Em entrevista exclusiva, novo reitor da UFRJ,
Roberto Leher, aponta os impactos da lógica mercantilizada sobre a
educação brasileira e aponta que como grupos financeiros tentam dominar a
educação pública.
Brasil De Fato, 01/07/2015
Por Luiz Felipe Abulquerque
De São Paulo (SP)
Um
grande negócio. É assim que o novo reitor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, enxerga o novo momento da educação
brasileira.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor titular
da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UFRJ traça um panorama do atual estágio da educação no Brasil, e as
conclusões não são nada animadoras.
Para Leher, que tomará posse
nesta sexta-feira (3), os recentes processos de fusões entre grandes
grupos educacionais, como Kroton e Anhanguera, e a criação de movimentos
como o
Todos pela Educação representam a síntese deste processo.
No
primeiro caso, ocorre uma inversão de valores, em que o primordial não é
mais a educação em si, mas a busca de lucros exorbitantes por meio de
fundos de investimentos. No segundo, a defesa de um projeto de educação
básica em que a classe dominante define forma e conteúdo do processo
formativo de crianças e jovens brasileiros.
O movimento
Todos Pela Educação é
uma
articulação entre grandes grupos econômicos como bancos (Itaú),
empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração (Vale) e os meios de
comunicação que procuram ditar os rumos da educação no Brasil.
Para
o professor, o movimento se organiza numa espécie de Partido da classe
dominante, ao pensarem um projeto de educação para o país, organizarem
frações de classe em torno desta proposta e criar estratégias de difusão
de seu projeto para a sociedade.
“Os setores dominantes se
organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros serão
formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe
que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação, de
modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital
humano”, observa o professor.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato - Muitos setores denunciam a atual mercantilização da educação brasileira. O que está acontecendo neste setor?
Roberto Leher -
De fato há mudanças no que diz respeito a mercantilização da educação,
diferente do que acontecia até 2006 no Brasil. Os novos organizadores
dessa mercantilização são organizações de natureza financeira,
particularmente os chamados fundos de investimento.
Como o
próprio nome diz, os fundos de investimentos são fundos constituído por
vários investidores, grande parte estrangeiro, como fundos de pensão,
trabalhadores da GM, bancos, etc, que apostam num determinado fundo, e
esse fundo vai fazer negócios em diversos países.
| |
Crédito: Reprodução | |
Em
geral, os fundos fazem fusões, como é o caso da Sadia e Perdigão no
Brasil. Mas é o mesmo grupo que também adquiri faculdades e organizações
educacionais com o objetivo de constituir monopólios.
Esse
processo levou a Kroton e a Anhanguera - fundo Advent e Pátria - a
constituírem, no Brasil, a maior empresa educacional do mundo, um
conglomerado que hoje já possui mais de 1,2 milhão de estudantes, mais
do que todas as universidades federais juntas.
O que muda com essa nova forma de mercantilização da educação?
O
negócio do investidor não é propriamente a educação, é o fundo. Ele
investiu no fundo e quer resposta do fundo, que cria mecanismos para que
os lucros dos setores que eles estão fazendo as aquisições e fusões
sejam lucros exorbitantes. É isso que valoriza o fundo.
A
racionalidade com que é organizada as universidades sob controle dos
fundos é uma racionalidade das finanças. São gestores de finanças, não
são administrados educacionais. São operadores do mercado financeiro que
estão controlando as organizações educacionais.
Toda parte
educacional responde uma lógica dos grupos econômicos, e por isso eles
fazem articulações com editoras, com softwares, hardwares, computadores,
tablets; é um conglomerado que vai redefinindo a formação de milhões de
jovens.
No caso do Brasil, cinco fundos têm atualmente cerca de
40% das matrículas da educação superior brasileira, e três fundos têm
quase 60% da educação à distância no Brasil.
Quais os interesses dessas grandes corporações para além do econômico?
