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domingo, 16 de junho de 2019

Nova matéria sobre as relações diplomáticas França-Brasil durante a ditadura militar - Sergio Augusto (OESP)

Historiador analisa relações da ditadura brasileira com a França

A diplomacia entre Brasil e França, encarnada no Itamaraty e no Quai d’Orsay, teve altos e baixos no período do regime militar

Sérgio Augusto
O Estado de S. Paulo, 15 de junho de 2019

O sol da última segunda-feira ainda raiava quando Le Monde soltou, na internet, sua primeira matéria sobre o #VazaJato, horas antes detonado pelo site Intercept Brasil. O jornal francês de maior prestígio no mundo continua a velar por nós, pensei avec mes boutons, enquanto singrava as 559 páginas do mais recente estudo do historiador Paulo César Gomes sobre o regime militar instaurado em 1964.  
O autor já publicou, pela mesma Record, uma análise das relações dos bispos católicos com a ditadura. Seu tema de agora são as relações franco-brasileiras desde a derrubada de João Goulart até o início do processo de abertura, no governo Geisel. Seu título, Liberdade Vigiada, diz mais respeito aos brasileiros que se exilaram e se asilaram na França, fugindo do autoritarismo, do que àqueles que aqui ficaram, vivendo sob férrea censura e diuturna repressão.  
Seu protagonista é a diplomacia, encarnada no Itamaraty e no Quai d’Orsay, e entre os heroicos coadjuvantes que em suas páginas transitam nenhum é mais frequente que a imprensa francesa. E nenhum tão presente e combativo quanto Le Monde. Sempre atento aos acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil, o diário francês alertou primeiro a ofensiva contra a esquerda e o programa de reformas de Goulart, vistos com simpatia não apenas pelo Monde, mas até pelo conservador Le Figaro e o liberal Combat.  
Irineu Guimarães, correspondente do Monde, e Daniel Garric, do Figaro, não receberam com otimismo a intervenção militar. Três dias depois do golpe, o editor do Monde, Hubert Beuve-Méry, assinou um editorial em que apresentava a intervenção como uma reação da direita contra os avanços sociais propostos pelo governo deposto e criticava a indiscriminada aplicação do rótulo genérico de “comunista” a quem se opusesse à nova ordem.  
A partir do Ato de 9 de abril, quando o governo Castelo Branco tirou a máscara e a onda repressiva que se seguiu, com perseguições, prisões indiscriminadas e cassações, a imprensa francesa não mais largou o calcanhar da “revolução”. Irineu Guimarães acabou preso mais de uma vez e François Pelou, diretor da agência de notícias France-Presse, foi expulso do país no governo Médici.  
Nos 15 anos cobertos pelo livro, farto em documentação inédita e muito bem articulado, a França foi governada por três presidentes e o Brasil por cinco ditadores, mais uma junta militar, da qual fazia parte um futuro embaixador do Brasil em Paris, o general Lyra Tavares. Ao longo do período, tivemos cinco chanceleres e cinco vezes trocamos nossos representantes diplomáticos na França.  
Efetivando com atraso um convite feito por Goulart, Charles de Gaulle foi o primeiro presidente francês a visitar o Brasil, em outubro de 1964. Geisel seria o primeiro mandante brasileiro a visitar o Palácio do Eliseu. Costa e Silva ainda era apenas ministro da Guerra de Castelo Branco quando o líder francês, com ocupações mais relevantes, recusou-se a recebê-lo. De Gaulle também guardou distância de Carlos Lacerda, em missão oficial do governo Castelo, e de Adhemar de Barros, que de lá não pôde voltar com a prometida Légion d’Honneur. Apesar do empenho do embaixador Vasco Leitão da Cunha, Leonel Brizola tampouco pôde apertar a mão de De Gaulle. 
Uma concepção pragmática das relações internacionais ditou as estratégias diplomáticas dos dois países e fez prevalecer o princípio de não intervenção em assuntos internos. Ao menos, de parte da França, que, a despeito das persistentes pressões da opinião pública, da mídia e da intelectualidade, não permitiu que seus interesses comerciais e financeiros fossem perturbados por qualquer tipo de comentário sobre violação de direitos humanos pelo regime militar. E deixou a inana por conta da imprensa. “Savoir faire” é uma expressão tão francesa quanto “saia justa” é brasileira. Ambas se defrontaram quase diariamente durante os nossos anos de chumbo, quando o Itamaraty funcionou como braço repressivo da ditadura, espionando e dedurando os inimigos do regime em âmbito internacional, isto é, os comunistas (com ou sem aspas) e os subversivos (idem).  
Mal saía uma crítica ou denúncia em jornais e revistas, e lá iam nossos pressurosos embaixadores e ministros-conselheiros, sempre em pânico, ao Quay d’Orsay implorar providências censórias e exigir que o governo francês controlasse a cobertura jornalística envolvendo o Brasil. Ouviam, invariavelmente, a mesma desconversa, assim resumível: “Nada podemos fazer. A imprensa na França é totalmente livre. Escreva uma carta ao editor do jornal ou fale com ele pessoalmente.”  
O ministro-conselheiro Raul de Vincenzi visitou as redações do Monde e do Figaro, para caitituar Beuve-Méry e Pierre Brisson, e saiu como saíra do Quay d’Orsay, de mãos abanando. Mendes Viana, nosso embaixador nos primeiros dois anos da ditadura, fez um escarcéu contra o Monde, acusando-o de agir de má-fé, o que não deu em nada.  
Iguais reveses conheceram os graduados diplomatas Paulo Paranaguá e Carlos Calero Rodrigues, este signatário de uma carta-protesto ao Figaro tão ridícula quanto se podia esperar do nosso atual chanceler Ernesto Araújo. Na vã tentativa de promover uma imagem positiva do Brasil, o Itamaraty chegou a contratar os serviços de um picareta internacional, de passado colaboracionista, chamado Georges Albertini. Sustentado por David Rockefeller e a Shell, até aqui ele deu palestras, a convite da Fiesp. Só o bolso dele saiu ganhando.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Ditadura militar brasileira: relações diplomáticas Brasil-França - livro de Paulo César Gomes

