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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 1 de setembro de 2018

Minhas resoluções de Ano Novo para 2003 - Paulo Roberto de Almeida

Um exercício de leitura, uma brincadeira séria, fruto dessas leituras amenas que mantenho, ao lado de livros mais áridos...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 setembro de 2018

Treze resoluções de Ano Novo
(à maneira de Benjamin Franklin)

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 1o. de janeiro de 2003.

Todo começo de ano (alguns preferem fazer no final do ano anterior) costumamos estabelecer para nós mesmos uma listas de coisas boas para realizar e outras más para evitar: deixar de fumar, começar aquele regime tão adiado, arrumar os velhos papéis de família, economizar para gastar em algum projeto especial, enfim, objetivos prosaicos mas valorizados pelo que eles representam de oportunidades perdidas. Trata-se de uma das boas manias tipicamente americanas que importamos no Brasil, com resultados variados, aqui e ao norte do hemisfério.
Não importa: melhor ser pragmático do que não ter nenhum novo objetivo ao iniciar um novo ano, razão pela qual eu também desejei fazer a minha pequena lista de resoluções para 2003. Fui buscar inspiração, para isso, naquele homem que, mais do que qualquer outro, encarna as típicas virtudes americanas do trabalho perseverante e do bom comportamento na vida diária (com um ou outro deslize ao longo de uma longa vida de realizações em favor de seu país). Refiro-me a Benjamin Franklin que tinha, como é sabido, uma vocação de “solucionador prático” (ele era grande espírito inventivo) e um sólido espírito moral, comprometido como sempre foi com o bem estar de sua sociedade e com a disposição de fazer o bem, para si mesmo e para todos os seus demais membros.
Lendo, no final de 2002, a biografia de Benjamin Franklin pelo historiador H. W. Brands, The First American: the Life and Times of Benjamin Franklin (New York: Anchor Books, 2000), deparei-me com vários aspectos de uma vida verdadeiramente singular, talvez a figura mais representativa dos chamados founding Fathersda República americana, o homem múltiplo que, tendo sido, sucessivamente e por vezes ao mesmo tempo, impressor, jornalista, tribuno, representante diplomático na Europa, inventor, homem do legislativo e do executivo, foi um dos redatores da Declaração de Independência e, como tal, um pouco mais tarde, o supremo organizador do consenso político que permitiu a emergência do conciso texto constitucional que (não considerando aqui suas emendas e adições) já cumpriu mais de dois séculos de existência continuada.
Não são contudo essas atividades eminentemente práticas, políticas e sociais, que me chamaram a atenção na impressionante biografia de Brands, a ponto de interromper sua leitura para redigir estas notas de reflexão sobre o novo ano que se inicia. Foi, de forma prosaica, uma simples lista de resoluções de caráter geral que Franklin decidiu, ainda bastante jovem, que deveriam passar a orientar sua ação pessoal. Como ele mesmo escreveu em sua auto-biografia, tomou a resolução de seguir um “vigoroso e árduo projeto de alcançar a perfeição moral”. Ele concebeu e redigiu, primeiro, doze “virtudes cardeais”, depois agregou uma décima-terceira (por acaso um número tabu para os americanos contemporâneos, a ponto de poucos edifícios terem o 13º andar), que vão aqui transcritas a título de ilustração sobre como concebia Franklin uma possível vida virtuosa:

1. Temperança: Não coma em excesso. Não beba a ponto de perder os sentidos.
2. Silêncio: Só fale o que puder beneficiar os outros ou a si mesmo. Evite conversas vazias.
3. Ordem: Faça com que cada coisa tenha o seu lugar. Faça com que cada parte de suas atividades tenha o seu tempo. 
4. Resolução: Decida cumprir aquilo que deve ser feito. Realize sem falhas aquilo que voce decidiu fazer.
5. Frugalidade: Faça unicamente despesas que resultem em benefício dos outros ou de si mesmo. Não desperdice nada.
6. Indústria: Não perca tempo. Esteja sempre ocupado com alguma coisa útil. Elimine todas as ções desnecessárias.
7. Sinceridade: Não decepcione ninguém. Pense de maneira inocente e justa, e se você falar, seja consistente. 
8. Justiça: Não prejudique ninguém, cometendo ofensas ou omitindo ações que constituem suas obrigações.
9. Moderação: Evite os extremos. Abstenha-se o quanto puder de sentir-se ofendido.
10. Limpeza: Não tolere falta de limpeza pessoal, em suas roupas ou lar.
11. Tranquillidade: Não fique perturbado com coisas menores ou com acidentes comuns ou inevitáveis.
12. Castidade: Recorra ao intercâmbio sexual para manter a saúde ou procriar – nunca em excesso, por fraqueza ou em prejuizo da reputação ou paz de alguém ou de si mesmo.
13. Humildade: Imite Jesus e Socrates. (Brands, op. cit., pp. 97-98; adaptação: PRA)

