e formulação da teoria marxista, cristalizou essa impressão e ofuscou um teórico de primeira linha
Ruan de Souza Gabriel
O Globo, 28/11/2020
Numa carta a um camarada do Partido Social - Democrata alemão, remetida em 1884, um ano após a morte de Karl Marx, Friedrich Engels comentou sua prolífica colaboração com o autor de "O capital" e referiu a si próprio como "o segundo violino". Em outra carta, escreveu: "Marx era um gênio; nós, no máximo, tínhamos talento".
A modéstia de Engels contribuiu para cristalizar sua imagem como a de um mero ajudante que pagava as contas enquanto seu amigo se empanturrava de dialética. Tal imagem, contudo, cai por terra sob uma análise mais robusta. Engels, cujo bicentenário de nascimento é comemorado neste sábado (28) — a data está sendo lembrada com lançamentos de obras importantes dele e sobre ele —, era um revolucionário dedicado e um teórico de primeira linha, que ainda anima estudiosos do marxismo, do feminismo e da ecologia
Quando publicou o livro "Engels, o segundo violino", em 1995, o historiador Osvaldo Coggiola, professor da Universidade de São Paulo (USP), quase optou por outro título para afastar a ideia de que ele fosse só um coadjuvante: seria "Engels, o General". O interesse de Engels por estratégia militar lhe rendeu esse apelido na casa de Marx.
Autor de uma elogiada biografia de Engels, publicada em dois tomos (1920 e 1934), e cuja edição condensada a Boitempo lança agora no Brasil, o alemão Gustav Mayer especulou que as metáforas militares às quais Marx recorria em seus textos eram influência do "General". No ano que vem, a editora publica os textos da dupla sobre a Guerra Civil Americana (1861-1865).
Segundo Coggiola, Engels "tinha ideias próprias e às vezes se adiantava a Marx". Em 1844, ele já escrevia sobre economia política enquanto o outro ainda fazia a crítica da filosofia .
— Engels era um teórico com todas as letras. É errado imaginar Marx e Engels como uma dupla caipira, na qual Marx é o Zezé Di Camargo, com a voz afinada, e Engels é o Luciano tocando a viola, ou melhor, violino — compara Coggiola.
Nascido numa família de industriais alemães, Engels frequentou a universidade esporadicamente, mas era um autodidata competente. Trabalhou na fábrica da família em Manchester, na Inglaterra, até amealhar fortuna suficiente para sustentar a si próprio e a Marx e ainda contribuir para as lutas operárias. Conhecia de perto o proletariado e, em 1845, três anos antes do "Manifesto comunista", escreveu "A situação da classe trabalhadora na Inglaterra".
Depois da morte de seu camarada, editou o segundo e o terceiro volumes do "Capital". Em dezembro, a Expressão Popular lança "Cartas sobre 'O capital'", reunião da correspondência dos dois amigos entre si e também com outros revolucionários acerca da obra-prima do materialismo dialético.
Segundo Ricardo Musse, do departamento de Sociologia da USP, Engels não apenas contribuiu com a elaboração da teoria marxista (na década de 1840, ele e Marx escreveram textos incontornáveis a quatro mãos), mas também para convertê-la na política adotada pelos partidos operários, que, à época, dividiam-se em seguidores da dupla alemã, dos anarquistas e de outras correntes socialistas.
— Engels é um formulador da teoria e da prática marxista — diz Musse. — Além de divulgar o marxismo, escreveu textos importantes, como sua "Introdução" a "As lutas de classe na França de 1848 a 1850", de Marx, que influenciou as principais vertentes políticas marxistas do século XX: a teoria da revolução de Lênin, a teoria da hegemonia de Gramsci e a social-democracia.
Feminismo e ecologia
Para a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, Engels não era nenhum "segundo violino", apenas "modesto". E sempre atual.
— Engels foi fundamental para nós, feministas dos anos 70. Em "A origem da família, da propriedade privada e do Estado", de 1884, ele liga a opressão da mulher à propriedade privada — explica Maria Lygia. — No século XIX, a moda era o pensamento abstrato, e os textos dele têm um trato com dados da realidade, que a contemporaneidade aprecia. Ele também trata com lucidez da ecologia.
Os estudos de Engels sobre as ciências naturais, realizados entre 1873 e 1886, só foram publicados em 1925, como "Dialética da natureza", recém-lançada pela Boitempo. Segundo a pesquisadora Laura Luedy, da Unicamp, Engels ambicionava organizar as descobertas empíricas numa teoria e desbancar a pretensão de "isenção" da ciência .
— Engels apontou as consequências nefastas da dominação da natureza com vistas à acumulação continuada de capital, e defendia que o conhecimento das leis da natureza deveria ser aliado a uma revolução do modo de produção e da ordem social — observa Laura.
— Nos anos 80, a centralidade da ecologia no projeto marxista foi reconhecida, sobretudo, pela escola da ruptura metabólica" e a "ecologia-mundo", que recuperam as teses de Engels sobre dialética e ordem natural.
O texto "O papel do trabalho na hominização do macaco", incluído na "Dialética", no qual Engels junta o marxismo e a Teoria da Evolução de Charles Darwin, é um exemplo de que ainda soa bem a música do "segundo violino". "Não fiquemos demasiado lisonjeados com nossas vitórias humanas sobre a natureza", alertava Engels. "Esta se vinga de nós por toda vitória desse tipo".
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Lançamentos:
"Friedrich Engels: uma biografia"
Autor: Gustav Mayer. Tradução: Pedro Davoglio. Editora: Boitempo. Páginas: 336. Preço: R$ 67.
"Dialética da natureza"
Autor: Friedrich Engels. Tradução: Nélio Schneider. Editora: Boitempo. Páginas: 400. Preço: R$ 83.
"Cartas sobre 'O capital'"
Autores: Karl Marx e Friedrich Engels. Tradução: Leila Escorsim. Editora: Expressão Popular. Páginas: 384. Preço: R$ 45.