A principal iniciativa dos setores dominantes na educação básica brasileira é uma coalizão de grupos econômicos chamado
Todos pela Educação,
organizado pelo setor financeiro, agronegócio, mineral, meios de
comunicação, que defendem um projeto de educação de classe, obviamente
interpretando os anseios dos setores dominantes para o conjunto da
sociedade brasileira.
Em outras palavras, os setores dominantes
se organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros
serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como
classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de
formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em
capital humano.
Em última instância, é com isso que eles estão
preocupados: em como fazer com que a juventude seja educada na
perspectiva de serem um fator da produção. Essa é a racionalidade geral,
e isso tem várias mediações pedagógicas.
A aparência é de que
estão preocupados com a alfabetização, com a escolarização, com o
aprendizado, etc. E de fato estão, mas dentro dessa matriz de classe, no
sentido de educar a juventude para o que seria esse novo espírito do
capitalismo, de modo que não vislumbrem outra maneira de vida que não
aquela em que serão mercadorias, apenas força de trabalho.
De que maneira eles interferem nas políticas educacionais do Estado?
Como sociedade civil, os setores dominantes buscam interferir nas políticas de Estado. O
Todos pela Educação
conseguiu difundir a sua proposta educativa para o Estado, inicialmente
por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) - que aliás foi
homenageado com o nome
Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, em referência ao movimento. Com isso definiram em grandes linhas o que seria o PNE que está vigente.
Articulam
por meio de leis, mas também da adesão de secretários municipais e
estaduais às suas metas, aos seus objetivos. Articulam com o Estado, que
cria programas, como o programa de ações articuladas, em que a
prefeitura, quando apresenta um projeto para o desenvolvimento da
educação municipal, tem que implicitamente aderir às metas do movimento
Todos pela Educação.
Temos
um complexo muito sofisticado que interage as frações burguesas
dominantes, as políticas de Estado e os meios operativos do Estado para
viabilizar esta agenda educacional.
Mas como se dá isso na prática?
Quando
um município faz um programa de educação para a sua região, ele já deve
estar organizado com base no princípio de que existe uma idade certa
para educação, que os conteúdos não devem se referenciar nos
conhecimentos, mas sim no que eles chamam de competências, que o
professor não deve escapar deste currículo mínimo que eles estão
desenvolvendo por meio de uma coerção da avaliação.
A escola que
não consegue bons índices no Idep [Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica] é penalizada, desmoralizada, sai nos jornais, e isso cria um
constrangimento que chega ao cotidiano da sala de aula, e as prefeituras
pressionadas por esses índices acabam sucumbidos às fórmulas que o
capital oferece. A mais importante delas é comprar sistemas de ensino,
apostilas, que são fornecidos pelas próprias corporações.
O
professor está em sala de aula, recebe apostilas, exames padronizadas
que foram feitos pela corporação, e na prática, ao invés do professor
desenvolver um papel intelectual, criador, ele tem que ser muito mais um
aplicador das cartilhas, um entregador de conhecimento, e isso
obviamente esvazia o papel do professor que tem consequências diretas
com o processo de formação.
A formação esperada do educador não é
uma formação enquanto intelectual, mas sim como alguém que sabe
desenvolver técnicas para aplicar aquelas pacotes que as corporações
preparam.
E há resistências a isso?
Existe
um complexo de situações onde as resistências, as tensões são muito
grandes, o que traz infelicidade aos professores e aos estudantes, mas
tudo isso é muito difuso. As resistências acontecem na forma de lutas
sindicais, quando fazem greve criticando a chamada “meritocracia”, os
sistemas de avaliação.
Aparecem aqui e ali, mas é forçoso
reconhecer que existe um complexo de controle sobre as escolas que
restringem muito a margem de manobra dos trabalhadores da educação para
desenvolverem um projeto pedagógico autônomo e crítico.
