A Arte de NÃO Fazer a Guerra: novos comentários à Estratégia Nacional de Defesa, por Paulo Roberto de Almeida
“Vemos, então, em primeiro lugar, que em todas as circunstâncias a guerra deve ser vista não como algo independente, mas como um instrumento político; e é apenas tendo esse ponto de vista que podemos evitar nos colocarmos em oposição a toda a história militar. (…) Portanto, o primeiro, maior e mais decisivo ato de um estadista ou de um general consiste em entender o tipo de guerra em que está envolvido, não a tomando por outra coisa nem desejando que fosse algo que, pela natureza da situação, nunca poderá ser. Esta é, em consequência, a primeira e a mais abrangente de todas as questões estratégicas.”
Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832. (Clausewitz, Sobre a Guerra, 1832, parágrafo 27, “Influência desta concepção sobre o entendimento correto da história militar, e sobre os fundamentos da teoria”, do Livro I: “Sobre a Natureza da Guerra”, da tradução de J. J. Graham, de 1873.
Aparentemente, os estadistas do Brasil (se é que os há) e os seus generais (estes certamente existem) ainda não conseguiram entender a natureza da ‘guerra’ em que o Brasil estaria supostamente envolvido, se é que existe algo parecido a uma guerra na qual o País poderia estar envolvido; do contrário, seus formuladores não teriam concebido um documento tão idealista e tão distante dos desafios colocados ao País e alheio à realidade efetiva das coisas – la verità effetuale delle cose, como diria Maquiavel – quanto a Estratégia Nacional de Defesa (END). Minha intenção, no presente trabalho, seria a de retomar a discussão em torno desse documento, esforço já iniciado em um ensaio anterior, de natureza prioritariamente formal.[1]
O documento conjunto do Ministro da Defesa e do Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, divulgado originalmente em dezembro de 2008, deveria ser, alegadamente, a base do pensamento estratégico do Brasil, mas deveria oferecer, também, uma espécie de guia operacional e um manual de reequipamento de suas Forças Armadas (FFAA), com vistas à consecução dos objetivos básicos nacionais. Estes objetivos, por sua vez, poderiam ser resumidamente apresentados assim: a salvaguarda da soberania nacional, a preservação da integridade territorial e da independência política do país, a autonomia tecnológica e o desenvolvimento econômico e social, o que caberia assegurar num contexto internacional ainda marcado por fortes assimetrias entre os Estados, bem como por ameaças latentes e por desafios difusos à defesa nacional.
Pois bem, sinto dizê-lo, mas a END, a despeito de seu nome e de seus nobres objetivos, não é bem uma estratégia e tampouco se destina, em sua conformação atual, à defesa do país. Ela é, no máximo, nacional, aqui com toda a ênfase desejada por seus formuladores e à exclusão de suas outras características mais esdrúxulas, que tentaremos examinar nestes novos comentários, que se seguem às minhas primeiras observações sobre o tema. Se ela não é nem uma estratégia e muito menos de defesa, ela deveria ser, ao menos, um documento minimamente racional, em torno do qual poderiam ser articulados idéias e argumentos favoráveis e desfavoráveis ao seu espírito e objetivos. Examinaremos aqui se ela cumpre essa função primordial.
Suspeito que os defensores da END se mostrarão enfastiados, e talvez mesmo agastados comigo, por tratar de maneira tão depreciativa um documento que eles parecem ter em alta conta, como representativo, supostamente, de um grande referencial teórico, uma espécie de manual prático essencial à estratégia de defesa nacional. No entanto, a despeito de suas boas intenções, ele consiste, tão somente, de um documento propositivo, uma assemblagem passavelmente heteróclita, dotada de algumas sugestões úteis no terreno do reequipamento militar das FFAA, mas caracterizada por vários problemas de concepção e, sobretudo, por uma falta de adequação ao mundo real dos conflitos potenciais nos quais possa vir a estar envolvido o Brasil.
Em minha opinião, esse documento, em seu formato atual, não passa no teste proposto por Clausewitz na frase destacada em epígrafe, isto é, a de uma correta definição de qual seja o tipo exato de guerra com que poderia se defrontar o país. Entender a guerra enquanto “instrumento político” seria a primeira missão dos estadistas e dos generais brasileiros, mas a END deixa essa questão num completo vazio estratégico, sem qualquer definição quanto a cenários ou ‘adversários’.
Talvez Clausewitz fosse muito exigente na formulação de padrões para o ‘seu’ tratamento da teoria militar, estabelecendo rigorosos princípios de planejamento e de ação no terreno para os ‘seus’ generais, princípios que talvez não tenham aplicação ao caso brasileiro. Em todo caso, o documento em exame constitui um ajuntamento pouco objetivo de idéias vagas sobre a defesa – não sendo seguro que se trata bem da defesa do Brasil – sendo mais bem uma coleção ou lista genérica de aquisições militares para as três forças singulares nos anos à frente (se os orçamentos futuros do governo brasileiro assim o permitirem, o que, contudo, é altamente duvidoso).
Meu propósito, nestes novos comentários dissidentes, é duplo: (a) no plano analítico-conceitual, operar uma desconstrução intelectual das bases filosóficas – se o termo se aplica – da END; (b) no plano prospectivo, oferecer algumas reflexões sobre o que deveria conter uma END que constituísse, verdadeiramente, uma estratégia e que fosse, consequentemente, de defesa, duas qualidades que, repito, a END ainda não consegue atender. Ela se contenta, no momento, em ser nacional, como referido, no sentido mais prosaico desse termo. Vejamos a END com maior grau de detalhe.