Livro revela relações entre a ditadura brasileira e o governo francês



Historiador Paulo César Gomes analisa em Liberdade Vigiada como os dois países atuaram durante a ditadura por meio de suas representações diplomáticas e consulares. Resultado de quatro anos de pesquisa, livro reúne informações da Embaixada e do Consulado-Geral do Brasil na França, do Ministério de Relações Exteriores e do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês.

Após o golpe militar de 1964, os recursos diplomáticos foram mobilizados com a finalidade de assegurar a legitimidade do novo regime e, durante muito tempo, prevaleceu a versão de que a diplomacia brasileira não se envolveu nas arbitrariedades da ditadura. Em 2011, no entanto, a Lei de Acesso à Informação possibilitou o acesso aos acervos documentais da época e o mundo secreto do Itamaraty estava então desprotegido. O historiador Paulo César Gomes, que atuou como pesquisador na Comissão da Verdade, debruçou-se sobre esse material e cruzou com informações do próprio governo francês. O resultado está no livro “Liberdade vigiada”, que a Editora Record acaba de lançar.

O livro examina de que forma as práticas repressivas que caracterizaram esse período da história brasileira, bem como as denúncias de tais práticas no exterior, influenciaram as relações entre os dois países. Em entrevista ao blog da Editora Record, Paulo conta que embora o governo francês tivesse plena consciência das ações arbitrárias que vinham sendo cometidas pela ditadura, amplamente veiculadas pelos principais jornais franceses, nunca se pronunciou publicamente sobre o tema. Todas as conversas eram mantidas no âmbito das correspondências sigilosas, que só recentemente vieram a público com a liberação dos documentos secretos.

“É possível afirmar que os dois grandes eixos da colaboração franco-brasileira durante a ditadura eram reforçar a cooperação comercial, e atuar conjuntamente para que as denúncias feitas por exilados brasileiros na França e, também, por religiosos, com destaque para dom Hélder Câmara, não afetassem negativamente as relações bilaterais. De início, o governo francês chegou a fazer críticas, no âmbito interno, à ruptura institucional que ocorreu no Brasil. Seja como for, logo depois das eleições indiretas que levaram Castelo Branco à Presidência da República, o governo francês reconheceu oficialmente o novo regime”, completa. O autor lembra ainda que a visita oficial do presidente francês Charles De Gaulle ao Brasil, no segundo semestre de 1964, foi a primeira de um chefe de Estado de uma grande potência após o golpe.