Essa
situação é agravada quando a própria direção da escola, que deveria
pensar como a escola se auto governa, vem sendo ressignificada como um
papel de gestão. O diretor e os coordenadores são pensados como gestores
na lógica de uma empresa, que deve cumprir metas, fiscalizar o
cumprimento delas e tentar atingir essas metas de todas as formas.
Temos
uma mudança de referências quando a própria equipe de coordenação da
escola se torna uma equipe de gestores. No documento Pátria Educadora há
uma possibilidade de punição dos professores que não cumprirem as
metas.
Por sinal, o Pátria Educadora é um dos programas carro chefe do governo federal. Como você avalia este documento?
Não
casualmente, esse documento foi elaborado pela Secretaria de Assuntos
Estratégicos (SAE), atualmente dirigido pelo ministro Mangabeira Unger.
Ele parte de um diagnóstico de que o modelo de desenvolvimento baseado
em commodities se esgotou com a crise mundial, com seus preços
despencando depois daquele período de ouro entre 2004 e 2009.
| |
Crédito: Antônio Cruz/Agência Brasil | |
Com
a desvalorização dessas commodities, Mangabeira chama atenção para o
fato de que o Brasil deveria buscar outra forma de inserção na economia
mundial que não fosse apenas de commodities.
E a minha hipótese é
que eles estão sinalizando nesse documento que o Brasil deveria ser uma
espécie de plataforma de exportação, assim como já existe na fronteira
norte do México, em alguns países asiáticos - o modelo chinês foi isso
nos anos 90, de ser um local em que a força de trabalho é muito
explorada, recebe um treinamento específico que permite uma exploração
muito grande, e esses países entram em circuitos de produção industrial
de maneira subalterna, explorando o que seriam sua vantagens
comparativas: baixo custo de energia, da força de trabalho, baixa
regulamentação ambiental, e isso daria vantagens competitivas novamente
ao país.
O drama é que a concepção do Pátria Educadora tem como
correspondência a ideia de que a formação da maior parte da força de
trabalho no Brasil deve ser por um trabalho mais simples, e isso tem
consequências pedagógicas muito grande.
Se é para formar para o
trabalho simples, a maior parte das escolas podem ser instituições
estruturadas para a formação de um trabalho de menor complexidade, que
seria desdobrados em processos de formação técnica de cursos de curta
duração, cujo exemplo mais conhecido é o Pronatec, em que grande parte
dos cursos são aligeirados para a formação de uma força de trabalho
simples - tanto aquela que já estará inserida no mercado quanto aquela
que constitui o que podemos denominar de um exército industrial de
reserva.
O documento Pátria Educadora altera a racionalidade da
organização da escola quando vislumbra escolas que vão formar forças de
trabalho de menor complexidade. É importante destacar que no documento
encontramos uma formulação muito perigosa de enormes consequências para o
futuro da educação brasileira, que é a referência que o Mangabeira faz
da adoção de um modelo tipo SUS (Sistema Único de Saúde).
O que é isso?
O
modelo SUS teve como objetivo assegurar o direito ao atendimento à
saúde de maneira universal, e isso poderia ser feito tanto pelo órgãos
públicos quanto pelas entidades privadas.
Quando Mangabeira
reivindica o modelo SUS, claramente está sinalizando que a formação do
conjunto da classe trabalhadora deveria ser feita em nome de uma suposta
democratização, realizada tanto pelas instituições públicas quanto
pelas organizações privadas.
Isso é congruente com o PNE aprovado
em 2014, ao estabelecer que a verba pública é aquela utilizada nas
instituições públicas, mas também em todas as parcerias
público-privadas, como o FIES, PROUNI, Ciências Sem Fronteira, PRONATEC,
Pronacampo, sistema S, tudo isso entra como recurso público.
| |
Ministro Mangabeira Unger | Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil | |
A
rigor, estamos diante de uma política que pode indiferenciar as
instituições públicas e privadas em detrimento do público, já que as
corporações também se acercam da educação básica.
Em setembro acontecerá o 2° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (Enera), em Brasília. Como o Enera se insere nesta conjuntura?