1. Por que a END não é uma estratégia?
A primeira pergunta que um estadista deve formular a si mesmo gira em torno dos grandes objetivos nacionais e dos meios adequados para a sua consecução, em um prazo razoável. Esse exercício implica, necessariamente, uma visão do mundo – que não é a Weltanschauungabstrata de um de seus formuladores – e uma definição de possíveis cenários de guerra, dois aspectos que não figuram, em absoluto, na END. Desse ponto de vista, a END falha em atender essas exigências minimalistas, ou o faz apenas em intenção. Aplicada a questão ao Brasil, o que teríamos?
A resposta é simples e ela é fornecida pela própria END: os autores começam por confundir estratégia de defesa com estratégia de desenvolvimento.
Estratégia nacional de defesa é inseparável de estratégia nacional de desenvolvimento. Esta motiva aquela. Aquela fornece escudo para esta. Cada uma reforça as razões da outra. Em ambas se desperta para a nacionalidade e constrói-se a Nação. Defendido o Brasil terá como dizer não, quando tiver que dizer não. Terá capacidade para construir seu próprio modelo de desenvolvimento.
Os que acreditam nesse tipo de assertiva, também acreditam que gastos com defesa é que impulsionam o desenvolvimento, o que representa acreditar, em outro contexto, que são os gastos do Pentágono que impulsionam a prosperidade e a inovação dos EUA, uma notável inversão do processo real. No caso do Brasil, descontada a ridícula retórica da construção da Nação – depois de quase 200 anos de independência parece que o Brasil ainda não encontrou o seu caminho, ou pelo menos alguns dos seus supostos estadistas ainda não encontraram o seu –, o que se tem aqui é uma formidável confusão entre defesa e desenvolvimento, como se este último – que, ao que parece, carece de um modelo ideal, filosófico, se podemos dizer – devesse ser definido apenas com base naquela. Seus formuladores padecem de algum complexo de inferioridade, implícito à posição do país no contexto internacional, pois precisam ser “do contra”. Trata-se, manifestamente, de gente com vontade de dizer não, sem que se saiba bem a quem ou por quê, exatamente. Dizer não em abstrato é o mesmo que lutar contra incertas ‘forças da natureza’. Todo o documento é vago, em suas premissas e em suas definições, quanto a que defesa se pretende: contra o quê, exatamente, ou contra quem, mais precisamente?
Ora, a defesa é uma parte, apenas, do que constitui uma nação; essa parte pode ser, alternativamente, mais ou menos importante em função do contexto histórico preciso e do cenário geopolítico concreto no qual se insere essa nação: algumas terão na defesa seu principal motivo de preocupação (nações cercadas de potências hostis ou potencialmente conquistadoras, como, por exemplo, bárbaros batendo as portas das cidades ou derrubando suas muralhas externas, como no caso da China e suas hordas de mongóis e manchus conquistadores); outras nações podem ser neutras (como alguns Estados tampões entre grandes potências), ou, então, naturalmente protegidas de ataques inesperados, dadas suas dimensões geográficas continentais (os EUA, por exemplo, um continente com dois oceanos, ou, talvez, o próprio Brasil; não é certamente o caso da China, que, a despeito de suas dimensões continentais, tem como vizinhos potências nucleares ao norte e ao sul).
O desenvolvimento, por sua vez, interessa a toda a nação, ou concerne, pelo menos, todos os seus fatores de produção, sua capacidade transformadora, seus recursos humanos, suas instituições de governança, suas relações exteriores (aqui, sobretudo na área econômica), enfim, um processo múltiplo e multifacetado de transformações estruturais e de crescimento sustentado que vai muito além do que constitui a defesa ou uma estratégia de segurança nacional. Muitos acreditam que tudo isso depende da definição de um “modelo de desenvolvimento”, pré-concebido por alguns ‘luminares da nação’, apresentado e aprovado democraticamente pelo conjunto da sociedade (nos momentos constituintes por exemplo). Trata-se de uma pretensão acadêmica, típica dos que concebem a si mesmos como geniais formuladores da grande estratégia nacional, e que raras vezes figurou nos planos de qualquer país hoje tido como desenvolvido. “Modelo” é uma construção puramente conceitual, necessariamente ex-post e geralmente constituído por uma simples racionalização analítica de alguns elementos bem sucedidos ao cabo de um processo sustentado de crescimento e de mudanças estruturais, implicando – cela va de soi – a passagem a uma sociedade capaz de gerar respostas próprias aos desafios colocados pelo ambiente em que vive (normalmente embutindo inovações de natureza tecnológica).
Eximindo-se de uma definição concreta de quais sejam as ameaças e desafios externos, parece totalmente supérflua uma afirmação deste tipo contida na END: “Difícil – e necessário – é para um País que pouco trato teve com guerras convencer-se da necessidade de defender-se para poder construir-se”. Esse tipo de hegelianismo militar pode agradar os militares, que estão sempre buscando motivos legitimadores de suas existência (e gastos), mas o argumento é circular e auto-suficiente: a construção da Nação passa pela defesa, uma afirmação gratuita que se encerra em si mesma. Há uma notável inversão do que seja o desenvolvimento: é a defesa que irá capacitar o País, não a sua capacitação decorrente do processo de desenvolvimento que pode fornecer elementos úteis à sua defesa.
