Um trabalho que ainda não havia sido divulgado publicamente:
4354. “‘A Guerra Perpétua’, segundo Putin, ou o projeto de uma ‘nova ordem mundial’, como vontade e como representação”, Brasília, 7 abril 2023, 3 p. Publicado em versão reduzida na revista Crusoé (14/04/2023; link: https://oantagonista.uol.com.br/mundo/paulo-roberto-de-almeida-na-crusoe-guerra-perpetua-de-putin/). Relação de Publicados n. 1504.
‘A Guerra Perpétua’, segundo Putin, ou o projeto de uma ‘nova ordem mundial’, como vontade e como representação
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com
Kant era um idealista-realista, como se sabe: numa aparente resposta a uma proposta anterior do Abade Saint Pierre (Projet de paix perpétuelle, de 1713), que já pretendia uma liga de estados e uma corte internacional, ele estabeleceu, em 1795, que a paz perpétua (uma coisa “para si”) dependeria da existência, de maneira geral e irrestrita, de regimes constitucionais (a “coisa em si”), da liberdade de pensamento e do respeito à autonomia das federações. As monarquias absolutistas, então realmente existentes no final do século XVIII, assim como a própria “vontade” de Napoleão, com sua tentativa de “paz imperial” de âmbito europeu no início do século XIX, demonstraram amplamente que a “paz perpétua” não estava sequer próxima de ser concebida, menos ainda realizada.
Não obstante, o Congresso de Viena de 1815, depois que o imperador francês foi finalmente derrotado em Waterloo — foi a primeira e última vez que tropas russas andaram por Paris —, tentou o que parecia ser uma “ordem mundial”, ainda que oligárquica, já que a anterior, a paz de Westfalia (1648), não tinha confirmado suas grandes expectativas. A “ordem quase mundial” de Viena, seja com Santa Aliança ou regimes constitucionais, manteve o continente europeu mais ou menos em paz, durante praticamente um século, mesmo com uma primeira guerra da Crimeia no meio do caminho.
Uma nova tentativa de “ordem mundial”, a da Liga das Nações, concertada nas negociações de paz de Paris, no imediato seguimento da Grande Guerra (1914-1918), de natureza igualmente oligárquica, tampouco foi capaz de controlar a “vontade” de novas potências expansionistas, empenhadas em aumentar sua “representação” na cartografia da geopolítica então existente: o projeto mussolinista de um novo império romano, a brutal imposição do Lebensraum hitlerista e da “solução final” ao “problema” judeu, e o esforço dos fascistas japoneses de superar o colonialismo europeu na Ásia Pacífico pelo seu próprio império brutal, sobretudo na China. A despeito de um tratado para evitar novos conflitos militares pela via da arbitragem e mediação – o Pacto Briand-Kellog de 1928 –, não foi possível evitar a invasão da Manchúria pelo Japão em 1931, e depois a tentativa de conquista do resto da China, em 1937, a invasão da Etiópia (o único país africano independente e membro da Liga das Nações) pela Itália fascista em 1935, assim como a anexação da Áustria e da Tchecoslováquia por Hitler em 1938, seguida da invasão da Polônia por Hitler em 1939, num acerto com Stalin de esquartejamento do país, o que deu início à mais terrível guerra global de toda a humanidade. Stalin aproveitou, em 1940, para abocanhar os três países bálticos em 1940 – independentes desde 1919 –, assim como para tentar reincorporar a Finlândia ao antigo espaço do império czarista, ampliado enormemente na nova ordem bolchevique; a Finlândia resistiu, e permaneceu neutra pelos 80 anos seguintes.
Mas, um século antes do início das complexas negociações entre as potências aliadas em torno de uma “nova ordem mundial”, em Dumbarton Oaks, em Bretton Woods, em Ialta e em San Francisco, um jovem filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, empreendeu de corrigir o idealismo transcendental de Kant ao propor uma nova interpretação do mundo: a “coisa em si” já não seria mais a encarnação da razão pura, mas o resultado da vontade humana, como princípio fundamental da natureza, uma força cega, incontrolável que move o mundo. Ora, ninguém encarna melhor, atualmente, essa vontade cega de dominar o mundo do que o neoczar russo, Vladimir Putin, embora sua “representação do mundo” corresponda bem mais a uma “guerra perpétua” do que propriamente a um projeto consensual de paz durável.
