O caso ainda não resolvido do ‘pensamento diplomático’
brasileiro:
hipóteses sobre o regime militar (1964-1985)
Paulo Roberto de Almeida
[proposta de
trabalho; II Jornada de Pensamento Político Brasileiro]
Resumo:
Projeto de trabalho em torno de um
possível paradigma diplomático abrigado sob a hipótese conceitual da existência
de um “pensamento diplomático brasileiro” na vigência do regime militar
brasileiro (1964-1985), no seguimento de obra preliminar, já publicada pela
Funag, sobre o “pensamento diplomático brasileiro” no período 1750-1964 (ISBN:
978-85-7631-462-2), mas constituído, de fato, por capítulos biográficos. O
projeto de trabalho identifica as questões metodológicas e os elementos
substantivos identificados com a construção de uma pesquisa empiricamente
fundada, mas também sujeita a análise interpretativa quanto à natureza das
iniciativas diplomáticas e ao sentido e a orientação das políticas externas
registradas no período em consideração, sobre esse alegado (ou eventual)
“pensamento diplomático brasileiro”.
1.
Existiu, existe, tem vigência um “pensamento diplomático brasileiro”?
Em um projeto de
pesquisa elaborado para o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais
(IPRI-Funag), proposto originalmente em 2012 ao então presidente da Fundação
Alexandre de Gusmão, embaixador José Vicente Pimentel, sob o título de
“Pensamento Brasileiro em Política Internacional”, eu pretendia explorar a
hipótese da emergência e gradual consolidação de um eventual pensamento nacional
na área de relações internacionais e de política externa do Brasil, por via do exame
circunstanciado e contextualizado das grandes linhas de reflexão de diferentes
personagens (não apenas diplomatas, mas também tribunos, militares, acadêmicos
e outros “membros” de uma tênue comunidade dedicada às relações exteriores do
país) que contribuíram para a elaboração doutrinal e as atividades práticas vinculadas
à interface externa do Brasil.
Esse projeto, submetido
ao exame de colegas de carreira e a alguns membros da comunidade acadêmica
(embora limitada a Brasília), acabou tomando a forma de uma obra coletiva, sob
o signo do “Pensamento Diplomático Brasileiro”, sobre o qual eu mantinha
fundadas dúvidas, dada a heterogeneidade de seus fundamentos conceituais. O
empreendimento, que adotou uma abordagem biográfica de alguns desses personagens,
foi objeto de um único seminário de avaliação das contribuições textuais oferecidas
pelos participantes do exercício, e o seu resultado, rapidamente editado, foi
publicado pela Funag em 2013, sendo apresentado numa “conferência de relações
internacionais”, organizada pela Fundação no final desse ano. Prudentemente, eu
havia sugerido que a cronologia desse exercício tivesse a sua data de corte em março
de 1964, com vistas a evitar os problemas metodológicos e políticos que
fatalmente emergiriam a partir da eventual inclusão da era militar no âmbito
das contribuições analíticas então oferecidas pelos colaboradores convidados. Isso
não impediu, infelizmente, aproximações indevidas, historicamente anacrônicas,
entre o período da política externa independente e a diplomacia lulopetista,
completamente fora do alcance e do escopo da obra.
Participei do projeto
oferecendo um texto introdutório, de caráter analítico e metodológico, sobre os
conceitos selecionados para guiar o exercício, questionando inclusive a
existência de um “pensamento”, e seu hipotético caráter “diplomático”, no longo
período cronológico (1750-1964) finalmente retido como balizas temporais da
obra de referência pretendida pela Funag. Adicionalmente, ofereci um texto
sobre Oswaldo Aranha, feito em colaboração com o – e a partir de texto já
elaborado previamente pelo – embaixador João Hermes Pereira de Araújo. Os registros
editoriais desses dois textos são os seguintes:
1) “Pensamento
diplomático brasileiro: introdução metodológica às ideias e ações de alguns dos
seus representantes”, in: José Vicente Pimentel (org.), Pensamento
Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964).