Tenho
uma expectativa muito positiva em relação ao segundo Enera. No primeiro
Enera tivemos a constituição de outra perspectiva pedagógica para a
educação brasileira, que foi a Educação do Campo, uma conceituação do
que seria uma educação pública voltada para o campo, mas com um
horizonte de formação humana que ultrapassa o campo.
Foi
certamente uma proposta que promoveu sínteses brilhantes entre uma
perspectiva crítica que vem do campo marxista, da ideia da escola
unitária, do trabalho, ao compreender que o trabalho deveria ser um
elemento simbólico, imaginativo, capaz de nos constituir como seres
humanos, e que portanto a escola é o lugar da cultura, da arte, da
ciência, da tecnologia, e não uma instituição livresca. É uma
instituição que tem interação com o mundo, com a vida, com os processos
de trabalho, com a produção real da cultura em diversos espaços, como
pensar no que significa a agricultura no Brasil.
Foi uma proposta
pedagógica que promoveu sínteses incorporando pensamento critico
marxista, tradição latino-americana de educação popular, particularmente
com Paulo Freire, e criou bases para um pensamento pedagógico
socialista.
O segundo Enera, a meu ver, está desafiado pela
conjuntura a fazer um balanço do que foi essa mercantilização e de como o
capital está tentando se apropriar do conjunto da educação básica.
Ao
fazer essa reflexão, certamente o Enera vai ajudar a criar bases para
uma perspectiva de educação pública unitária capaz de contrapor a
educação frente à lógica de movimentos empresariais como o
Todos pela Educação.
Pode
haver incorporações de elementos novos na nossa reflexão sobre a
pedagogia socialista que respondam desafios da ofensiva do capital, mas
sobretudo respondam os anseios que estão pulsando em todo o país em
torno da educação pública.
Como as últimas greves na educação?
Podemos
problematizar a fragmentação das lutas pela educação, o fato de que
muitas vezes são lutas econômicas e corporativas, que estão vinculadas
as políticas municipais e estaduais, mas não tenho dúvidas de que essas
lutas que estão pulsando no país estão enfrentando aspectos dessa
pedagogia do capital, criticando a meritocracia, a racionalidade das
competências e dos sistemas centralizados de avaliação, o uso de
cartilhas.
Temos críticas reais a essa lógica de controle que o
capital está buscando sobre a educação básica, mas precisamos
sistematizar isso com outros fundamentos pedagógicos, e aprofundando a
experiência que foi construída a partir do primeiro Enera.
No
segundo Enera acredito que novas dimensões para essa pedagogia
socialista vão ser esboçados, e não como o resultado de um processo em
que os especialistas de educação do MST vão se reunir e pensar o que
seria essa agenda.
Ao contrário, como resultado de uma
articulação de movimentos que estão fazendo educação pública e estão
buscando uma educação criativa, que estão fazendo as lutas de
resistências com as greves, mobilizações, com a participação de
estudantes.
Esta riqueza de produções que estão em circulação nas
lutas em defesa da educação pública que podem criar uma sistematização
maior. Creia condições para que possamos ampliar esta aliança entre
experiências da luta urbana com as que vieram do campo, produzindo novas
sínteses e novas possibilidades para que a classe trabalhadora tenha
sua própria agenda para o futuro da educação pública.
É um
processo longo e exigirá um esforço organizativo e intelectual de enorme
envergadura. Temos que ter uma produção pedagógica mais sistematizadas,
mais profunda, para criarmos a base desse pensamento pedagógico
crítico, que assegure uma formação integral, mas uma educação que recusa
a divisão dos seres humanos em dois grupos: um que pensa e mando, outro
que executa e obedece.
Essas bases para uma proposta socialista
estão sendo gestadas nas lutas, mas com o ENERA podemos ganhar um
momento de qualidade no terreno da elaboração, articulação e organização
em defesa desse projeto de novo tipo.