Não existe uma verdadeira estratégia definida no documento, mas apenas algumas formulações másculas, que constituem mera retórica vazia: “Projeto forte de defesa favorece projeto forte de desenvolvimento.” O grande conceito unificador de toda essa retórica vazia é o de “independência nacional”, o motivo básico da existência da nação, que os formuladores da END dão por ameaçada, do contrário não se preocupariam tanto com ela. Quando se invoca, repetidamente, independência e soberania nacional é porque não se tem certeza de que elas estão asseguradas de fato e na prática, isso traduz um desconforto psicológico quanto à fragilidade e vulnerabilidade da nação. Mas isto não quer dizer necessariamente que ela não tenha defesa, apenas traduz uma situação de desconforto com o não-desenvolvimento, percepção que permeia o discurso dos dirigentes nacionais desde a formação do Estado e a independência da nação (sim, o primeiro veio antes…).
Se Clausewitz está certo – mas ele não deve ser considerado um estrategista infalível, muito menos eterno – os estadistas e generais brasileiros ainda não conseguiram definir que tipo de guerra poderia afetar o Brasil e, portanto, ainda não conseguiram definir uma estratégia nacional de defesa. A END é um arremedo do que deveria ser uma, e certamente não deveria ser confundida com uma estratégia nacional de desenvolvimento, mesmo se ela procura se legitimar dessa forma.
Não tenho a pretensão de formular neste espaço uma estratégia completa de defesa (nacional ou não), e muito menos uma que seja de desenvolvimento nacional. Mas sempre se pode reconhecer uma estratégia nacional de pura retórica quando uma se apresenta de forma tão ingênua: a END está impregnada de retórica grandiloqüente sobre quão importante deveria ser a defesa nacional para o desenvolvimento, mas ela não diz qual é, onde está, em que consiste essa estratégia, que seria supostamente de defesa, e, sobretudo, por que ela deveria ser estratégica – com perdão pela óbvia redundância – para o desenvolvimento. Repetindo a questão essencial, já colocada anteriormente: defesa contra o quê ou contra quem? Vejamos este aspecto.
2. Por que a END não é de defesa?
A primeira pergunta que um general deve formular a si mesmo, supondo-se que ele seja chefe de Estado-Maior, é a de saber para onde, exatamente, as forças à sua disposição devem apontar suas armas ofensivas ou dissuasórias. Da resposta a esta questão depende a defesa efetiva do território nacional, nos pontos considerados nevrálgicos e mais sensíveis.
Pois bem: o que nos diz a END sobre isso?
Os ambientes apontados na Estratégia Nacional de Defesa não permitem vislumbrar ameaças militares concretas e definidas, representadas por forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou de outros agentes não-estatais. Devido à incerteza das ameaças ao Estado, o preparo das Forças Armadas deve ser orientado para atuar no cumprimento de variadas missões, em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação política do Estado.
Esse trecho selecionado, extraído da seção “Fundamentos” da segunda parte da END (Medidas de implementação), é surpreendente pelo seu caráter vago e pela completa indefinição quanto ao objeto próprio de toda essa construção abstrata, consoante, aliás, com o caráter de “não-estratégia” do documento em seu conjunto. O Brasil parece viver, na visão dos formuladores da END, num completo vazio geopolítico e eles não conseguem vislumbrar ameaças concretas; não se sabe bem, portanto, quais devem ser as variadas missões das FFAA, e não se tem a mínima idéia de que “ação política do Estado” se está falando. Se é de defesa, é preventiva contra tudo e contra todos, o que, convenhamos, é extremamente custoso, se todas as Hipóteses de Emprego (HE) forem consideradas, e muito pouco útil na preparação e no adestramento adequado das tropas.
A mesma indefinição completa quanto às ameaças, as missões e os propósitos da ação do Estado já tinha sido reconhecida na seção anterior (justamente voltada para as Hipóteses de Emprego) dessa mesma parte da END (medidas de implementação). No plano prático, ela redunda em algo absolutamente contraditório: “Entende-se por HE a antevisão de possível emprego das Forças Armadas em determinada situação ou área de interesse estratégico para a defesa nacional. É formulada considerando-se o alto grau de indeterminação e imprevisibilidade de ameaças ao País.” Ou seja, mesmo sem ter a mínima idéia de quais HE poderão determinar a mobilização das FFAA, ainda assim, devem ser “elaborados e mantidos atualizados os planos estratégicos e operacionais pertinentes, visando possibilitar o continuo aprestamento da Nação como um todo, e em particular das Forças Armadas para emprego na defesa do País.”
Notável!: se pretende aprestar toda a nação mesmo sem se ter clareza quanto a que tipo de ameaças ou desafios se colocam ao País. Jogos eletrônicos de guerra têm, pelo menos, um ou mais inimigos declarados, algo que o Brasil não consegue ter, e que a END não consegue definir. Quando se consegue formular uma ameaça concreta ao território, à independência ou à soberania nacional, esta é particularmente deficiente quanto aos cenários reais para as HE das FFAA. Deficiente é uma palavra neutra, pois a suposição implícita é a de que o Brasil poderia ter de enfrentar – ou pelo menos dissuadir – uma “potência hegemônica” ou uma “coalizão de potências dominantes”, sem que se diga exatamente quais seriam essas potências “hostis” ou “ameaçadoras”. Quem não padece de miopia geopolítica, e conhece as motivações e orientações políticas do governo que formulou a END, pode apostar em que o alvo são os Estados Unidos e os países europeus, as ‘únicas’ “potências hegemônicas” do planeta, pois não se admitiria que os “parceiros estratégicos”, designados como tais pelo governo, possam vir sequer a constituir fontes de ameaças.