Brasília: Funag, 2013, 3 vols.; ISBN 978-85-7631-462-2; vol. 1,
p. 15-38;
2) “Oswaldo Aranha:
na continuidade do estadismo de Rio Branco” (com João Hermes Pereira de
Araújo), in: José Vicente Pimentel (org.), Pensamento
Diplomático Brasileiro: Formuladores e Agentes da Política Externa (1750-1964).
Brasília: Funag, 2013, vol. 3, p. 667-711 (obra completa
disponível em formato zipado no site da Funag: http://funag.gov.br/loja/download/pensamento_diplomatico_brasileiro.zip).
Eu me perguntava,
inicialmente, se os três conceitos, “pensamento”, “diplomático” e “brasileiro”,
seriam “apropriados, coerentes entre si, justificados e adequados aos
objetivos” da obra pretendida, ou seja, se existia alguma “unidade intelectual”
que revelasse “alguma identidade de propósitos num longo continuum de ideias e de ações voltadas, ambas, para a diplomacia e
para a política internacional do Brasil ao longo de mais de dois séculos”. Eu
me dediquei, no resto da introdução metodológica a examinar “cada um dos
componentes do título desta obra coletiva, para debruçar-[me],
complementarmente, sobre as ideias e ações a eles associadas”. Não é o caso,
neste momento, de voltar a discutir essas questões, já amplamente tratadas no
primeiro dos dois textos, tendo a abordagem do caso de Oswaldo Aranha,
realizada no segundo texto, seguido, grosso modo, o enfoque proposto na
introdução.
A tarefa colocada pela
Funag neste momento, depois de minha designação como diretor do Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais, em agosto de 2016, é a da continuidade
daquela obra no seu imediato seguimento cronológico, ou seja, o exame de um
eventual “pensamento diplomático” no contexto temporal do
regime militar, iniciado em 1964 e encerrado em 1985. Com alguma relutância
aceitei participar do projeto, depois de já ter elaborado, primeiramente um
projeto completo para esse tipo de empreendimento, e depois um texto de síntese
destinado precipuamente a outra coletiva: “As relações internacionais do Brasil
na era militar (1964-1985)”, a ser publicado no volume 4 desta publicação:
Jorge Ferreira e Lucília de Almeida
Neves Delgado (orgs.), Brasil Republicano
(Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira). Este meu texto,
obrigatoriamente limitado a duas dezenas de páginas, oferece uma síntese
descritiva da diplomacia do período militar, acompanhado de bibliografia
pertinente.
Aceita, preliminarmente,
a viabilidade do projeto da Funag, de seguimento dessa temática do pensamento
diplomático nas duas décadas do regime militar, decidi dar continuidade ao exercício
anterior, não pela análise de um idealizado “pensamento diplomático” durante
esse período, mas por meio de um ensaio tratando exclusivamente da economia
brasileira nas três décadas que se estendem do início dos anos 1960 ao final
dos 80. Por “economia brasileira” deve-se entender tanto a evolução objetiva
dos principais indicadores macroeconômicos e setoriais ao longo do período,
como também as políticas econômicas, as relações econômicas internacionais do
Brasil e até o “pensamento” econômico de alguns dos principais personagens
dessa época.
Não obstante, talvez não
seja inútil oferecer uma reflexão tentativa sobre o que significa a existência
de um “pensamento diplomático brasileiro” durante a era militar. Exploro,
portanto, numa perspectiva puramente conceitual, a noção de
“pensamento diplomático brasileiro” nesse período, tal como suscetível de
cobrir um amplo espectro de formulações, ações e reações diplomáticas
brasileiras, disseminadas por diferentes administrações (e orientações) de
política externa, com atores diversos ao longo de um período bastante complexo
– certamente excepcional – da história do Brasil.
2. Um
“pensamento diplomático” na era militar?: premissas e fundamentos
A primeira questão a ser
considerada é a existência de um suposto “pensamento diplomático” na era
militar, como de resto em qualquer outra época, antes ou depois dessa fase
especial da história brasileira. Falar em “pensamento diplomático” implica
necessariamente partir de certa homogeneidade de conceitos e de formulações
gerais nos planos dos princípios e valores aplicados na frente externa, e que
mantenham certa consistência com as articulações políticas e diplomáticas
durante mais de um governo, apresentando, portanto, certa estabilidade temporal
e suficiente coerência interna para justificar essa designação. Em outros
termos, significa haver um corpo harmônico de ideias, ou um conjunto de
princípios organizadores da política externa que possa ser reconhecido, interna
e externamente, como representativo do Estado ou da nação, suscetível,
portanto, de se apresentar sob essa roupagem de “pensamento”.