Putin está muito distante, mais exatamente do lado oposto, ao de Kant, cujo projeto de paz perpétua proclamava, entre outros requisitos, que “nenhum Estado independente, pequeno ou grande, pode ser adquirido por um outro Estado por herança, troca, compra ou doação”, ou ainda, que “nenhum Estado deve imiscuir-se com emprego de força na constituição e no governo de um outro Estado” (2008, p. 15 e 18). Para Kant, a constituição civil nos Estados deve ser republicana, isto é, constitucional. Para Putin, isso é mero detalhe, com o qual ele não está nem um pouco preocupado. A “representação” que ele concebe para cada Estado deve ser uma que se amolde à vontade dos mais poderosos dentre eles, em total contradição com o federalismo de Estados livres de Kant, regidos pelo Direito internacional.
Cada nova ordem internacional só foi estabelecida ao cabo de terríveis guerras entre poderes adversários, seja a guerra de Trinta Anos que precedeu à paz de Westfália, as guerras napoleônicas que resultaram no Congresso de Viena, a Grande Guerra que abriu o caminho à frustrada Liga das Nações, assim como o sistema onusiano, após a segunda guerra de Trinta Anos. O chanceler russo Lavrov acaba de anunciar, o que é certamente a “vontade” de Putin, que a paz na Ucrânia só se dará com uma “nova ordem mundial”. O que o neoczar russo propõe, portanto, é uma “guerra perpétua”, até que a sua “representação” dessa “nova ordem”, uma paz imperial, venha a realizar-se como uma coisa em si e para si (com uma pequena ajuda de seu amigo Xi Jinping). Nenhum deles entrou em detalhes sobre como seria instalado ou como funcionaria essa nova ordem, diferente da atual, que emergiu desde Bretton Woods, na parte econômica, em 1944, e que se prolongou nas conferências de Ialta e de Potsdam, em 1945, que conformaram uma nova ordem oligárquica, baseada no direito absoluto de veto sobre qualquer decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, por parte das cinco grandes potências garantidoras da paz e da segurança internacional, depois de derrotarem os regimes fascistas que provocaram a maior mortandade já vista na história.
A humanidade não tem necessidade de uma nova paz imperial, baseada na coerção de Estados menores, e sim do pleno cumprimento dos dispositivos da Carta da ONU, assim como do respeito às normas mais elementares do Direito Internacional, princípios e valores que vêm sendo acatados pela diplomacia brasileira desde o século XIX, e mais enfaticamente durante todo o século XX, a partir do Barão do Rio Branco, de Rui Barbosa, de Oswaldo Aranha, de Afonso Arinos e de San Tiago Dantas, entre outros próceres de nossa política externa. Essa arquitetura da diplomacia brasileira começou a ruir em 2014, quando a presidente Dilma disse que não iria se pronunciar sobre a invasão da Crimeia, por se tratar de um “assunto interno” à Ucrânia, como se a anexação de parte do território de um Estado soberano pudesse ser assim classificada. Ela parece perto de ruir mais um pouco, atualmente.
Já não estamos mais no idealismo racionalista de um Kant, ou na vontade metafísica de Schopenhauer, e sim na expressão mais crua do despotismo oriental de um Putin e de um Xi Jinping. Se a atual administração diplomática do Brasil pensa que uma nova ordem mundial pode ser criada com base nesse tipo de arranjo, mais conforme à violência primária dos impérios do que ao federalismo dos povos livres e no princípio da hospitalidade universal do mestre de Konigsberg, isto significa que estaríamos aderindo a concepções que já tinham ficado caducas desde o Aufklärung, o Iluminismo do século XVIII. Um tremendo retrocesso!
Referências bibliográficas:
Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe, par l’abbé Castel de Saint-Pierre. Utrecht: A. Schouten, 1713; disponível na coleção Gallica, da Biblioteca Nacional da França: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k105087z.
Immanuel Kant. Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf (A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico). Leipzig: Insel Verlag, 1795; resumo das principais ideias: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Paz_Perpetua:_Um_Projeto_Filosofico.
_________ . À paz perpétua. Porto Alegre: LPM, 2008; tradução e prefácio de Marco Zingano.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4354: 7 abril 2023, 3 p. Relação de Publicados n. 1504.