A END diz, nas suas “Diretrizes”, que se deve “priorizar a região amazônica” (sic), o que é propriamente surpreendente. Nenhuma explicação é dada para essa “priorização” que parece contradizer os dados da realidade, quando se sabe que a maior parte do PIB, da população, da capacitação industrial, dos centros nervosos do País se situa em outras regiões do Brasil, mais particularmente na costa atlântica ao longo das vertentes sudeste e do sul do território nacional. Talvez a END pretenda encarregar a Marinha, que supostamente vigia toda a costa e o mar territorial brasileiro, e marginalmente a zona econômica exclusiva, do monitoramento e proteção dessa faixa de maior importância econômica, estratégica e militar para o País, mas isso não está explicitado no documento. Na verdade, o mais provável que ocorra é que tudo continue como sempre, com marinheiros instalados nas melhores praias do País e com os soldados e aviadores fixados em suas melhores regiões.
Ainda assim não se percebe por que a Amazônia deva receber maior atenção e mais recursos do que as regiões mais ricas e povoadas do País, talvez apenas porque seja pobre e despovoada, justamente. Deve ser a tradicional obsessão paranóica – não apenas de militares de direita, mas da esquerda paisana, também – quanto à internacionalização da Amazônia, obviamente a cargo das mesmas “potências hegemônicas” que conspiram contra o desenvolvimento do Brasil. Pode ocorrer, eventualmente, que os formuladores da END tenham experimentado um súbito ataque de clarividência, passando a colocar as ameaças potenciais ao Brasil lá onde eles podem de fato aparecer, ou seja, na Amazônia; mas registre-se que ali, os cenários mais prováveis são de pequena geopolítica, não de grande estratégia, o que reduziria singularmente o uso das ferramentas previstas na END.[2]
Em resumo, assim como a END não consegue ser uma verdadeira estratégia, ela não consegue ser um documento de defesa, ou seja, definir quais são as ameaças credíveis e os reais desafios que pesam contra o Brasil, ou, de modo geograficamente mais preciso, contra suas regiões estrategicamente mais importantes. As HE previstas na END de emprego das FFAA são tantas e tão variadas, que as FFAA terão, de modo particularmente custoso, de se preparar para absolutamente tudo e todas as HE, talvez para enfrentar absolutamente nada. Neste caso, não se trata bem de uma manifestação retórica de hegelianismo militar, mas talvez de um voluntarismo de tipo acadêmico totalmente inócuo em seus propósitos substantivos.
3. Por que a END é prosaicamente nacional?
Aparentemente, a END pretende superar o velho problema que sempre colocou em lados opostos estadistas e generais, de uma parte, e economistas, de outra; ou seja, como conciliar, de um lado, os objetivos contraditórios da maximização do bem-estar da nação no curto prazo – o que implica atender ao consumo imediato da população – e os de seu desenvolvimento no longo prazo – o que implica concentrar recursos para fins de investimentos produtivos – e, de outro lado, as necessidades de sua defesa, com suas exigências em termos de desvio de recursos para a aquisição de ferramentas militares – improdutivas por definição – mas essenciais para os fins de dissuasão, de segurança e de defesa? A END, teoricamente, deveria reservar algum espaço, se não para a macroeconomia do desenvolvimento brasileiro, ao menos para uma estimativa inicial de seus custos diretos e indiretos, em termos de dotações orçamentárias anuais e plurianuais, e de previsões aproximadas dos montantes necessários a serem apropriados para cada uma de suas grandes rubricas ou categorias de despesas (pessoal, equipamentos, infraestrutura, manutenção, P&D militar, etc.).
Esse tipo de cálculo elementar, a END sequer o faz de maneira impressionista ou puramente subjetiva, ou seja, ela jamais ousa aventar qualquer cálculo estimativo, mesmo primário, dos custos incorridos pela sua grandiosa estratégia (supostamente) de defesa. Ela tampouco se permite considerar o custo-oportunidade de todas as suas propostas operacionais, tanto no terreno das ferramentas militares, como no da manutenção das instituições no formato pretendido. Parafraseando o conflito célebre dos economistas quanto a bem-estar e defesa, quando confrontados a esse tipo de dilema, pode-se dizer que a END pretende oferecer, ao mesmo tempo, manteiga e canhões, sem que ela jamais consiga estimar os custos, implícitos e explícitos, desse tipo de demanda contraditória por definição.
A ‘manteiga’, como sabemos, só pode entrar no quadro do grande projeto de desenvolvimento que os autores da END pretendem impulsionar pelo lado exclusivo da defesa (sem no entanto dizer como; talvez por fiat político). E os canhões, bem, eles estão lá onde deveriam estar, mas aqui, não são apenas canhões, e sim todos os raios de Júpiter e de seu exército de deuses auxiliares, sem esquecer Marte e Vulcano. Com efeito, a END pretende “fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o cibernético e o nuclear”. Ou seja, nada menos do que uma guerra nas estrelas, uma presença na estratosfera e no cyberspace, mesmo se for para combater inimigos na área considerada prioritária, que é a ‘esquecida’ Amazônia.