Se esses são os requisitos,
é altamente duvidoso que tenha existido UM
pensamento diplomático na, ou da era militar, ainda que possam ter existido várias formulações de política externa
que foram em parte dominadas pelo pensamento militar – ou de segurança nacional
–, mas também, em grande medida, influenciadas e administradas (e em vários
setores dominadas, segundo as fases ou os temas) pelo estamento profissional do
Itamaraty. O corpo diplomático nacional, ou seja, os funcionários do serviço
exterior do Estado, de nível diplomático, foram os atores (por vezes
formuladores) que asseguraram certa continuidade de ideias e de posturas,
antes, durante e depois da era militar, com nuances e matizes próprias a cada
uma de suas fases, que foram diversas, tanto pela dinâmica interna do regime
militar, como pelos influxos da agenda externa, regional e mundial. Mas cabe
reconhecer, igualmente, que os próprios militares também tinham seu manancial
de ideias e princípios, e de posturas no plano externo, que alimentaram,
domaram ou inflexionaram essa diplomacia profissional, seja diretamente (pelas
suas lideranças sucessivas), seja indiretamente, por meio de suas instituições
de ensino e de formação de oficiais superiores, como a Escola Superior de
Guerra (aliás conhecida como “Sorbonne”), admitindo igualmente pessoal
selecionado da sociedade civil.
Como a era militar se
distingue, principal e precisamente, por ter sido militar, caberia, em
consequência, analisar em primeiro lugar, os fundamentos do pensamento militar,
se é verdade que existiu UM pensamento militar, o que também é duvidoso, já que
os militares, tanto quanto os civis, também se dividiram em tendências
políticas e econômicas diferentes, ao longo do período autoritário. Essas
diferenças, por vezes sutis, em outros casos declaradas, ficavam patentes por
ocasião das escolhas dos generais-presidentes que se sucederam no poder, e nas
conjunturas de crise política (como o recrudescimento da oposição contra o
regime e do acirramento da luta armada, que precipitaram novos fechamentos
autoritários, como por ocasião do AI-5) que dividiram o establishment militar,
até dramaticamente, como revelado na oposição do ministro do Exército Sylvio
Frota ao general Ernesto Geisel, por sinal provocada em parte por medidas e
posturas tomadas na frente diplomática (reconhecimento da China comunista, por
exemplo, mas também o do movimento guerrilheiro instalado em Luanda como o
governo legítimo de Angola no momento da independência).
Por outro lado, caberia,
igualmente, analisar, algumas variantes do pensamento diplomático, com matizes
diferentes no mesmo período, em função das personalidades que ocuparam cargos
políticos e funcionais (Ministro de Estado das Relações Exteriores e Secretário-Geral
do Itamaraty). Após uma curta fase inicial marcada por uma adesão mais estrita
aos cânones daquele momento, ou seja, a aliança com Washington, o Itamaraty
retoma as linhas básicas de sua “doutrina”, caracterizada fundamentalmente por
uma diplomacia do desenvolvimento, retirando elementos conceituais de uma
“ideologia cepaliana”, ou seja, substituição de importações, integração
regional, papel ativo do Estado nas diretrizes relevantes das políticas
públicas, em especial na área econômica, mas que também retirava fundamentos da
“ideologia unctadiana”, ou seja, forte identificação com projetos reformistas
no quadro das relações econômicas internacionais (não reciprocidade no comércio,
tratamento especial e mais favorável para países em desenvolvimento,
transferência de tecnologia, controle dos investimentos estrangeiros, em
especial das multinacionais, e maior participação nas estruturas dominantes
nessa área: instituições de Bretton Woods e Gatt).