“Liberdade vigiada” percorre as relações franco-brasileiras do início da ditadura até a Anistia e mostra como só na década de 80, no governo de François Mitterand, começaram a aparecer documentos chamando atenção para as violações aos direitos humanos. Antes mesmo de ser presidente, Miterrand, como parlamentar, já havia alertado para as violações praticadas no Chile.
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Paulo César Gomes nasceu em Brasília, é historiador e doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e é autor de vários artigos acadêmicos. Em 2014, publicou pela Editora Record o livro Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. É criador e editor do site de divulgação científica História da Ditadura: www.historiadaditadura.com.br
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O lançamento será no Rio (Livraria Da Vinci), nesta quinta, 30, às 18h.Também está confirmada noite de autógrafo em São Paulo (Tapera Taperá), no dia 8 de junho, sábado, às 16h.

LIBERDADE VIGIADA
Paulo César Gomes
560 páginas | R$ 74,
Rio de Janeiro: Editora Record, 2019

sexta-feira, 16 de março de 2018

Cooperacao cientifica Brasil-Franca: estado da arte em 1989 - Resenha de livro, PRAlmeida

Vinte Anos de Cooperação Científica Brasil-França

Resenha de livro:
Guy Martinière/Luiz Claudio Cardoso (coords):
France-Brésil: Vingt Ans de Coopération (Science et Technologie)
(Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1989, 352p.; Collection “Travaux et Mémoires” de l’Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine, n° 44, Série Essai nº 4)