Como analisa Brands, “Franklin era um idealista de uma espécie bastante prática. Neste caso, sua praticidade guiou sua escolha das virtudes, que eram todas adaptadas aos êxitos na vida corrente que ele desejava alcançar; seu idealismo transparecia em sua crença de que o domínio dessas virtudes poderia ser facilmente realizado” (p. 99). Que ele logo tenha descoberto que tal tarefa não era de tão fácil implementação, como ele imaginava ao início, não nos deve preocupar, pois o essencial estava no conjunto de “virtudes” que Franklin concebia como princípios de ordem moral, para si mesmo, em primeiro lugar, para todos os demais concidadãos, de forma geral. O último nome da décima-terceira regra esclarece aliás sobre o exemplo de virtude moral no qual Franklin se inspirava: Sócrates, o modelo clássico de homem reto, disposto a sacrificar sua própria vida pela verdade. 
Cento e oitenta anos depois, as treze virtudes cívicas (ou éticas) de Franklin ainda suscitam admiração, como a condensação mesma do espírito prático americano, uma espécie de código moral que seu biógrafo Brands chamou de “ética protestante do trabalho sem o Protestantismo”.
Seria possível partir dessa lista do início do século XVIII e conceber um conjunto similar de preceitos morais adaptados a este início do século XXI? Seriam as virtudes “cardeais” contemporâneas tão diferentes daquelas pelas quais tentou se guiar (com um certo sucesso, reconheça-se) Benjamin Franklin?
Pode-se, por certo, tentar reincidir no jogo das virtudes, mas lembrando, em todo caso, que o básico não está tanto no contexto social, econômico ou tecnológico, mas simplesmente nos próprios princípios morais que devem guiar nossas ações, independentemente da época ou do meio social. Vejamos que lista de resoluções de ano novo eu seria capaz de conceber, pagando o devido copyright (ou pelo menos os “moral rights”) a Benjamin Franklin:

1. Auto-contenção: Não coma tanto a ponto de se sentir “cheio” e, sobretudo, com a idade, diminua a quantidade e os excessos “exóticos”. Se possível não beba, senão água, muito embora vinho com moderação possa ser saudável. Liberada porém a cervejinha com os amigos na sexta à noite, com um “nadinha” de linguicinha.
2. Silêncio: Fale apenas o que for necessário para entretar uma conversa agradável com os presentes, ou para esclarecer os curiosos sobre algo socialmente útil. “Jogar conversa fora” é permitido, desde que o ambiente o permita. Compre um desses mini-gravadores e se registre divagando sobre um assunto que considere importante: isso vai ajudá-lo a se manter calado da próxima vez.
3. Ordem: Não há desculpa para manter o seu próprio ambiente de trabalho ou lar em desordem, a não ser a preguiça e o desleixo. Respeite os outros e a si mesmo organizando seus papéis e objetos pessoais. Você perde um tempo precioso procurando papéis perdidos e velhos recados ou encomendas que ficaram para depois.
4. Resolução: Deve-se cumprir aquilo que se acordou fazer, consigo mesmo ou com outrém. Nos tempos modernos, se é pago para trabalhar, ainda que o desempenho muitas vezes deixe a desejar. Desde que Franklin formulou essa “resolução calvinista”, um outro “filósofo” americano aperfeiçou o comando com uma “lei do rendimentos descrescentes” no trabalho profissional, também conhecida por “Peter principle”: “toda pessoa acaba sendo elevada, por inércia, ao seu mais alto nível de incompetência no trabalho”. 
5. Frugalidade: Difícil de manter nestes tempos de consumismo barato e de shoppings convidativos.  Mas o princípio é sadio do ponto de vista dos orçamentos domésticos, sempre administrados no fio da navalha. Não jogue nada fora, mas aproveite para dar a camisa velha para as entidades de caridade pública.
6. Indústria: Franklin se referia às ocupações individuais, no sentido clássico da ética protestante no trabalho. Hoje a indústria está em baixa, como fonte de poluição que é, por isso a recomendação atual poderia ser: não polua a natureza, não dilapide os recursos naturais, sobretudo os não renováveis; tente deixar um planeta melhor do que você encontrou. Pratique o desenvolvimento sustentável, sobretudo em favor dos mais pobres e desprovidos de qualquer “indústria” ou capacidade individual.
7. Sinceridade: Seja aberto e transparente com todos, inclusive com os seus inimigos. Nada pode ser mais desarmante do que a verdade sendo dita em qualquer circunstância. Se tiver de mentir, que seja por caridade, para não ofender gratuitamente alguem fragilizado psicologicamente e também para fazer o bem a quem precisa (como elogiar os cabelos tingidos de alguém, por exemplo).
8. Justiça: Critério absoluto. Aplique-a sobretudo em defesa do bem público. Assim, se perceber algum político desonesto, não tenha medo de denunciá-lo à justiça, ou antes, exponha-o ao ridículo universal (já que a justiça é tarda e geralmente falha). 
9. Moderação: Evite os extremos e não seja radical, salvo na defesa da democracia, da honestidade intelectual e da verdade (ainda que seja quase impossível defini-la). 
10. Comprometimento: Eduque, ou contribua para educar, o maior número possível de crianças desprovidas de recursos. Doe livros para bibliotecas e escolas públicas. Faça da elevação espiritual do maior número um objetivo em si, não suficiente em si mesmo mas absolutamente imprescindível para a melhoria da vida em comunidade.
11. Tranquilidade: Persiga seus objetivos profissionais e pessoais com segurança e sem afoiteza. Fundamente seus progressos sociais no mérito e no trabalho exclusivamente. Não seja carreirista ou oportunista. Seja solidário com seus iguais e magnânimo com os mais humildes.
12. Castidade: Difícil de manter em tempos tão permissivos, mas recomendável em face da gravidez involuntária e de doenças graves como a Aids. A Igreja recomenda como único método contraceptivo e para prevenir enfermidades como essa, o que é plenamente aceitável e compreensível mas dificilmente implementável. Combine a abstenção com métodos mais práticos (mas não precisa discutir isso na confissão).
13. Humildade: Se possível, imite Jesus e Socrates, aos quais poderia ser agregada a companhia de Buda. Não seja vaidoso, a não ser para demonstrar que você consegue cumprir pelo menos a metade dos preceitos de Benjamin Franklin, o que é uma meta razoável para simples mortais como nós, sem pretensão ao papel de “pai fundador”.

            Voilà: eis minha lista de treze resoluções de ano novo, apropriada para os tempos que vivemos no Brasil. A conferir seu cumprimento dentro de um ano.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 1º de janeiro de 2003

A Grande Mudanca (2003) - livro Paulo Roberto de Almeida

Esta foi uma apresentação que eu fiz à distância – em Washington – para o lançamento, no Brasil, de meu livro mais revelador de minha postura política e econômica até então, ao início do regime companheiro, no qual eu depositava fundadas esperanças de transformação real no sistema político e nas grandes orientações econômicas do país – sem grandes ilusões, porém – e que suponho nunca foi divulgada em qualquer veículo, pois disso não tenho registro em minhas listas de trabalho. A ficha comporta unicamente esta informação: 

994. “A economia política da mudança no Brasil: um livro de reflexões”, Washington, 1 jan. 2003, 3 p. Considerações a respeito da maneira como foi concebido e escrito meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Editora Códex, 2003), em lançamento em janeiro de 2003 no Brasil. 

Transcrevo, portanto, provavelmente pela primeira vez, esta Apresentação, apenas como registro, no exato primeiro dia do início do regime companheiro no Brasil, sem sequer imaginar que eu enfrentaria, a partir daí, um "segundo exílio", uma longa travessia do deserto que durou todos os 13 anos e meio do regime companheiro.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 1 de setembro de 2018