Quais seriam os traços
definidores da política e do pensamento governamentais durante o período
militar? Correndo o risco de uma síntese redutora, vejamos os principais
elementos que compunham a “ideologia da governança pública” no decorrer do
regime e que, de uma forma ou de outra, também influenciaram, ou infletiram, a
política externa, tanto em seus principais princípios de atuação, ou seja,
doutrina, quanto na vertente de sua execução, ou seja, na atividade
diplomática. Esses elementos conceituais podem ser resumidos nos argumentos
seguintes:
1) uma forte ideologia da segurança
nacional, transmitida em grande medida a partir de sua matriz americana do
início da Guerra Fria e moldada no Brasil pelas academias militares a partir da
experiência própria das FFAA com o combate ao comunismo (simbolizado pela
Intentona de 1935) e no enfrentamento ao desafio ideológico representado pela
União Soviética e seus agentes nacionais (basicamente o PCB, depois dividido
nas correntes maoístas e cubanas);
2) o nacionalismo econômico reforçado pela
consciência dos chefes militares – e apoiado pelas lideranças empresariais – de
que o Estado deveria ser o elemento indutor, guia e promotor do processo de
desenvolvimento, que se identificava essencialmente com a forte ênfase dada à
indústria nacional e ao mercado interno;
3) uma política agressiva de
desenvolvimento econômico, em grande medida fundamentado nos recursos e no
mercado nacionais, a partir de políticas setoriais integradas a planos de
desenvolvimento voltados para o crescimento econômico acelerado e para a
construção da autonomia nacional, inclusive tecnológica;
4) políticas industriais e comerciais
ultraprotecionistas, voltadas para esses objetivos desenvolvimentistas, o que
de certa forma se ajustava aos diagnósticos cepalianos e unctadianos sobre o
pleno domínio dos recursos nacionais e sua mobilização para os fins
pretendidos, o que moldou diferentes vertentes da atuação diplomática
brasileira, sobretudo nos organismos multilaterais regionais e internacionais,
na defesa dessa visão desenvolvimentista e quase autárquica das políticas
públicas, afetando investimentos, tratamento do capital estrangeiro, solução de
controvérsias e fluxos comerciais;
5) prevalência do controle estatal sobre
diferentes mercados – agrícola, bens de consumo, bens de capital,
infraestrutura de forma geral, mão-de-obra, etc. – o que se manifestou não
apenas pela regulação setorial, mas pela criação e disseminação de empresas
estatais numa vasta gama de atividades produtivas e de infraestrutura;
6) preferência por reformas que tendiam a
reforçar esse controle estatal sobre o domínio econômico, em lugar de favorecer
as liberdades econômicas do setor privado e a integração do Brasil à economia
mundial;
7) controle do sistema político, visando
“purga-lo” de elementos “indesejáveis”, o que de certa forma implicou em
concessões às oligarquias dependentes do Estado;
8) enorme esforço de modernização material
e apoio irrestrito à capacitação nacional em capital humano e em ciência e
tecnologia, voltados para os pontos altos da cadeia – a superestrutura
universitária – em detrimento da educação de base, que não acompanhou o ritmo
acelerado de crescimento da primeira fase da era militar;
9) modernização do Estado e valorização do
chamado “estamento burocrático”, o que beneficiou amplamente a corporação
diplomática, tratada praticamente em situação de igualdade com a corporação
militar;
10) subordinação das diferentes políticas
setoriais, inclusive a política externa, aos imperativos da segurança nacional
e do desenvolvimento autônomo do país, com a mobilização da corporação
diplomática inclusive para a cooperação estratégica e militar com parceiros
externos (venda de armamentos e acordos em tecnologias sensíveis, como nuclear
e espacial).
Mas estes são traços genéricos, de corte sociológico,
sobre o regime militar, aqui considerado como um “personagem histórico” Este
“personagem”, todavia, está longe de ser homogêneo em suas diversas fases e,
sobretudo, está longe de representar uma continuidade política ou econômica,
sequer nas principais políticas – macroeconômicas ou setoriais, entre elas a
política externa – que se sucederam ao longo dos 21 anos de domínio das FFAA
sobre o sistema político e sobre os principais vetores das políticas
econômicas. Um enquadramento econômico e uma contextualização no ambiente
internacional são essenciais para se bem compreender os passos e as decisões
dos cinco governos militares, nos planos interno e externo, que marcaram o
regime desde meados dos anos 1960 até duas décadas depois.
