Arnaldo Godoy, o imperador dos livros, de quem eu tenho uma pouco secreta inveja
Paulo Roberto de Almeida
Um dia depois que eu escrevi um texto meio simplório sobre a passagem do tempo, a propósito de eu já ter contornado o Cabo da Boa Esperança (antes era o das Tormentas, como foi o meu, durante a ditadura militar), que postei neste espaço:
- "Três quartos de século, três gerações"- https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/11/tres-quartos-de-seculo-tres-geracoes.html -
meu querido amigo Arnaldo Godoy me distinguiu charmosamente me "acusando" de ser um polimata, ou seja, alguém com sete instrumentos.
Mal sabe ele que eu o invejo secretamente, por ser capaz, há décadas, de compor um artigo-resenha altamente inspirado, sobre os mais diversos livros, impiedosamente todos os domingos no Conjur, uma seção das mais saborosas intelectualmente, e que leva o modesto título de "Embargos Culturais". Minha inveja decorre do fato de eu sempre querer ter sido basicamente um resenhista de livros, e ser publicado em algum veículos de grande divulgação.
Mas atenção, eu não me dedicaria a livros do momento, esses lançamentos que recebem maciça propaganda em torno do autor. Não! Eu gostaria de fazer resenhas sobre livros antigos, de preferência de mais de 100 anos atrás, sobre economia, sobre política, sobre temas culturais. Nunca consegui, a não ser alguns petardos episódicos em torno do conceito de "Clássicos Revisitados": mas consegui fazer um Marx (Um novo Manifesto Comunista), um Maquiavel (O Moderno Príncipe), um Toqueville (De la Démocratie au Brésil), um pouco de Sun Tzu (para diplomatas) e de Benjamin Constant (De la Diplomatie des Anciens et des Modernes), e talvez alguns outros projetos inacabados.
Arnaldo Godoy não apenas fez centenas de embargos culturais sobre livros interessantíssimos – inclusive de autores já mortos –, mas também empreendeu uma coleção que ele dirigiu sobre literatura para o Direito, ou seja, grandes obras de nossa literatura – Machado, Lima Barreto e outros – lidos pela ótica dos problemas jurídicos. De fato, como ele disse no seu "praise" a mim oferecido, estivemos juntos em várias bancas de mestrado ou doutorado, sempre com enorme prazer intelectual para mim. E, mais importante, ele forneceu a matéria prima para que eu aceitasse a cadeira que tem Tobias Barreto como patrono para minha posse no Instituto Histórico e Geográfico do DF: seu livro sobre o grande jurista "teuto"-sergipano é um primor de pesquisa e de revelações sobre um dos mais importantes filósofos do direito e crítico social do Brasil. Não sei dizer se minha "retaliação" foi à altura da dele, quando o acolhi no IHG-DF, na qual ele tomou posse com uma brilhante dissertação sobre o "dono" da sua cadeira, o jurista Clovis Beviláqua. Eu apenas o apresentei como grande intelectual, num breve discurso que fica muito abaixo, em decibeis intelectuais, à homenagem que ele me prestou no dia de ontem, por este texto que também postei neste meu quilombo de resistência intelectual:
- "A Paulo Roberto de Almeida, ao ensejo de seus 75 anos"
https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/11/arnaldo-godoy-me-comble-dhonneurs-mais.html -
Uma das passagens de que mais gostei foi esta:
"Entre os incontáveis textos de Paulo Roberto tenho comigo aqui uma introdução a uma coletânea de estudos sobre Thomas Sowell, intelectual norte- americano que se impôs como um aniquilador de falácias ideológicas. Em nosso ambiente cultural, no mais das vezes tão disperso e retraído, Paulo Roberto de Almeida protagoniza papel idêntico, ainda que o faça de modo reservado, introvertido."
De fato, entre os grandes intelectuais que eu prezo, ilimitadamente, está Thomas Sowell, talvez pelo fato dele ter sido, como eu, um marxista na juventude, inclusive na liberal Universidade de Chicago e ter realizado depois uma das mais belas conversões à inteligência eclética que conheço na academia americana (e mundial). Na minha juventude marxista até escolhi estudar numa universidade socialista, a 17 de Novembro, em Praga, mas saí de lá em menos de três meses ao conhecer o socialismo por dentro. Nunca consegui o brilhantismo de Thomas Sowel, mas eu o chamei de "intelectual completo" na introdução a suas obras que publiquei no livro de Dennys Garcia Xavier (Breves Lições), Thomas Sowell e a aniquilação de falácias ideológicas (São Paulo: LVM, 2019).
Thomas Sowell tem um livro sobre o marxismo – eu tenho vários também – que eu considero ser superior ao de Raymond Aron, este mais filosófico, aquele mais econômico, que ainda combina mais com o meu materialismo histórico.
Mas Arnaldo Godoy toca em outro ponto fraco meu, talvez forte, que é o amor pelos livros. Ele escreveu o seguinte (mas leiam a homenagem completa, no link acima):
- Paulo Roberto de Almeida é, na essência, um homem simples. É um homem de livros e de ideias. Creio que se pudesse escolher, Paulo passaria a vida transitando dos balcões das livrarias, para a sombra das prateleiras dos sebos, a buquinar alguma raridade. Ou dirigindo, pois foi no volante que, com sua inseparável Carmen, andou boa parte desse mundo. -
De fato, ele tem toda a razão, e essa a razão de minha secreta inveja. Além de toda a sua imensa produção de artigos, ensaios e livros –, Arnaldo Godoy consegue produzir semanalmente seus petardos culturais do mais alto nível intelectual, uma coluna absolutamente fascinante sobre todos os tipos de livros, em torno dos quais ele discorre sobre os temas que mais lhe chamaram a atenção na leitura. Por isso eu não hesito em convidar a todos a fazer uma para dominical obrigatória nos Embargos Culturais, neste site:
https://www.conjur.com.br/colunistas/embargos-culturais/
Finalizo, agradecendo a homenagem que me prestou Arnaldo Godoy. Tem muitas coisas que nos aproximam, ele um jurista, eu um sociólogo, mas uma das qualidades que eu mais prezo nele é honestidade intelectual. Esta a condição primordial que todo indivíduo de pensamento próprio deve manter em face da realidade política do país, em face da diversidade de opiniões daqueles que conosco convivem e das escolhas que devemos fazer sobre as alternativas intelectuais que mais se coadunam com o que nós mesmos pensamos. Ele provavelmente se equivoca ao dizer que eu tenho o "glamour do diplomata", o que talvez seja recebido com sorrisos irônicos por colegas da carreira, que sabem que eu contestei mais de uma vez as posições oficiais de nossa política externa e as ações de "nossa" diplomacia (nós diplomatas, sabemos em todo caso que essas posições não são exatamente nossas, mas as dos políticos que somos obrigados a obedecer).
Tem razão em dizer que sou um "homem simples, um homem de livros e ideias" – mas também ressalva que minha mulher, Carmen Lícia Palazzo, lê muito mais do que eu –, o que finalmente resume todo o sentido de minha vida: leio de tudo, observo a realidade em volta, e reflito sobre nossos problemas, diplomáticos e outros. De certa forma, levamos ambos o bom combate, o do conhecimento pela obra alheia e o da exposição de ideias próprias sobre os desafios da vida.
Obrigado, caro Arnaldo, pela bela homenagem. Vou ter de retaliar um dia desses.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de novembro de 2024