A economia política da mudança no Brasil: um livro de reflexões

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 1 janeiro 2003

Este meu livro de reflexões sobre a economia política da mudança no Brasil, A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasilestá chegando às suas mãos por gentil cortesia de meu editor em São Paulo, Alberto Quartim, da Editora Códex. Sua publicação oferece-me a oportunidade de tecer algumas considerações sobre seu objeto próprio, assim como sobre a conjuntura vivida pelo Brasil, neste momento histórico de transição. Este livro de ensaios, pela primeira vez em muitos anos, não trata das relações internacionais, do processo de integração regional, da política externa do Brasil ou de sua diplomacia econômica em perspectiva histórica, que foram os temas nos quais me concentrei na última década.
Na verdade, ele representa uma espécie de retorno às origens, ao início de meu aprendizado intelectual enquanto cidadão preocupado com o Brasil e a sociedade ainda injusta à qual pertenço. De fato, o livro me remete ao início dos anos 1960, quando eu me ensaiava nas primeiras leituras de economia, de sociologia e de política do Brasil, tentando descobrir por que vivíamos uma condição tão desigual do ponto de vista social. De certa maneira, ele também pode ser visto como uma continuidade das discussões travadas em meu primeiro livro de ensaios, Velhos e novos manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999), que retomava aquelas leituras da juventude e fornecia novas respostas tentativas, já numa perspectiva “revisionista” à que eu tinha simplisticamente formulado mais de três décadas antes. 
A Grande Mudança é uma obra de economia política, no sentido clássico da palavra, uma coleção de ensaios não abstratos, mas altamente reflexivos sobre o processo de transformações em curso na presente conjuntura brasileira, ainda que ele não comporte qualquer menção direta a figuras ou entidades concretas que se situam no centro da atual maioria política e social. O livro não pretende descrever esse processo de mudanças, nem aspira ensinar ninguém sobre o que acaba de se passar na política brasileira (com o que ele conformaria uma “crônica dos eventos correntes” da atualidade política). Ele discute, contudo, algumas implicações das transformações em curso do ponto de vista da ação governativa e tenta tirar alguns ensinamentos válidos num contexto e numa perspectiva mais ampla, que podem ser caracterizados como de pós-Guerra Fria e de pós-socialismo.
Ele não é didático, mas é auto-didático e condensa, por assim dizer, opiniões pessoais, considerações políticas e econômicas e reflexões “filosóficas” sobre um dos movimentos “transformistas” mais importantes que o Brasil já conheceu em toda a sua história, pelo menos potencialmente. Quando digo, talvez ambiciosamente, que ele se situa na tradição da economia política dos clássicos não pretendo, obviamente, que ele constitua um novo manual para uso dos poderosos, mas tão simplesmente um guia de reflexões para aqueles que estão engajados no movimento transformador, tendo de abandonar algumas das antigas certezas sobre o processo de mudanças e adotar novas perspectivas sobre os limites dessas transformações.
Adam Smith, na introdução ao quarto “livro”, sobre os “sistemas de economia política”, de sua obra de 1776 sobre a riqueza das nações, assim definia seu objeto de estudo: “A economia política, considerada como um ramo da ciência de um homem de Estado ou de um legislador, se propõe dois objetos distintos: primeiro, prover uma renda abundante ou a subsistência do povo, ou mais apropriadamente, habilitá-lo a prover essa renda ou essa subsistência por ele mesmo; em segundo lugar, prover o Estado ou a sociedade de uma renda suficiente para os serviços públicos. Ela se propõe enriquecer tanto o povo como o soberano” (cf. Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations; 6ª ed.: London: Strahan and Cadel, 1791, vol II, p. 138). Trata-se, obviamente, de duas tarefas bastante concretas para os homens públicos, mas isso não caracteriza o objeto da disciplina enquanto tal, o que nos remete à ambiguidade da obra e da própria condição de Adam Smith, ao mesmo tempo um supervisor de alfândegas e um professor de “filosofia moral”. 
O presente livro talvez esteja submergido na mesma “ambiguidade construtiva” daquele manual clássico de economia política, sem pretender, obviamente, chegar-lhe aos pés. Ele aspira, tão somente, chamar a atenção do leitor, em especial daquele interessado nos fundamentos econômicos das transformações políticas em curso, para um conjunto de temas centrais da ação governativa, podendo assim conformar uma espécie de introdução a um “novo manual de economia política” nas condições concretas em que passa a trabalhar o Brasil e sua nova maioria política. Não se pretende, está claro, dar a receita de como aumentar a renda do cidadão ou de como agregar mais um tanto à do Estado, mas de levar o homem de Estado e o legislador, ou os aspirantes a tais, a considerar certos limites impostos pelas “forças econômicas” à vontade transformista no campo político. Não é um livro de um ator ou sequer de um formulador das condições dessa mudança, mas é uma obra de reflexão que se coloca naquela perspectiva aroniana bem conhecida do “espectador engajado”. 
Se o livro não comporta, portanto, nenhum fervor militante, nem adere a nenhum credo econômico ou agrupamento político particulares, ele ostenta a mesma paixão do engajamento nas causas públicas pela transformação do Brasil que parece ter marcado a geração a que pertenço, a dos que estudaram, trabalharam e atuaram na segunda metade do século XX, quando o País deixou de sera sociedade agrária que era até então mas não logrou transformar-se (ainda) na democracia industrial avançada e socialmente justa a que todos aspiramos como cidadãos. Como espectador privilegiado dessa conjuntura histórica de mudanças incompletas, tanto no Brasil como, de forma intermitente, no exterior (no último quarto de século), espero ter podido agregar meus elementos de reflexão sobre um processo ainda inacabado de transformação da Nação. Se ouso retomar antigas lições marxistas, posso dizer que ele foi concebido no espírito da décima-primeira tese sobre Feuerbach, ainda que ele não aspire, absolutamente, transformar o mundo (no caso, o Brasil), mas tão somente interpretá-lo de maneira correta. 



