Retorno ao Futuro, Parte II
Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano
XXXIII, nºs 131-132, 1990/2, pp. 57-60).
Num ensaio de reflexão prospectiva que redigi em junho de
1988, e intitulado "Retorno ao Futuro" (Revista Brasileira de
Política Internacional, XXXI, 1988/2, 63-75), eu tentava algumas modestas
previsões sobre a evolução da ordem internacional em direção do horizonte
2000. Embalado pelos recentes acordos
sobre mísseis intermediários na Europa e pelos progressos alcançados na
liberalização econômica das sociedades socialistas - um dos capítulos era mesmo intitulado
"A Transição do Socialismo ao Capitalismo" e outro "O Fim da
Guerra Fria"-, eu arriscava algumas
previsões otimistas sobre o desenvolvimento do processo de détente na Europa e
seu impacto no jogo geopolítico global.
Depois de retornar ao passado da "Europa do futuro", meu ensaio se terminava com estes dois
parágrafos:
"A dimensão Leste-Oeste continuará, é verdade, a
desempenhar um papel relevante no jogo político-diplomático do continente
europeu no futuro imediato. Mas, a
delimitação dos interesses em causa obedecerá cada vez menos a critérios de
natureza ideológico-militar para se concentrar nos imperativos da cooperação
econômica e do intercâmbio comercial. A
Europa oriental, liberando-se da
ideologia que prometia enterrar o capitalismo, abre campo a que a Europa ocidental
possa por sua vez libertar-se do
fantasma de uma defesa superdimensionada.
"Os contornos da nova realidade são relativamente
previsíveis: um grande espaço mittel- europeu no qual em lugar de manobras de
divisões adversárias se observará a circulação de mercadorias e de
serviços. O cenário pode parecer róseo,
mas o otimismo em direção ao futuro parece ser uma mania daqueles que costumam
lidar com os desastres do passado."
Um ano e meio depois de ter apresentado esse ensaio num
seminário do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa,
observo, orgulhosamente, que a maior parte de meus exercícios de
"futurologia" se mostrou razoavelmente correta e mesmo saudavelmente
antecipatória. Apenas para referir-me às
principais questões abordadas, permito-me relembrar que as grandes tendências
então detectadas (e muitas já em pleno desenvolvimento) referiam-se, entre
outros, aos seguintes problemas: declínio imperial e esfarelamento do
condomínio bipolar; preeminência estratégica e econômica do saber tecnológico,
dissociado da simples afirmação do poderio militar; o abandono das últimas ilusões econômicas do
"socialismo realmente existente" e a introdução das forças de mercado
nas economias de planificação centralizada; o esmaecimento do conflito
ideológico global e a consequente superação histórica do conflito Leste-Oeste.
Nenhum desses elementos de minha análise prospectiva foi desde
então desmentido pelos fatos, mas devo confessar que em relação a um único ponto,
a marcha da democracia no Leste Europeu, minhas antecipações foram
terrivelmente conservadoras. Tendo
começado, em meados de 1989, a transformar aquele pequeno ensaio em projeto de
livro, logo constatei, para minha surpresa, que as contínuas manifestações dos
povos da Europa oriental iriam impedir-me de
dar uma redação definitiva ao capítulo sobre a transformação
"capitalista" daquela região.
Desde então, ainda não consegui retomar da pena (ou melhor, abrir
novamente esse "file" em meu computador) para "encerrar" a
história do socialismo na URSS e no Leste Europeu.
Ainda bem. Naquele
ensaio, eu comparava a abertura política da União Soviética a uma espécie de
transição entre a monarquia absoluta e o despotismo esclarecido, no quadro de
um "ancien régime" iluminado pelos ares da "glasnost". Em outro "retorno ao futuro" do
regime soviético, eu traçava um paralelo histórico entre a revolução da
"perestroika" e a Inovação Meiji do Japão, no século passado, quando
a elite dominante abriu-se a uma maior ocidentalização do país, no sentido da
abolição de certos privilégios "feudais" (que são os da
"nomenklatura"), na constituição de um "parlamentarismo de
fachada" e na incorporação acelerada das conquistas estrangeiras em ciência
e tecnologia.
Continuando meu passeio comparatista pelo "passado"
da futura União Soviética, eu detectava uma transformação
"bismarckiana" nas instituições políticas, sociais e econômicas
daquela potência imperial, onde o objetivo da nova Revolution von oben
("revolução pelo alto") conduzida pelo Kaiser Gorbachev seria o de
modernizar o País sem trazer prejuízo às instituições tradicionais (leia-se o
Partido Comunista) e sem alijar do comando político aqueles que ocupam as
alavancas de poder. Obviamente, eu não
deixava de chamar a atenção para essa contradição fundamental do novo
revisionismo socialista: "a
solução para a maior parte dos problemas estruturais das sociedades socialistas
passa por uma reforma radical do sistema de organização econômica, mas essa
transformação teria de ser operada em detrimento do monopólio político
partidário. Mesmo os sistemas que
avançaram mais longe no caminho das
reformas econômicas, nomeadamente Hungria e China (estávamos apenas em meados
de 1988, cabe lembrar), não ousaram ainda demolir a exclusividade da
representação política atribuida ao Partido Comunista".