E como tudo isso será alcançado?; ou seja, como serão oferecidos a manteiga e os canhões da grande estratégia brasileira? A END novamente responde: “Tal desenvolvimento [a capacidade de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras] dar-se-á a partir da utilização de tecnologias de monitoramento terrestre, marítimo, aéreo e espacial que estejam sob inteiro e incondicional domínio nacional”. Talvez coubesse sublinhar três vezes e colocar em negrito o “incondicional”, pois ele resume toda a concepção soberanista, inteiramente autárquica e estreitamente nacionalista da concepção do econômica do mundo dos formuladores da END. Não basta ter ou dispor de ferramentas: é preciso, também, que elas sejam genuinamente made in Brazil ou manipuladas integralmente pelos militares brasileiros.
Esse tipo de restrição quanto a origem das ferramentas, ou o condicionamento de sua aquisição no estrangeiro ao estrito repasse do controle tecnológico sobre as ferramentas em questão, resume o caráter especificamente nacional da END, aliás, seu único elemento dotado de maior consistência intrínseca, posto que os dois outros elementos não se sustentam, nem filosófica, nem praticamente, como vimos. Paradoxalmente, ou ironicamente, grande parte dessa transferência de tecnologia esperada ou desejada pelos formuladores da END deveria fluir – voluntariamente, talvez – daquelas “potências hegemônicas” que supostamente estariam na origem das ameaças à ‘prioritária’ Amazônia (ou, quem sabe?, ao petróleo do pré-sal).
Todo o sentido da END consiste em atribuir à capacidade produtiva nacional a principal responsabilidade pelo fornecimento de bens, serviços e provimentos diversos às FFAA. Não sou eu quem digo; isso está explícito em tantas passagens da END que seria fastidioso transcrever qualquer citação. Pode-se adivinhar quem ficará extremamente satisfeito com esse tipo de preferência nacional: os industriais patriotas, que não contentes de justificar o protecionismo em nome da defesa do emprego nacional, vão passar a invocar a soberania (nacional) em nome da defesa (nacional, justamente). Embora algumas associações patronais se pareçam mais com “sindicatos de ladrões” – no sentido figurado, claro, tal a promiscuidade mantida com autoridades, políticos e supostos defensores da lei – muitas dessas “representações de classe” vivem justamente de reciclar dinheiro público, ou melhor, da coletividade. Obviamente, não existe reciclagem mais extensa, “gorda” e isenta de concorrência efetiva do que essas compras governamentais de armas, sempre monopolizadas e cartelizadas em nome de uma suposta segurança nacional.
Em defesa da END – mas acredito que ela não necessita que a defendam, pelo menos não de ataques como este, débil e sem audiência – pode-se argumentar que todos os governos fazem a mesma coisa e praticam os mesmos pecados: em nome da defesa e da soberania nacional, esses governos (sabemos quais são) mantêm, sem qualquer economia de escala ou critérios de custo-oportunidade, custosas indústrias de defesa, pois, obviamente, “não se pode entregar a defesa nacional a interesses alienígenas”. O patriotismo ‘patrioteiro’ – desculpem a redundância mas ela é necessária – é a forma mais fácil de arrancar dinheiro da sociedade e de entregá-lo a quem já é rico, o que compreende, certamente, os industriais da defesa e os representantes da indústria bélica nacional (algumas estatais, por acaso).
Contra argumentos como esse, não há fatos capazes de modificar o assalto ao orçamento público organizado por uma coalizão de usuários e fabricantes de produtos de defesa, razão pela qual nem pretendo gastar meus fracos conhecimentos de economia tentando demonstrar que existem, sim, formas mais racionais de se gastar os recursos públicos, mesmo em áreas sensíveis como defesa e segurança. Em qualquer hipótese, a END se ajusta inteiramente à ideologia do desenvolvimento nacional, essencialmente marcada pelo nacionalismo protecionista e pelo vezo estatizante. Não serei eu a tentar modificar esse estado de coisas, por isso desisto.
Mais importante, porém, é constatar como esse nacionalismo instintivo pode ser profundamente contraditório com os objetivos da END, que supostamente são os da constituição de FFAA modernas, capacitadas tecnologicamente, aptas a combater em todas as vertentes mais sofisticadas da guerra moderna, como está expressamente declarado no documento: “Três setores estratégicos – o espacial, o cibernético e o nuclear – são essenciais para a defesa nacional”.
Pois bem, essa afirmação – melhor, essa pretensão, algo ilusória, como muitas outras no documento – é inteiramente negada por outra afirmação mais à frente, que se refere ao serviço militar obrigatório, supostamente encarregado de realizar o “nivelamento republicano” (seja lá o que isso queira dizer para filósofos de plantão). No parágrafo 2 dessa seção, depois de se confirmar que “[o] Serviço Militar Obrigatório será (…) mantido e reforçado”, vem explicitamente afirmado que “[a]s Forças Armadas limitarão e reverterão [merece ser sublinhado três vezes] a tendência de diminuir a proporção de recrutas e de aumentar a proporção de soldados profissionais.” [sic três vezes e espanto figurado!!!]