Desde sua constituição, em 1985, o “Projeto França-Brasil” havia logrado a realização de alguns bons espetáculos, aqui e lá, permitido o início da restauração dos parcos vestígios da presença francesa em nossas terras e, sobretudo, estimulado uma intensa movimentação de autoridades governamentais e de personalidades dos dois lados do Atlântico, burocratas, políticos, artistas e acadêmicos confundidos. Se a maior parte das manifestações teve caráter efêmero, em que pese sua natureza por vezes espetacular (stricto et lato sensi), temos agora a primeira evidência “material” da intensidade das relações culturais e científicas entre os dois países, sob a forma de um livro de testemunhos dos agentes humanos e institucionais engajados nesse relacionamento, verdadeira “memória coletiva” de vinte anos de cooperação científica e tecnológica entre o Brasil e a França.
O volume, editado na França pelo Professor Guy Martinière, do Instituto de Altos Estudos da América Latina (estando sua publicação no Brasil sob a responsabilidade do Itamaraty), realiza uma vasta síntese da cooperação científica e tecnológica empreendida desde longos anos pelas principais agências e instituições envolvidos nesse intercâmbio, precedida de depoimentos ilustrativos de personalidades vinculadas à cooperação franco-brasileira desde a assinatura do acordo bilateral, em finais dos anos sessenta. Um dos anexos do livro contém aliás a lista cronológica dos principais acordos de cooperação e entendimentos complementares entre instituições brasileiras e francesas entre a data de assinatura do acordo científico-tecnológico, em 16 de janeiro de 1967, e 31 de dezembro de 1987: os instrumentos mais relevantes, firmados entre 1978 e 1982, referem-se à formação de recursos humanos, à pesquisa e desenvolvimento agronômicos, bem como a atividades espaciais, oceanográficas, de saúde e de metrologia.
A primeira parte da obra, sob a responsabilidade dos ministérios das relações exteriores dos dois países, tem caráter meramente introdutório (seis páginas), mas permite, ainda assim, algumas constatações interessantes. O Brasil ocupa, de longe, o primeiro lugar da América Latina no esforço francês de cooperação científica e tecnológica externa e situa-se como o quarto parceiro da França, em termos mundiais, depois dos três países árabes do norte da África (excluída a África negra de expressão francesa, em seu conjunto). A introdução brasileira, bem mais elaborada em termos históricos e conceituais, não deixa de lembrar as contribuições pioneiras de André Thévet e de Auguste de Saint-Hilaire para o conhecimento da flora, da fauna e da etnologia do Brasil colonial e independente. Igualmente, o potencial brasileiro em ciências físicas (mineralogia, por exemplo) e biológicas foi em grande parte o resultado de uma longa colaboração, oficial ou espontânea, com a França. Na primeira metade deste século, por outro lado, a criação da Universidade de São Paulo recebeu, como é sabido, uma contribuição decisiva da parte de inúmeros cientistas sociais e pesquisadores franceses.   
Não seria, assim, exagerado dizer que o Brasil está irremediavelmente ligado à elaboração da “antropologia estrutural” de Claude Lévi-Strauss, às reflexões sobre relações raciais de Roger Bastide, ao itinerário do “comércio atlântico” de Fréderic Mauro e ao conceito de “economia-mundo” de Fernand Braudel, modelos e tipologias que tanto iriam influenciar os professores e estudantes brasileiros nas diversas áreas das ciências humanas. Da mesma forma, o “observador” beneficiou-se da aproximação: o Brasil forneceu a “matéria-prima” para os estudos de geografia humana de Pierre Monbeig, de movimentos sindicais nos trabalhos de Alain Touraine, dos problemas demográficos, urbanos e sociais nas análises sobre o desenvolvimento do Padre J. Lebret, bem como a matéria- prima tout court para tantos outros pesquisadores e cientistas franceses.
A segunda parte do livro compõe-se de uma série de catorze depoimentos de personalidades francesas e brasileiras (sete para cada lado) e constitui, por assim dizer, a parte mais “saborosa” da obra, pelo menos em comparação com a descrição mais ou menos “árida” das atividades das instituições científicas engajadas na cooperação bilateral, feita na terceira parte. Os testemunhos contemporâneos são encerrados por um “anexo especial”, que é a transcrição do capítulo inicial de “Tristes Trópicos” de Lévi-Strauss (publicado originalmente em 1955), onde o célèbre ethnologue, antes de contar suas expedições ao Brasil indígena, começa por dizer que “odeia as viagens e os exploradores”.
As 76 páginas de depoimentos pessoais são evidentemente desiguais em conteúdo e em densidade de informação, mas permitem ainda assim traçar um panorama bastante claro da intensidade de contatos humanos e científicos entre as duas comunidades acadêmicas, inclusive com diversos prolongamentos anteriores aos últimos vinte anos, período mais especificamente analisado na descrição “institucional” da terceira parte. De uma forma geral, o que poderia ser chamado de “etapa heroica” do relacionamento científico Brasil-França - basicamente o período formador da Universidade brasileira - é caracterizado por uma relação unilateral de cooperação, consistindo no “fornecimento” constante e continuado de jovens professores universitários franceses para cobrir as lacunas humanas e a sede intelectual de um corpo discente e professoral ávido pela haute culture e pelos avanços científicos da recherche française. Em contraste com a intensa “importação” de cérebros e de conhecimentos dos primeiros anos, o período recente já registra uma relação mais equilibrada no intercâmbio cultural entre os dois países. 
Os depoimentos são abertos, significativamente, por um Rapport sur les professeurs français, cobrindo o período de 1934 a 1987, escrito conjuntamente pelos professores José Ribeiro de Araujo Filho, Aziz Simão e Eduardo d'Oliveira França, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, o centro acadêmico que primeiro recebeu os “mensageiros da cultura europeia” em terras brasileiras. Dessa presença pioneira resultaram um profundo attachement da maior parte dos intelectuais brasileiros pela produção acadêmica francesa, assim como, reciprocamente, diversas liaisons affectives (senão dangereuses) de jovens professores franceses pelas coisas e pessoas do Brasil. A vinda, em princípios dos anos cinquenta para uma conferência, do historiador Lucien Febvre serviu, por exemplo, para o lançamento da Revista de História, fundada sob a influência direta dos franceses, concretizando assim a filiação metodológica com a orientação historiográfica da revista Annales (fundada por Febvre e Marc Bloch em 1929), deixada em semente alguns anos antes por Braudel.