A Grande Mudança
Consequências econômicas da transição política no Brasil

Paulo Roberto de Almeida

São Paulo: Editora Códex, 2003

Índice


Como e por quê sou e não sou diplomata

Primeira Parte

Imaginando um novo tipo de política para o Brasil

1. Carta aberta ao próximo presidente
2. Dez coisas que eu faria se tivesse poder
3. A indiscutível leveza do neoliberalismo no Brasil: avaliação da era neoliberal

Segunda Parte
As conseqüências econômicas da vitória
4. Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!
5. Administrando as relações econômicas internacionais do Brasil
6. Preparado para o poder?: pense duas vezes antes de agir
7. Consequências econômicas da derrota: identificando vencedores e vencidos

Terceira Parte

Sinais trocados no cenário internacional

8. A globalização e as desigualdades: quais as evidências?
9. O boletim do império
10. Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo
11. Democratização do poder mundial: possível, realizável, imaginável, desejável?
12. Sinais trocados na Alca: teria a esquerda deixado de ser progressista?

Posfácio: 
O que sou então?

Notas sobre os trabalhos
Nota sobre o autor

Petro: a moeda desconhecida da Venezuela (FSP)


Brian Ellsworth
Folha de S. Paulo, 31/08/2018

O líder da Venezuela, Nicolás Maduro, garante que um pequeno povoado de 1.300 pessoas está na crista da onda de uma inovação em criptomoedas.

Localizada em uma savana isolada no centro do país, Atapirire é a única cidade em uma área que o governo diz comportar 5 bilhões de barris de petróleo. A Venezuela garantiu tais reservas como lastro para uma moeda digital batizada de "petro" que Maduro lançou em fevereiro, e neste mês ele prometeu que ela será o cerne de um plano de recuperação para a nação em crise.

Mas os habitantes de Atapirire dizem que não viram nenhum esforço do governo para explorar as reservas e têm pouca esperança de que seu vilarejo em dificuldades terá um lugar privilegiado em uma revolução financeira.

"Não há sinal desse petro aqui", disse Igdalia Diaz, dona de casa de 35 anos que em seguida passou a se queixar da escola em ruínas, das ruas esburacadas, dos blecautes frequentes e dos moradores famintos da cidade.

A verdade é que é difícil encontrar o petro em qualquer lugar.

Durante quatro meses, a Reuters conversou com uma dúzia de especialistas em criptomoeda e avaliação de petróleo, viajou ao local das reservas prometidas e vasculhou registros de transações da moeda digital na tentativa de saber mais sobre a criptomoeda.

Essa busca rendeu poucos indícios de um comércio vicejante do petro. A moeda não é vendida em nenhuma grande casa de câmbio de criptomoedas e não se conhece nenhuma loja que a aceite.

Os poucos compradores que a Reuters conseguiu localizar foram aqueles que escreveram sobre sua experiência em fóruns de criptomoedas na internet.

Nenhum quis se identificar. Um se queixou de ter sido "ludibriado". Outro disse à Reuters que recebeu seus petros sem problema, e culpou as sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela e a "imprensa detestável" por prejudicarem o lançamento do petro.