Ora, não existe proposta mais contraditória com o objetivo de se ter FFAA modernas e capacitadas tecnologicamente do que a incorporação proporcionalmente maior de recrutas ignorantes nessas forças. Trata-se de um grave equívoco, só explicável por populismo ingênuo, igualitarismo instintivo ou alienação acadêmica de quem propôs tamanha incongruência; ou, então, uma mistura desses três elementos, pois não se consegue explicar como um documento desse teor, tão modernoso em seus outros componentes, pode cometer erro tão grave na componente mais importante de qualquer força militar moderna, os recursos humanos (aliás, de qualquer atividade organizada por uma sociedade contemporânea). Espera-se que os chefes militares não sucumbam a essa burrice monumental. Não se trata de propor a contratação de mercenários modernos, combatendo por dinheiro, mas sim a profissionalização crescente das FFAA, consoante tendências detectadas na maior parte das FFAA contemporâneas. Um soldado moderno deve ter, no mínimo, a formação de um engenheiro (não sei se estou exagerando…).
4. O que uma END realista e razoável poderia conter?
Pergunta fácil e, ao mesmo tempo, difícil de responder. Em primeiro lugar, ela deveria conter – e isto é o mínimo – uma verdadeira estratégia de defesa, nacional ou não (mas sei que, aqui, toco nos brios de nossos militares nacionalistas e outros patrioteiros, já prontos a sacar suas armas para me fuzilar, por grave atentado à defesa nacional). Bem, deixando de lado por um momento esse fantasma do caráter supostamente nacional da nossa defesa, vejamos prioritariamente os dois outros elementos em pauta: a estratégia e a defesa.
O que é uma estratégia? O que deveria conter de estratégico um documento destinado às gloriosas FFAA, que nos defendem de insidiosos ataques inimigos (ou simplesmente externos)? Uma estratégia é, segundo meu entendimento, um conjunto de prescrições de natureza geral quanto a valores, princípios, objetivos gerais e particulares, metas e finalidades da ação estatal que têm a ver com a existência, a proteção, a manutenção da segurança, a preservação da independência e da soberania de um determinado Estado, em função da qual disposições táticas são adotadas, fatores logísticos definidos, meios específicos constituídos, todos com a finalidade de se atingir os objetivos gerais e particulares definidos pelos estadistas na estratégia adotada pelos responsáveis políticos do Estado em questão. Ou seja, mesmo que uma estratégia possa ser eventualmente preparada e oferecida por generais e outros senhores da guerra, sua definição última e a responsabilidade suprema pela sua forma teórica final e decisões complementares pela implementação prática sempre incumbem à autoridade política do Estado em causa.
Daí a primeira regra no processo de elaboração de uma estratégia qualquer, no sentido aqui definido como obra de estadistas de natureza profundamente política e de escopo e significado essencialmente políticos, na acepção “estatal” desses termos (que tem a ver com o conceito anglossaxão de statecraft, que poderia ser imperfeitamente traduzido por “estadismo”). Uma estratégia não diz respeito apenas a generais e senhores da guerra, e sim a toda a nação e seus responsáveis maiores. Ela precisa ostentar, em primeiro lugar, clareza geral de concepção, precisão nos seus desígnios e objetivos principais, profundidade similar no estabelecimento de suas finalidades secundárias, planejamento quanto aos meios adequados e quanto ao alcance, eficácia, possibilidades e limites de suas ferramentas privilegiadas e, também, dispor de um compromisso firme com a sua colocação em vigor e implementação decisiva por parte dos estadistas instalados no comando da nação, quaisquer que sejam os obstáculos e dificuldades que se apresentem no processo de sua implementação.
É evidente, nesse sentido, que a coerência entre fins e meios da estratégia adotada depende de uma visão clara desses responsáveis políticos – tanto civis quanto militares, estes agindo na condição de planejadores políticos visando finalidades militares, se a estratégia adotada é basicamente militar – quanto à capacidade relativa da nação em sustentar essa determinada estratégia, que precisa ser minimamente comensurável aos recursos efetivos ou potencias à disposição da nação. Sendo assim, qualquer exercício em torno de uma estratégia nacional depende de um conhecimento acurado de quais são as fortalezas e fraquezas da nação em causa, sem o que o exercício conduzido poderá traduzir-se em mero esforço de objetivos ideais, ou em uma coleção irrealista de desejos inatingíveis. Um levantamento preliminar dos recursos, das possibilidades e limites ao estabelecimento de uma determinada estratégia configura-se uma tarefa prévia indispensável à boa definição de uma estratégia realista e compatível com os meios e finalidades nela estabelecidos.
Levando-se em conta esses critérios metodológicos, parece que a END falha em cumprir requisitos mínimos de uma estratégia. Ela não diz por que, e com quais finalidades, deseja ter para o Brasil FFAA dotadas das características apontadas em seus vetores principais de atuação (espacial, cibernético e nuclear); tampouco diz quais seriam os grandes objetivos da nação em face de obstáculos precisos à consecução desses objetivos (que permanecem indefinidos); não consegue sequer dizer para o quê ou para quem o Brasil teria de dizer ‘não’, como masculamente pretendem seus formuladores; e falha, estupidamente, em se dotar dos recursos humanos adequados às suas altas finalidades (que ela não se sabe dizer quais são, mas que pretende atingir, em todo caso, muito mais com recrutas ignorantes do que com soldados profissionais e administradores competentes, recrutados no mercado e operando em condições de eficiência quanto aos meios e com cobrança de resultados).