Felizmente, num caso, e tragicamente, em outro, a grande
carroça da História conduziu a transformação naqueles países aos desenlaces que
se conhece. Em todo caso eu operava uma
distinção entre processos diferenciados de transição política, em função da
sociedade envolvida:
"Nos países dotados de maior rigidez estrutural nas
instituições de representação, ou cuja estrutura social é marcadamente
fragmentária e heterogênea, o processo de transição deverá assumir contornos
conflitivos. É o caso , por exemplo, da
maior parte dos países balcânicos, da China e da própria União Soviética. As
crises de legitimidade política reforçarão, em consequência, a natureza
autoritária do processo de reforma política, de acordo aliás com o modelo de
Revolution von oben". Não creio ter sido até agora desmentido nessas
previsões ou naquelas formuladas acima sobre a União Soviética: em todo caso, a
História ainda está em marcha.
Já para países dotados de uma estrutura social mais homogênea,
eu previa um avanço mais rápido nas mudanças institucionais: "Nos países caracterizados pela
existência de uma sociedade civil historicamente independente do Estado (caso
específico da Polônia e da Hungria), a marcha para a democracia política será
provavelmente mais rápida". Até aí,
tudo bem: tampouco fui desmentido por Clio, essa tão complacente donzela.
Mas, naquelas "cenas de futurologia explícita" sobre
o mundo socialista, em seu conjunto, eu falhei miseravelmente em prever o ritmo
mais "empolgado" que iria tomar o "fim da história" no
Leste Europeu: "A tendência deverá
ser marcada pelo lento desenvolvimento do pluralismo partidário e sindical e pela
introdução das regras mais elementares da competitividade eleitoral na esfera
das instituições políticas de representação popular. O monopólio do Partido Comunista será, assim,
erodido gradualmente, num processo de transição tutelada e administrada".
Lamentavelmente, a tentativa de traçar linhas evolutivas
relativamente homogêneas para o conjunto das sociedades socialistas, levou
minha análise a deixar-se influenciar excessivamente pela rigidez burocrática
da transformação em curso na URSS, esquecendo-me do peso - e da permanência
estrutural - da maior "invenção societal"
da época moderna: o Estado-nação. O
regime político pode ser transitório, mas a comunidade de língua e de
tradições, bem como a existência de uma rica história nacional, não deixam de
manifestar-se de forma latente e continuada na vida dos povos, a despeito mesmo
de um sistema político e de uma organização econômica e social brutalmente
impostos de cima para baixo. Reconhecendo o erro e proclamando a meus leitores
o mea culpa, só posso, assim,
alegrar-me com esse fracasso da "teoria" e com essa tremenda
aceleração da "prática": aliás, no Leste Europeu felizmente, a
História já não corre simplesmente, ela galopa.
A meu favor, tenho o argumento de que os povos da Europa
oriental não teriam embarcado no "assalto ao céu" do poder político
se não tivessem certeza de que o caminho para a fortaleza do socialismo
burocrático não estaria engarrafado por alguns tanques soviéticos. Em meados de 1988, a promessa, explícita ou
implícita, da "não-intervenção" ainda não tinha sido feita e a
chamada "doutrina Brejnev" ainda não tinha sido formalmente
enterrada. Mas, uma vez desimpedido o caminho, deve-se reconhecer que a rapidez
das mudanças foi alucinante, mesmo para os "videntes" profissionais.
Para um futurólogo aprendiz como eu, errar tão simplesmente a leitura do
velocímetro do carro de Cronos, não deixa de ser um consolo.
Em todo caso, nem tudo são espinhos na atividade de um
"prospector" do futuro. Minha
análise sobre o difícil processo de transição econômica das economias
pós-socialistas, por exemplo, não corre o risco de uma esclerose precoce. Abordando a séria questão do mecanismo de
formação de preços, pedra angular de todo sistema econômico
"racional", eu afirmava:
"A opção pelo mercado, que aparece como inevitável na
transição do socialismo ao "capitalismo" empreendida sub-repticiamente
[agora de forma aberta] pelas economias socialistas, implica igualmente aceitar
todas as suas distorções e efeitos desestabilizadores sobre as unidades
produtivas e sobre a distribuição de renda ao nível dos consumidores. Quando o sistema de preços de mercado guiar
toda a economia e tiver sido abolido o "pecado original" ligado à
apropriação de lucros privados, o socialismo "realmente existente" se
terá desfeito de seus últimos mitos econômicos e poderá enfim penetrar no
purgatório do sistema capitalista".
Os países do "pós-socialismo" ainda não tiveram
tempo de organizar, sobre bases mais racionais, um sistema de "exploração
do homem pelo homem". Em todo caso,
eles são benvindos à realidade.
Paulo
Roberto de Almeida, PhD pela Universidade de Bruxelas, é cientista político e estudioso das relações
internacionais.
180. “Retorno ao Futuro, Parte II”, Genebra, 10 janeiro 1990,
4 p. Artigo sobre tendências recentes no cenário internacional, atualizando o
ensaio publicado anteriormente sobre o mesmo tema (Originais n. 164). Publicado
na Revista Brasileira de Política
Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXIII, n. 131-132, 1990/2, p. 57-60).
Relação de Trabalhos Publicados n. 061.