Autoridades do governo fizeram declarações contraditórias. Maduro afirma que a venda do petro já rendeu US$ 3,3 bilhões (R$ 13,7 bilhões), e que agora a moeda é usada para importar alimentos e remédios.

No entanto, Hugbel Roa, um ministro envolvido no projeto, disse à Reuters na sexta-feira (24) que a tecnologia por trás da moeda ainda está em desenvolvimento, que "ninguém ainda fez uso do petro" e "nenhum recurso foi recebido".

A Superintendência de Criptoativos, agência do governo que supervisiona o petro, é um mistério. Recentemente, a Reuters visitou o Ministério das Finanças, onde a Superintendência supostamente está abrigada, mas foi informada por uma recepcionista que ela "ainda não tem uma presença física aqui".

O site da Superintendência não está funcionando. Seu presidente, Joselit Ramírez, não respondeu a mensagens em suas contas de redes sociais. Telefonemas para o Ministério da Indústria, que supervisiona a agência, não foram respondidos. O Ministério da Informação não respondeu a e-mails pedindo comentários.

Maduro ampliou a confusão neste mês anunciando que salários, pensões e a taxa de câmbio da moeda decadente da Venezuela, o bolívar, agora serão atrelados ao petro. A medida provocou consternação nas ruas do país e entre economistas e especialistas em criptomoeda, que dizem que a correlação petro-bolívar é impraticável.

"Não existe maneira de ligar preços ou taxas de câmbio a uma moeda com que não se comercializa, precisamente porque não existe maneira de saber por quanto ela é vendida", disse Alejandro Machado, cientista da computação e consultor de criptomoeda venezuelano que vem acompanhando atentamente o petro.

O caos é prova do desespero e da desorganização que estão tomando conta do governo Maduro em meio ao colapso da Venezuela.

O petro deveria ajudar Caracas a combater a hiperinflação, que tornou o bolívar praticamente sem valor. O governo argumentou que uma criptomoeda, que permite que operações financeiras possam ser feitas anonimamente, possibilitaria à nação driblar as sanções financeiras dos EUA e obter moedas fortes para pagar as tão necessárias importações de alimentos e remédios.

O governo atrelou o valor do petro ao valor de um barril de petróleo venezuelano —atualmente, cerca de US$ 66— e prometeu sustentá-lo com reservas de petróleo localizadas em uma área de 380 quilômetros quadrados ao redor de Atapirire. Em março, o presidente dos EUA, Donald Trump, proibiu os norte-americanos de comprarem ou usarem o petro.

Analistas demonstraram ceticismo quanto às afirmações de Maduro de que o petro já está rendendo milhões em moeda real.

Segundo eles, os registros digitais associados à moeda não fornecem informações suficientes para se determinar quanto exatamente se arrecadou, em caso de algo ter sido realmente arrecadado.

"Isso certamente não se parece com uma ICO (sigla em inglês para oferta inicial de moeda) típica, dado o baixo nível de atividade das transações", disse Tom Robinson, diretor de dados e cofundador da Elliptic, uma empresa de blockchain sediada em Londres.

"Não encontramos nenhuma evidência de que alguém tenha emitido um petro, nem que tenha sido negociado ativamente em nenhuma bolsa."

Uma visita da Reuters à área em torno de Atapirire mostrou poucas atividades ligadas à indústria petroleira. As únicas perfuradoras visíveis eram máquinas pequenas instaladas anos atrás e já envelhecidas. Várias estavam abandonadas e cobertas de mato.

Em um artigo de opinião publicado em 19 de agosto no Aporrea, um site de comentários e análises venezuelano, o ex-ministro do Petróleo Rafael Ramírez estimou que seriam necessários US$ 20 bilhões de investimentos para explorar as reservas locais, dinheiro que a problemática estatal petroleira PDVSA não tem.

"O petro está sendo estabelecido com um valor arbitrário, que só existe na imaginação do governo", escreveu Ramírez. Ele supervisionou a indústria petroleira da Venezuela durante uma década à época do então presidente Hugo Chávez, e hoje vive exilado em um local secreto por ter sido acusado por Caracas de corrupção, o que ele nega.

A PDVSA não respondeu a um email pedindo comentário.

Ao contrário dos compradores de criptomoedas conhecidas, como o bitcoin e o ethereum, os donos de petros são difíceis de encontrar.