Se com todas essas falhas a END pretende continuar a ser chamada pelo nome pomposo de ‘estratégia’ – e ainda mais ‘de defesa’ – é evidente que ela precisa passar por uma remodelação conceitual e um sério esforço de redefinição de objetivos e metas, sem o que ela permanecerá o que é atualmente: uma assemblagem de conceitos vagos sem conexão com o Brasil real, coroando três listas de compras militares para cada uma das forcas singulares; tudo isso, cabe recordar, sem conseguir dizer o que pretende exatamente o Brasil no contexto do mundo em que vivemos, hic et nunc, com alguma previsão para as próximas décadas, como seria de rigor em documentos desse tipo. Sem uma exposição clara do que é o Brasil – e do que constitui a sua defesa, se é que existe uma, atualmente –, de suas capacidades materiais e possibilidades humanas, de seus objetivos diplomáticos e econômicos, agora e futuramente, sem essa visão clara de quem somos, do quê pretendemos em nossa região e no mundo, no futuro previsível, sem uma adequação entre essas finalidades e os instrumentos disponíveis (imediatos e mediatos), sem um planejamento acurado do que pretendemos obter com os nossos próprios meios ou em cooperação com aliados potenciais, sem todos esses elementos conceituais e empíricos, fica difícil estabelecer uma estratégia digna desse nome e prover os recursos necessários à sua consecução.
Não se exige, obviamente, que os formuladores de uma grande estratégia nacional sejam todos planejadores competentes, exímios economistas ou planejadores experientes, mas seria conveniente que os estadistas e generais que forem conceber, desenhar e redigir um tal documento se cerquem de assessores dotados de algumas competências firmadas nessas áreas básicas da ação estatal. Os seus formuladores podem ser, inclusive, filósofos ou sociólogos (sem esquecer os advogados e outros mestres de ciências afins), mas algumas tarefas de planejamento, de cálculo econômico e de administração, de organização e métodos seriam muito bem-vindas antes que amadores se lancem nessa ingente tarefa. Não é possível, por exemplo, que uma magnífica estratégia nacional se veja obstaculizada em sua implementação por uma completa falta de correspondência entre os objetivos ambiciosos nela estabelecidos e os parcos meios colocados à disposição das autoridades de aplicação, como resultado de cálculos irrealistas em torno do PIB nacional – presente e futuro – e as dimensões ambiciosas de uma tal grande estratégia.
A rigor, uma estratégia do tipo da que se concebe aqui – ou seja, bem mais ‘prussiana’ do que ‘hegeliana’ – não é obra de alienígenas trabalhando com uma cornucópia infindável de recursos sempre abundantes. Nunca o é: aqueles que acreditam que o orçamento do Pentágono e as maravilhosas máquinas de guerra que ali são encomendadas – inclusive com grande desperdício e alguma irracionalidade nos gastos – fluem diretamente das arcas do Tesouro (eventualmente por bondade e graça do Congresso), por certo ignoram o papel da professorinha primária e da produtividade sistêmica do trabalhadores americanos na montagem secular de um modo inventivo de produção que encantou Schumpeter e deslumbraria Marx. Doses mínimas de realismo orçamentário e uma visão adequada das capacidades econômicas nacionais – inclusive quanto ao endividamento externo – são sempre desejáveis nessa gloriosa missão de desenhar e escrever uma estratégia. Desse ponto de vista, creio, sinceramente, que a END falha completamente em juntar meios e fins, em definir possibilidades e limites, em juntar desejos com realidade. Ela parece esquecer que nossas FFAA vivem num país real, chamado Brasil, do início do século 21, situado a centro-leste de um continente específico, localizado no hemisfério americano, cercado por vizinhos, digamos, peculiares, que apresentam características muito definidas, sobre as quais não é necessário estender-se no momento (mas que convém levar em consideração na redação dessa grande estratégia).
Pois bem, esperando que os filósofos da grande estratégia brasileira baixem à terra, seria conveniente que eles dissessem alguma coisa em torno da defesa, ou seja, essas “forças antagônicas de países potencialmente inimigos ou (…) outros agentes não-estatais”. Da mesma forma, seria de todo indicado que os formuladores de uma END razoável consigam articular algo coerente em torno das “variadas missões [das FFAA], em diferentes áreas e cenários, para respaldar a ação política do Estado”. Sem tratar desses ambientes concretos, torna-se impossível combater o bom combate, ou seja, estar aprestado para o inimigo provável, não por aquele imaginado por mentes iluminadas que vivem nos salões acarpetados das academias e burocracias do Estado. Por exemplo: você não manda um porta-aviões para combater guerrilheiros na selva, nem arma uma grande esquadra quando o que se necessita é de uma Marinha de águas marrons, não águas azuis; mísseis geralmente não são recomendados para o emprego contra contrabandistas “pés-de-chinelo”, como parecem ser as HE mais prováveis das nossas gloriosas FFAA.
Claro, elas têm uma necessidade psicológica de também se preparar contra esses inimigos poderosos que figuram nas HE dos nossos anti-imperialistas oficiais, mas conviria antes fazer um curso de ciência política e, na sequência, uma pós-graduação em relações internacionais, para melhor programar o uso efetivo das nossas FFAA. O que não é possível seria torrar os escassos – por definição – recursos da gloriosa mãe gentil, contemplando toda a panóplia possível de ferramentas militares para todas as HE humanamente concebíveis no horizonte histórico do relacionamento regional e internacional do Brasil. Um pouco de razão e outro tanto de sensibilidade sempre são bem vindos, mesmo nessas rudes matérias de defesa e segurança.