3. As relações
internacionais do Brasil na era militar: breves considerações
As relações
internacionais do Brasil durante o regime militar brasileiro podem ser
analisadas, por uma parte, do lado das políticas mantidas pelos diferentes
governos dos cinco generais presidentes que se sucederam ao longo do período –
e, a despeito do que se crê habitualmente, elas diferiram bastante entre si –
e, de outra parte, através das reações e interações mantidas por esses governos
como respostas a questões da agenda internacional (dos órgãos das Nações
Unidas, por exemplo), a pressões de parceiros (conflitos com os Estados Unidos
sobre temas comerciais ou de propriedade intelectual, sobre a proliferação
nuclear, entre outros contenciosos) ou, objetivamente, a partir de eventos ou
processos dotados de grande impacto na economia do país (os dois choques do
petróleo, em 1973 e 1979, ou o aumento dos juros americanos, que resultou na
crise da dívida externa a partir de 1982). Vários elementos importantes dessas
diplomacias resultaram, no entanto, de iniciativas dos próprios dirigentes,
militares ou diplomatas, em função da percepção que mantinham sobre os
interesses fundamentais do Brasil.
Um dos autores mais
qualificados na exposição objetiva, linear, de toda a era militar, Fernando de
Mello Barreto (Os Sucessores
do Barão, 1964-1985: relações exteriores do Brasil; São Paulo: Paz e Terra,
2006), resume assim, num
artigo de síntese na revista Política
Externa (2014) sua visão geral do período:
As ações diplomáticas daquela
época não foram uniformes, apesar de algumas características comuns constantes.
Fatores internos e externos acarretaram mudanças nas posições internacionais
brasileiras entre 1964 e 1985. Portanto, os cinco presidentes do regime militar
levaram a cabo políticas externas com algumas diferenças marcantes entre elas,
especialmente nos primeiros anos e na segunda metade da década de 1970.
De fato, o
desenvolvimento geral das políticas públicas, inclusive a externa, diferiu
bastante entre o início e o final da era militar, espelhando, talvez as fases
de ascensão e declínio do regime. Os próprios rótulos oportuna e sucessivamente
usados para definir as “diplomacias” do regime militar trazem conotações
variadas usadas pelos cinco presidentes para caracterizar suas respectivas
diplomacia com algum grau de inovação conceitual. Depois da chamada “Política
Externa Independente”, no início dos anos 1960, tivemos vários slogans para definir
as supostamente diferentes orientações externas dos governos sucessivos do
regime militar, sinteticamente resumidas a seguir. Da ditadura à
redemocratização, este foram os rótulos escolhidos no período:
(a)
uma “diplomacia dos círculos concêntricos” (1964-67), supostamente baseada nas
teses do coronel Golbery do Couto e Silva sobre a ancoragem do Brasil no
chamado Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, e geralmente considerada como
“alinhada” a Washington pelas interpretações acadêmicas tradicionais, o que
está longe de refletir a complexidade diplomática daquela fase;
(b)
a “diplomacia da prosperidade” (1967-69), do governo Costa e Silva, retomando
as grandes linhas (sem o uso dos conceitos) da diplomacia anterior ao golpe, ou
seja, da Política Externa Independente, marcada, por exemplo, pela recusa do
Tratado de Não Proliferação Nuclear; ela se desdobrou, logo em seguida, no
projeto militar do:
(c)
“Brasil Grande Potência”, do governo Médici (1969-74), durante o qual ficaram
patentes a vocação do Brasil a assumir um papel, não de mero seguidor da grande
potência hemisférica, mas de um verdadeiro protagonista na região, assim como o
perfil potencial, embora iniciante, de um candidato a integrar o circulo
restrito das potências dotadas de força própria no sistema internacional;
(d)
seguiram-se as novas orientações diplomáticas dadas pela dupla Geisel-Azeredo
da Silveira, no que se chamou de “pragmatismo responsável e ecumênico”
(1974-79), que de fato representou uma inovação conceitual e prática em
diversas áreas de interesse, aliás dotada de intenso ativismo diplomático; e, finalmente:
(e)
o “universalismo” (1979-85) de Saraiva Guerreiro, que consolidou as grandes
linhas da gestão anterior, mas com um tratamento mais burocrático do que
personalizado dos temas da agenda corrente (nada muito original, portanto).