O cientista Carlos Chagas oferece, em seu depoimento intitulado “uma visão pessoal da cooperação científica entre a França e o Brasil de 1758 a 1966”, um verdadeiro passeio pela história das ciências no Brasil. Começando pela viagem de La Condamine pelos rios Solimões e Amazonas, da qual iriam resultar interessantes observações sobre a fauna e a flora dessa região, relatadas em seu livro Relation abrégée d'un voyage fait dans l'intérieur de l'Amérique méridionale (1745), Chagas relembra, entre outros exemplos, o impacto do modelo francês na criação, por D. Pedro II, da Escola de Minas de Ouro Preto e do Observatório Nacional, a influência decisiva para a carreira de Oswaldo Cruz de seu estágio no Instituto Pasteur (1896) e o eco imenso aqui encontrado pelas ideias de Auguste Comte.
Diversos outros depoimentos, brasileiros e franceses, permitem recuperar parte da memória histórica coletiva sobre passagens por vezes esquecidas do processo de formação da comunidade científica no Brasil. Jacques Danon (que, apesar do nome, é brasileiro) retoma alguns “episódios significativos” sobre a colaboração com a França no setor da mineralogia. José Leite Lopes, por sua vez, após sublinhar a importância da cooperação bilateral no terreno da física, sugere a criação de uma estrutura permanente, uma espécie de “instituto de altos estudos científicos Brasil-França, sem pesos ou entraves burocráticos, dirigido pelas comissões científicas dos dois países, renovadas periodicamente, capaz de agir nas diferentes regiões do Brasil e de coordenar os programas e visitas em estrita associação com os serviços de cooperação científica e cultural das embaixadas e dos ministérios das Relações Exteriores e de Ciência e Tecnologia dos dois países” (p. 51-52).
Paulo Sérgio Pinheiro, em “Mai 1988, vingt ans après...”, ao relembrar seus anos de bolsista do governo francês e sua double allégeance a “Sciences Po” e ao espírito de maio de 1968, descreve o clima de fermentação intelectual em que viviam tantos brasileiros - exilados ou não - a partir do cadinho político e intelectual que tinha seu centro em Paris. Orlando Valverde, um dos fundadores do Conselho Nacional de Geografia do IBGE, retraça a formação do ensino universitário de geografia no Brasil, através notadamente das figuras de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, e observa que a geografia, uma “ciência alemã” em suas origens, tendo Humboldt e Ritter como fundadores, encontrou nos maîtres français seus primeiros professores na América Latina, no Brasil em particular. José Israel Vargas, finalmente, limita seu testemunho sobre a cooperação científica e tecnológica Brasil-França envolvendo pessoas e instituições de Minas Gerais, entre 1964 e 1979, experiência particularmente ativa em termos de estágios e estudos de pós-graduação junto ao Centro de Estudos Nucleares de Grenoble.
Do lado francês, merecem relevância os depoimentos de Fréderic Mauro, no que se refere ao esprit des Annales, de Charles Mérieux sobre a “biocooperação” em matéria de vacinas e virologia, de Jean Delhaye sobre os progressos da astronomia brasileira, de Jean-Pierre Halévy sobre a “arquitetura e a invenção do Brasil”, e de Denis Vialou sobre a cooperação franco-brasileira na pesquisa da pré-história. Dois outros testemunhos - o de Michel Paty, sobre a epistemologia e a história das ciências, e o de Paul Hagenmuller, sobre a pesquisa em química inorgânica - completam essa parte do livro.
A terceira parte traz, ao longo de 202 páginas, um relato pormenorizado da atuação das instituições e organismos franceses e brasileiros envolvidos no esforço de cooperação científica e tecnológica, constituindo-se num manancial precioso de referência sobre todos os instrumentos nacionais disponíveis para as atividades de cooperação nessa área. A contribuição dos quinze órgãos franceses resenhados é examinada em detalhe, muitas vezes com a lista das atividades de pesquisa científica empreendida conjuntamente com os parceiros brasileiros, dos conferencistas enviados ou dos doutorandos brasileiros. Acrescente-se ainda o relato da ação de comitês binacionais como o GRESIL - Groupe Grenoble-Brésil - ou de instituições de coordenação como o CNRS (equivalente do nosso CNPq) ou o COFECUB - Comité Français d'évaluation de la coopération universitaire avec le Brésil - que, ao abrigo de um acordo-quadro de cooperação interuniversitária, mantém um intenso programa de formação e treinamento com a CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior.
Do lado brasileiro, são apresentadas quinze instituições de pesquisa e de formação de pessoal especializado, com uma ficha técnica sobre cada uma delas (especialmente útil para visualizar a estrutura interna, a competência setorial e suas orientações de trabalho) e, onde couber, a lista de projetos realizados ou em curso e das publicações resultantes da cooperação com os respectivos parceiros franceses. Merecem referência especial os capítulos dedicados ao Centro Técnico Aeroespacial, ao CNPq (no que se refere, por exemplo, aos estudos de pré-história no Piauí e à revisão “revolucionária” da cronologia da ocupação do Novo Mundo pelo homem), à EMBRAPA, ao INPA e ao INPE (cooperação em meteorologia e tecnologia espacial).
O livro traz ainda em anexo os textos dos acordos culturais em vigor, desde o pioneiro de 1948 até o “Projeto França-Brasil” de 1985. Dois utilíssimos index, dos nomes das instituições e das personalidades citadas, completam a obra. Sem constituir propriamente um trabalho de avaliação qualitativa - de acordo com critérios “objetivos” de aferição da produção acadêmica empreendida conjuntamente e a partir de uma metodologia adequada - do esforço de cooperação científica e tecnológica engajado com a França nas últimas décadas, o trabalho dá uma visão muito clara das affinités électives entre as instituições francesas e brasileiras de pesquisa e permite, aos responsáveis políticos e acadêmicos, traçar com muito maior segurança os caminhos futuros de uma cooperação ampliada nesse setor.