Todo exercício intelectual é bem vindo, sobretudo quando se pode revisá-lo com base em dados da realidade, submetendo-o às armas da crítica (para que ele não padeça sob a crítica das armas, com a licença de Marx para o uso desta sua paráfrase). Se os formuladores originais da END padecem de vazio geopolítico, nada melhor do que engajar novos filósofos – com alguns engenheiros e economistas em apoio – para revisar, corrigir e melhorar o documento em questão. Todos ganhariam com isso: a nação, em primeiro lugar, que saberia exatamente – pelo menos é o que se supõe – quanto lhe pretendem subtrair em transparentes transações orçamentárias; as próprias FFAA, que saberiam que tipo de inimigo combater – posto que a END atual é totalmente vaga a esse respeito; e também, talvez seja o mais importante, a lógica elementar e a racionalidade stricto sensu, que sempre ganham quando documentos de tal importância atendem a seus requisitos formais e subscrevem a cânones mínimos de coerência intrínseca e de adequação à realidade.
Nem tudo está perdido, porém, desde que se considere que a END is not the end, se me permitem o jeux de mots inevitável. Ela representa um bom começo, posto que já contém a shopping list desejada por cada uma das forças (ainda que, sob vários aspectos, totalmente inadequada às reais funções presumíveis de cada uma delas, e conjuntamente). Seria preciso que estadistas de verdade e generais experimentados – prussianos e hegelianos, ambas as combinações são possíveis – pudessem definir as ameaças concretas que pesam sobre o Brasil – if any– e, a partir daí, estabelecer os parâmetros básicos de uma estratégia de defesa que faça jus a esse conceito. Talvez falte ao documento aquelas bonitas ações cinematográficas que corresponderiam aos cenários de grande geopolítica com que sonham nossos soldados; mas isso talvez seja simplesmente porque o Brasil precisa ajustar seu desejo de brilhar no mundo às reais dimensões dos desafios que se colocam concretamente em seu ambiente de atuação, quais sejam, os cenários de pequena geopolítica na região ou a serviço da ONU.
Essa talvez seja a frustração – essencialmente teórica – dos hegelianos que conceberam pela primeira vez o documento: eles pretendiam vislumbrar (talvez até desejavam secretamente) enfrentamentos com potências hegemônicas e acabam tendo de caçar marginais nas favelas do Haiti ou traficantes analfabetos nas selvas e morros da América Latina; no máximo, talvez consigam separar facções guerreiras em territórios longínquos, a serviço do CSNU, sem que talvez jamais consigam exercer seus fabulosos dotes bélicos contra inimigos de verdade numa guerra de posições. Por mais que a realidade não se encaixe nos planos grandiosos, é ela que precisa ser enfrentada, não os conflitos imaginários (sobretudo contra os inimigos errados, como certamente alguns mais alucinados podem estar cogitando no seu íntimo).
Ao fim e ao cabo, uma estratégia de defesa – deixemos o nacional de lado, pois ele será fatalmente reinserido por nossos bravos formuladores – deve responder às necessidades percebidas por estadistas e generais, não corresponder às angústias teóricas de alguns ideólogos disfarçados em planejadores, como parece ter sido o caso desta primeira experiência de redação. Os requisitos metodológicos e os componentes conceituais são relativamente simples: o documento deve ser uma estratégia e ele deve tratar de defesa. Para tanto seria indispensável algum trabalho preliminar de análise de terreno – inclusive no contexto global –, de balanço de recursos, de identificação de ameaças credíveis, de definição de ferramentas, de estimação de custos, de estabelecimento de planos táticos e de disposição das forcas nos espaços definidos pela estratégia. Pode-se até ser ambicioso quanto aos meios, mas não se deve deixar o terreno no qual se pisa para passear pelo Olimpo filosófico dos deuses da guerra.
Em uma palavra, questões militares e assuntos diplomáticos não são encargos para amadores, como soe acontecer ocasionalmente em certos meios (ou épocas). O preço a pagar pelo idealismo nessas matérias é muito alto, e ele não tem a ver apenas com os recursos financeiros da nação – ou seja, o meu, o seu, o nosso dinheiro – e sim com a completa inadequação de uma estratégia qualquer – qualquer que seja o seu conteúdo nacional – com os fins pretendidos, supostamente de defesa. A menos, é claro, que a intenção não declarada seja a de não fazer a guerra, mesmo em última instância, o que sempre pode ser uma escolha de civis (eventualmente diplomatas), mas que na mente dos generais não parece ser a opção mais adequada. Back to work!
[1] Ver Paulo Roberto de Almeida, “Estratégia Nacional de Defesa: comentários dissidentes”, Mundorama (14.03.2009; link: http://mundorama.net/2009/03/14/estrategia-nacional-de-defesa-comentarios-dissidentes-por-paulo-roberto-de-almeida/).
[2] Sobre os conceitos de pequena e grande geopolítica, ver Paulo Roberto de Almeida, “Uma paz não-kantiana?: Sobre a paz e a guerra na era contemporânea”, In: Eduardo Svartman, Maria C. d’Araujo e Samuel A. Soares (orgs.), Defesa, Segurança Nacional e Forças Armadas (Campinas: Mercado de Letras, 2009, p. 19-38; disponível: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1987PazNaoKantianaABEDbook.pdf).
Paulo Roberto de Almeida é Doutor em ciências sociais pela Universidade de Bruxelas (1984); diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro desde 1977; professor de Economia Política Internacional no Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasilia – Uniceub; autor de diversos livros de história diplomática e de relações internacionais (www.pralmeida.org – pralmeida@mac.com).