Esses rótulos,
supostamente definidores da política externa que se pretendia implementar em
cada fase, ou que foi tentativamente implementada, não têm muita importância em
si mesmos, ou seja, como reveladores da política externa efetivamente seguida,
no âmbito do governo que os escolheu, mas são reveladores de certa psicologia
de seus autores, ou proponentes, inclusive no que se refere à necessidade
pressentida de apresentar alguma justificativa, ou legitimação, em vista das
mudanças propostas, que podem representar uma espécie de inflexão, ou ruptura,
ao que vinha sendo seguido anteriormente. Assim foi com a chamada PEI, que
supostamente representaria uma saída do “alinhamento incondicional” com as
posturas internacionais dos EUA, em direção (mas de forma moderada) do chamado
não-alinhamento, do neutralismo ou de uma “terceira posição”, cujo charme e
distinção, na fase anterior ao golpe, não deixava de encabular,
retrospectivamente, os membros da diplomacia profissional servindo ao regime
militar. Em sua vigência, o rótulo de maior “sucesso conceitual”, durante esse
longo período, foi aquele que efetivamente correspondeu a uma fase de maiores
mudanças nas orientações de política externa e de ativismo diplomático, ou seja,
o “pragmatismo responsável e ecumênico”, da dupla Ernesto Geisel e Antonio
Azeredo da Silveira, notável pela inflexão decidida da segurança para o
desenvolvimento, como não deixou de registrar uma das melhores analistas do
período, Letícia Pinheiro.
Mas não é o caso de
examinar, aqui e agora, as características de cada uma dessas diplomacias
respectivas, que de fato foram relativamente inovadoras em relação ao que havia
antes e ao que foi feito depois. O trabalho a ser conduzido, num novo exercício
abrangente de análise de um suposto “pensamento diplomático” durante a era
militar, compreenderia o exame dos itinerários respectivos das diferentes
políticas externas do período, o que também implica tratar da questão da
continuidade ou da ruptura nas principais orientações diplomáticas em cada fase,
tal como definidas na defesa que delas fizeram seus respectivos proponentes,
diplomatas profissionais ou tecnocratas (civis e militares) do regime.
Em política externa, o
normal é a continuidade, sendo mais raras as fases de ruptura, inclusive por
causa dos compromissos externos que não podem ser rompidos facilmente, e porque
também existe um corpo consolidado de posições que reflete um determinado modo
de inserção no sistema de relações internacionais – nas suas diferentes
vertentes, bilateral, regional, multilateral – e um staff especializado, de caráter
permanente, que tende a ser conservador nos hábitos e no pensamento. Os
diplomatas são, em geral, continuístas, legitimistas (no sentido em que sempre
vão defender o governo do momento), burocráticos, cautelosos ao extremo e,
portanto, tendentes ao continuísmo em política externa e na política nacional,
de modo amplo.
Isso não impede o
acolhimento de novas ideias, quando elas correspondem ao Zeitgeist, ou os ares do momento, como podem ter sido, em suas
respectivas épocas, o desenvolvimentismo cepaliano e de JK, a Política Externa
Independente, de Quadros e Arinos, preservada na administração Goulart-San
Tiago Dantas, e até o último chanceler do regime de 1946, João Augusto de
Araújo Castro, um dos raros diplomatas não burocratas, e tido por muitos como
intelectual. Aquilo que se pode chamar de ideologia do desenvolvimento é a
ideologia oficial do Itamaraty, e é também a ideologia nacional brasileira
desde a era Vargas, e especialmente desde os últimos anos da república de 1946,
mas também durante quase toda a era militar, e paradoxalmente no decorrer da
diplomacia lulopetista. Não existe propriamente novidade em registrar que o
presidente Lula era um grande admirador do presidente Geisel, o mais
autoritário, concentrador, estatizante e intervencionista dos presidentes
militares, assim como a dupla Samuel-Amorim era admiradora confessa da Política
Externa Independente, e ambos não relutavam em admitir que estavam resgatando
tudo aquilo que tinha sido defendido nos anos de suposto não-alinhamento com a
potência imperial e de compromissos com os objetivos desenvolvimentista daquela
época. Ainda que Lula não exibisse, nem de longe, qualquer uma das supostas
“qualidades” do presidente Geisel, de certa forma um “tecnocrata” exemplar do
regime militar, ele tinha grande apreço, mesmo de forma inconsciente e
totalmente instintiva, pela via “prussiana” do desenvolvimento brasileiro, ou
seja, pelo alto, feita de um exagerado intervencionismo estatal, um
protecionismo igualmente míope e todo aquele impulso megalomaníaco de fazer do
Brasil uma grande potência, respeitada nos cenários regional e internacional.