 [Genebra, 04/02/1990]

[Publicado em Ciência e Cultura (São Paulo, vol. 42, n. 5/6, maio/junho 1990, pp. 405-408); Relação de Trabalhos n. 117; Relação de Publicados n. 057]

domingo, 1 de dezembro de 2013

A maior fronteira da Franca: um problema para garimpeiros e autoridades

Tensão diplomática bilateral pode ficar ainda pior
Mauro Zanatta
O Estado de S.Paulo, 1/12/2013

Os franceses já mandaram recados às autoridades brasileiras de que só aceitam discutir entraves burocráticos, como a exigência de visto de entrada na Guiana, se o governo se empenhar na ratificação, pelo Congresso, do acordo contra o garimpo ilegal na fronteira, considerado um gesto de aproximação diplomática.
O assunto é espinhoso para ambos, já que o Brasil reclama do tratamento aos seus nacionais e os guianenses pressionam a França apontando ameaça aos empregos locais e à pilhagem de seus recursos naturais, sobretudo o ouro. Os presidentes FrançoisHollande e Dilma Rousseff devem debater o tema no dia 12, em reunião em Brasília. Mas o Itamaraty rejeita a relação entre garimpo ilegal e a abertura da ponte. E diz não comentar "assuntos do Congresso".
A questão do garimpo, foco de recente tensão diplomática bilateral após a expulsão em massa de brasileiros, tem um forte componente político. Autoridades locais avaliam haver uso eleitoral da divergência pelos políticos da Guiana. A base de lançamento de foguetes de Korou, próxima à capital Caiena, é estratégica para franceses e seus parceiros. Daí, a preocupação ser ainda mais séria. Na margem brasileira, os políticos amapaenses temem perder os votos de garimpeiros se houver um arrocho excessivo sobre a extração de ouro, como prevê o acordo bilateral de mineração. Estima-se ao menos 40 mil brasileiros ilegais na Guiana, cuja população soma 280 mil pessoas.
Distante 600 km da capital, Oiapoque vive isolada, em franca decadência pós-garimpo ilegal. Ainda faltam 110 km de asfalto para a BR-156 chegar à cidade de 23 mil habitantes, que sobrevive de repasses federais. Apenas 10% da receita é arrecadação própria. Em 2010, registrou PIB per capita de R$ 11,6 mil, segundo o IBGE. "Depois do garimpo, parou mais de 70% da atividade", diz o prefeito e ex-garimpeiro Miguel do Posto (PSB). A cidade, diz ele, se arranja com o comércio com os vizinhos guianenses, cujo poder de compra, em euros, atiça seu apetite. A folha de salários da prefeitura consome R$ 1,3 milhão por mês. "Aqui, não tem agricultura nem pode caçar, pescar, tirar madeira. Nem cheiro verde se planta. Tudo é importado", afirma ao reclamar do excesso de controle das polícias e do Exército.
Autoridades locais lembram que o drama dos garimpeiros não se restringe à Guiana. Agora, uma leva de brasileiros entrou em território do Suriname, na região do Rio Maroni, para explorar ouroe abrir novos garimpos. Em breve, diz-se, será mais um problema sério para o Itamaraty e o Planalto.