Um local para isso é o fórum de criptomoedas online Bitcointalk, no qual entusiastas de criptomoedas começaram a publicar mensagens no início de 2018.

Algumas postagens iniciais eram otimistas, mas esse entusiasmo azedou à medida que o tempo passou. Vários se queixaram da falta de informações e dos atrasos no recebimento de suas moedas, e um reclamou por não conseguir transferi-las ou vendê-las.

"Até agora sim, fomos ludibriados, o tempo dirá se foi um bom investimento ou não", escreveu um participante do fórum identificado como cryptoviagra em 25 de junho.

Outro comprador, o único a responder a perguntas da Reuters, disse, em de mensagens em redes sociais, que sua experiência comprando petros "funcionou bem, no geral".

Ele culpou a proibição dos EUA pelas vendas fracas da moeda, além do que considerou uma cobertura midiática negativa. Ele pediu que seu nome não fosse revelado por temer "perseguição do governo dos EUA", acrescentando que "não considera a Reuters uma organização de notícias honesta".

A Reuters não conseguiu confirmar de forma independente se algum participante do fórum investiu no petro.

As criptomoedas ganharam popularidade ao longo da última década, graças a defensores que disseram que elas reduziriam os custos das transações financeiras, dariam aos cidadãos alternativas a bancos comerciais e os protegeriam da inflação induzida por políticas dos bancos centrais.

As transações são validadas por uma rede de computadores e registradas em um livro-razão público chamado blockchain. Operações individuais estão disponíveis para a consulta de qualquer pessoa na internet, mas as identidades dos envolvidos são mantidas em segredo. As operações são protegidas por criptografia —a codificação e decodificação computadorizada de dados.

As compras frenéticas de criptoativos em 2017 elevaram o preço do bitcoin para quase US$ 20 mil, e seu sucesso deu ensejo a uma onda de ofertas de moedas de outras startups, inclusive golpes que arrecadaram milhões de dólares antes de serem desmantelados pelas autoridades.

Os emissores de criptomoeda que se preocupam em mostrar transparência na arrecadação usam blockchains para exibir cada compra individual da nova moeda. Isso dá a investidores em potencial uma ideia de quanto dinheiro está fluindo e proporciona uma referência relativa sobre a procura.

O governo da Venezuela, em contraste, não oferece um registro explícito de compras. Ao invés disso, seus registros digitais só mostram o movimento de petros entre contas, não permitindo que se determine por quanto a moeda foi vendida ou se fundos realmente trocaram de mãos.

O Livro Branco do petro, um documento público que descreve as condições de oferta para os possíveis compradores, diz que a principal plataforma para a moeda é o NEM —uma plataforma descentralizada de blockchain promovida por uma organização sem fins lucrativos de Singapura.

Proprietários de contas NEM são anônimos, mas podem revelar suas identidades na descrição de suas moedas se desejarem.

Em março, uma conta NEM que aparece como sendo operada pelo governo da Venezuela emitiu 82,4 milhões de moedas como parte de sua oferta inicial. Aparentemente elas correspondem a um conjunto de moeda "preliminares" descritas no Livro Branco que compradores poderiam futuramente trocar por petros quando a oferta inicial for concluída.

Cerca de 2.300 destas moedas foram transferidas para 200 contas anônimas em pequenas quantidades no início de maio, revelaram registros da NEM.

Esse período de tempo é condizente com comentários publicados por participantes do fórum Bitcointalk que disseram estar comprando petros. Se vendidas ao preço estabelecido por Maduro com base nos preços do petróleo na ocasião, estas moedas teriam arrecadado cerca de US$ 150 mil, de acordo com cálculos da Reuters.

Em abril, outra conta anônima emitiu uma série de moedas que descreveu como parte de uma diferente fase do petro voltada a grandes investidores.

Registros da NEM mostram que em junho essa conta transferiu cerca de 13 milhões destas novas moedas a cerca de uma dúzia de contas anônimas. Estas moedas teriam arrecadado aproximadamente 850 milhões de dólares a preços oficiais, mas não há como provar que se tratou de vendas, e nenhum grande investidor admitiu estar lidando com o petro.

Roa, ministro da Alta Educação, supervisiona uma agência estatal chamada Observatório Venezuelano de Blockchain. Ele pareceu validar as suspeitas dos analistas de que o petro, atualmente, não existe como moeda funcional.