O próprio corpo de
servidores do Itamaraty tende a ser mais continuísta, com base naquela
“ideologia desenvolvimentista” que já era a sua desde meados dos anos 1950, e
que persiste, sob variedades levemente modificadas, até os dias que correm. Mas
os diplomatas profissionais também são “legitimistas”, no sentido em que podem
se adaptar facilmente a mudanças de postura, tais como emanadas da presidência
da República. Tal foi o caso da primeira fase do regime militar – o suposto
alinhamento do governo Castelo Branco com as teses da potência líder do
Ocidente, o que não corresponde inteiramente à verdade dos fatos – e também das
várias mudanças operadas no breve interlúdio de Fernando Collor na presidência
(1990-92), quando novas orientações, de abertura econômica e de liberalização
comercial, foram impressas naquela conjuntura (revisão metodológica no
Mercosul, adoção de ampla reforma tarifária, que correspondeu à Tarifa Externa
Comum, aceitação dos novos temas na Rodada Uruguai do Gatt, revisão da política
nuclear, início do processo de privatização de companhias estatais, etc.). Foi
também o caso da presidência FHC, quando se alterou a política nuclear brasileira,
no sentido da aceitação do TNP (1968), e de diversos outros compromissos em
geral alinhados com a postura globalizante e progressista do presidente. Não é
necessário registrar que o Itamaraty se acomodou, ao seu estilo profissional,
às idiossincrasias dos tempos não convencionais do lulopetismo.
O período final do
regime militar já não exibia mais aquelas preocupações exageradas com a
segurança – ou seja, o anticomunismo oficial – que tinham caracterizado o seu
início. Já não se falava mais em “Brasil Grande Potência”, inclusive porque
foram anos e anos de crises contínuas (o segundo choque do petróleo, em 1979, a
crise da dívida externa, a partir de 1982, e que ocupou o Brasil e a sua
diplomacia pela década e meia seguinte), e sim em esforços de desenvolvimento
no quadro das grandes mudanças trazidas pelo “aggiornamento” nos regimes
comunistas, inauguradas pelo reformismo da era Deng Xiaoping na China, e logo
seguidas pelo “glasnost” e pela “perestroika” do breve período Gorbatchev na
União Soviética.
A diplomacia brasileira
continuou a ser conservadoramente desenvolvimentista, e bastante relutante em
aceitar novos compromissos de abertura econômica ou de liberalização comercial,
embarcado na integração bilateral com a Argentina, processo que foi ampliado em
formato quadrilateral no início dos anos 1990, com a constituição do Mercosul.
A diplomacia de FHC foi basicamente profissional, ou seja, itamaratiana, com as
já mencionadas inovações na área da política nuclear e da aceitação cautelosa
de novos compromissos em matéria de acordos comerciais (multilaterais e
hemisféricos). Os companheiros, por sua vez, inventaram iniciativas
mentirosamente “inéditas” que se conformassem ao seu desejo de se enquadrar na
fábula do “nunca antes” e de um “ativismo” e de uma “altivez”, que disfarçaram
mal seu alinhamento inquestionável com os interesses da mais longeva ditadura
da América Latina. Mas nos temas que realmente integravam a agenda diplomática,
o continuísmo no seu encaminhamento, ainda que não nos procedimentos, foi de
rigor.