A Reuters conversou com ele brevemente nos bastidores de um evento sobre o petro em Caracas na semana passada. Roa descreveu as transações da NEM como "modelos iniciais", acrescentando que a Venezuela estava agora trabalhando em sua própria tecnologia blockchain. Ele disse que os compradores fizeram "reservas" para adquirir petros, mas que nenhuma moeda foi liberada.

O que está claro é que o petro não é negociado em nenhuma grande casa de câmbio.

Sediada em Hong Kong, a Bitfinex, uma das maiores casas de câmbio de criptomoeda do mundo em volume, disse em março que não pretende listar o petro jamais por causa de sua "utilidade limitada" e baniu a moeda oficialmente de sua plataforma na esteira das sanções dos EUA.

Três outras grandes casas de câmbio —a Coinbase e a Kraken, ambas de San Francisco, e a Bittrex, de Seattle— não quiseram comentar ou não responderam a perguntas quando indagadas por que não listaram o petro.

Em 26 de abril, Maduro anunciou que 16 casas foram "certificadas" para negociar com o petro, acrescentando que "elas começam a operar a partir de hoje". A maioria é pouco conhecida no mundo das criptomoedas.

A Reuters não conseguiu localizar sete delas, que não estão presentes na internet. Sete outras não responderam a pedidos de comentário.

A Italcambio, uma casa de câmbio venezuelana estabelecida que Maduro disse que trabalharia com a moeda, não negocia ou vende petros, afirmou seu presidente, Carlos Dorado, em resposta por e-mail à Reuters.

A única casa de câmbio que debateu publicamente planos para listar o petro é a indiana Coinsecure. Seu diretor-executivo, Mohit Kalra, disse, em uma entrevista concedida à Reuters neste mês, que dentro de dois meses a Coinsecure fornecerá à Venezuela um sistema para negociações de petros, junto com tecnologia para operá-lo, e que a Venezuela pagará royalties por seu uso.

Kalra não respondeu a ligações pedindo informações adicionais.

O petróleo está no cerne da economia da Venezuela. Ao escolher atrelar o petro a ele, o país se uniu a um número pequeno, mas crescente, de emissores de criptomoeda que ligam o valor de suas moedas a commodities físicas.

A Casa da Moeda Real, que produz moedas para o Reino Unido, anunciou em 2017 uma moeda digital atrelada ao ouro chamada RMG.

A grande diferença é que estas criptomoedas são atreladas a ativos físicos que podem ser negociados de imediato. Já Maduro prometeu que o petro terá como garantia reservas de petróleo que ainda estão nas profundezas do solo em um bloco conhecido como Ayacucho I, próximo de Atapirire.

O governo sustenta que o campo tem 5,3 bilhões de barris, citando uma "agência de certificação internacional independente".

Independentemente de quanto petróleo contenha, a área carece de infraestrutura crucial para sua extração, como estradas, oleodutos e geração de energia, disse Francisco Monaldi, nativo da Venezuela que hoje leciona políticas energéticas da América Latina na Universidade Rice de Houston.

"Não existe plano de investimento para essa área e nenhuma razão para pensar que seria desenvolvida antes de outros campos com condições melhores".

A simples localização do bloco exige um esforço considerável. Funcionários da PDVSA que concordaram em levar um repórter até o local o confundiram com um bloco diferente. A Reuters teve que mapear o Ayacucho I com GPS usando coordenadas publicadas pelo governo como parte da criação do petro.

Enquanto isso, os habitantes de Atapirire dizem ter sido esquecidos.

Um criadouro de peixes usado para oferecer empregos está abandonado. A clínica da cidade não tem médicos nem ambulâncias funcionando.

Muitas pessoas passam horas esperando junto à estrada poeirenta os ônibus chineses que servem como o único meio de transporte público para El Tigre, importante polo petrolífero situado 60 quilômetros ao norte.

A professora Rosa Alvarez disse que cerca de metade dos alunos de primeiro grau que ela ensina pararam de ir às aulas por estarem com fome e que a escola não oferece mais comida com verba estatal.

Ela afirma que as autoridades governamentais ignoraram suas queixas, mas em maio o Ministério da Educação emitiu uma nova instrução: ensinar aos alunos as virtudes da nova criptomoeda do país.

Rosa ficou espantada. "Como explicarei isso a eles se ninguém me diz o que é um petro?", questionou. "Como eu compro um petro? Com quê?"