A prioridade para a
América do Sul, por exemplo, já estava dada desde o início da era FHC, e mesmo
antes, sob a gestão de Itamar Franco, quando se tentou contrapor às iniciativas
americanas – a de Bush pai e a de Clinton – de um amplo acordo hemisférico de
livre comércio a proposta de um superficialmente formulado projeto de Alcsa,
uma área de livre comércio sul-americana (jamais realizada formalmente, senão
por uma miríade de acordos parciais na Aladi). A abertura e o relacionamento
com grandes parceiros do chamado Sul Global (uma invenção geográfica sem
qualquer sentido econômico ou mesmo diplomático) já estava posta desde muito
antes igualmente, inclusive porque o Itamaraty sempre foi adepto dessas
alianças terceiro-mundistas. O projeto de FHC de integrar fisicamente a América
do Sul foi despudoradamente roubado, reinventado sob outro nome e, como várias
outras iniciativas companheiras nessa área, permaneceu não implementado, por
falta de competência para levá-lo adiante, sem as parcerias anteriormente
previstas no projeto original. O multilateralismo como metodologia geral também
nunca deixou de ser praticado por uma diplomacia feita mais de transpiração do
que de inspiração.
4. Um
caso a resolver: existiu um ‘pensamento diplomático’ de 1964 a 1985?
Dadas estas
considerações de ordem geral sobre a diplomacia brasileira ao longo do último
meio século, seria possível, a partir daí, estabelecer um debate fundamentado sobre
o seria, ou o que representaria, um “pensamento diplomático” durante o regime
militar, certamente um amálgama de diferentes vertentes ideológicas, de
inspirações conceituais e de inovações metodológicas? Talvez, mas isso
implicaria em examinar, ou reexaminar todos os “discursos” diplomáticos
(presidenciais e de chancelaria) das duas décadas correspondentes e tentar
extrair, a partir dessa massa que já vimos ser bastante diferenciada em seus
propósitos e motivações, alguma rationale
que caracterize de fato a existência desse suposto pensamento.
Ele seria,
provavelmente, uma síntese das tradições bem assentadas da diplomacia
profissional com os novos impulsos doutrinais e os requerimentos práticos –
segurança, desenvolvimento, autonomia, defesa da soberania, busca de espaços nos
sistemas regional e internacional, etc. – próprios do “pensamento militar”, se
é que ele também existiu de forma consolidada na expressão das diversas
correntes das FFAA que se mantiveram no poder durante o período. Este seria um
empreendimento ao qual eu poderia me dedicar no âmbito do novo projeto proposto
pela Funag na continuidade da obra “Pensamento Diplomático Brasileiro”, de 1750
a 1964. Uma discussão desse tipo implica um exame dos escritos,
pronunciamentos, memórias e documentos dos principais personagens (não apenas
diplomatas) envolvidos na formulação e execução das principais iniciativas do
país na vertente externa, mas também do debate nacional, de modo amplo, em
torno da maquinaria diplomática em suas frentes de atuação.
Talvez eu me dedique a
esse tipo de exercício intelectual, mas não antes de concluir um exame completo
da “economia” do período militar, ou seja, uma análise das políticas
econômicas, das relações econômicas internacionais do período, das conjunturas
externas e seu efeitos sobre o Brasil, bem como os resultados desses diferentes
elementos objetivos tal como refletidos nos principais indicadores do período,
em suas diferentes fases. Os “discursos” diplomáticos refletirão, em parte, as
injunções externas, mas também não deixaram de expressar os objetivos
manifestos dos governos em defesa do “interesse nacional” na frente externa, um
conceito plenamente identificado com a era militar.
O empreendimento, tal
como descrito e discutido preliminarmente neste projeto de trabalho, pode se
revelar interessante, mas a consistência da hipótese conceitual sobre a
existência de um “pensamento diplomático” ainda permanece, no estado atual da
pesquisa, sob questionamento. Em todo caso, Trata-se de um esforço exploratório
provavelmente suscetível de render alguns ensaios de qualidade sobre os
fundamentos políticos, econômicos (e até filosóficos, talvez) e propriamente
diplomáticos (no sentido funcional da expressão) das diferentes (não
necessariamente contraditórias) políticas externas implementadas sob os
governos militares durante o período autoritário. O presente texto, portanto,
tem caráter puramente tentativo, no sentido de examinar hipóteses em torno de
um conceito ambíguo, ainda não convertido em paradigma de expressão
diplomática.
Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag;
Professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em
Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
Brasília, 4 de maio de 2017