Um dos mais antigos diplomatas em
atividade no país, está desde 1977 no Governo, e autor de 14 livros, Almeida
critica na entrevista a seguir a ausência de diretrizes de Araújo – a quem
atribuiu ideias paranoicas –, ressalta que o ministro tem sido tutelado desde
que assumiu a função e que, politicamente, a visita de Jair Bolsonaro a Donald Trump, nesta semana, será a glória para o presidente
brasileiro.
Pergunta. Por que o senhor foi
demitido do IPRI?
Resposta. A razão aparente parece
estar ligada ao fato de eu publicar em meu blog pessoal (Diplomatizzando)
análises críticas sobre a política externa conduzida pelo atual chanceler. A
razão real parece ter sido minhas fortes críticas ao suposto mentor intelectual
desse chanceler, seu patrono na escolha para o Itamaraty, Olavo de Carvalho, a
quem eu chamei de “sofista da Virgínia” e de “Rasputin de subúrbio”, o que de
certa forma deixou-o desconfortável, pois costuma referir-se respeitosamente a
esse bizarro personagem, a quem chama de professor. As posturas antiglobalistas
defendidas por ambos constituem uma agenda impossível para qualquer serviço
diplomático, na medida em que alimentam paranoias reacionárias que não
encontram qualquer fundamento nas negociações internacionais nas quais se
engajam os diplomatas.
Uma outra razão que pode ter motivado minha exoneração
do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do
Itamaraty foi o fato de me ter referido a “fundamentalistas trumpistas”, que o
atual chanceler considerou como um ataque pessoal a ele, quando eu estava na
verdade visando pessoas mais influentes do que ele, entre elas um dos filhos do
atual presidente, Eduardo Bolsonaro, e o atual assessor internacional
da Presidência da República, Filipe Martins. O primeiro é considerado uma
espécie de “chanceler paralelo”, e passeou pelos Estados Unidos exibindo um
boné da campanha de “Trump 2020”, o que representa um grau de aderência
totalmente inadequada em termos de política externa responsável. Ademais, teve
a arrogância de declarar que o “povo brasileiro” apoiava a construção do muro pretendido
pelo presidente americano na fronteira com o México, o que é uma usurpação de
mandato. O segundo é um verdadeiro crente, um true believer em Olavo de Carvalho, mais
conhecido como “Robespirralho”, autor do discurso julgado extremamente fraco
feito pelo presidente em sua visita ao Fórum Mundial de Davos.
P. Qual a influência de Olavo
de Carvalho em sua demissão?
R. Não mais que indireta. A
despeito de eu me ter chocado com o “sofista da Virgínia” a propósito dessa
construção metafísica chamada antiglobalismo – como se tivesse de provar a
inexistência de unicórnios, o que ele pretende –, ele não teve nenhuma responsabilidade
direta na exoneração, tendo esta sido decidida pelo próprio chanceler,
provavelmente em conluio com Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins. Ficaram
agastados com minhas críticas a essas ideias bizarras dentro da agenda
diplomática.
R. Difícil fazer uma avaliação
sobre o que não existe. Não dispomos, até o momento presente, de nenhuma
exposição clara, completa, racional, sobre qual seria essa política externa,
até aqui marcada apenas por slogans: luta contra o globalismo, contra o
marxismo cultural, contra o multilateralismo, contra o climatismo, o comercialismo, coisas totalmente
bizarras, com efeito. Depois, essa introdução inócua de temas religiosos na
agenda diplomática, que tampouco se coaduna com a postura de um Estado secular,
como parece ser o Brasil. Em terceiro, e mais importante lugar, posturas
contrárias a um tratamento verdadeiramente diplomático do mais importante tema
da diplomacia brasileira no momento atual, a crise terminal do governo chavista
na Venezuela. Foram os militares que tiveram de reafirmar ao atual chanceler o
respeito a princípios constitucionais e de Direito Internacional relativos à não
intervenção nos assuntos internos de outros países, quando o chanceler estava
disposto a apoiar a aventura americana de forçar uma confrontação com o governo
chavista. Na última reunião do Grupo de Lima coube ao vice-presidente Hamilton
Mourão liderar a delegação brasileira, e de certa forma a posição dos demais
países da região, contrária a qualquer intervenção militar na Venezuela.
P. Já ouvi diferentes relatos
sobre a condução da política externa desse Governo. Dizem que ela é conduzida
pelo Eduardo Bolsonaro ou pelo Filipe Martins. Ou ainda que os militares
tutelam o ministro Araújo por meio do vice-presidente. Concorda com alguma
dessas versões ou teria uma quarta corrente?
R. No plano puramente
ideológico, ou principista, todos os três personagens, o chanceler e os dois
primeiros, demonstram adesão às ideias estapafúrdias de Olavo de Carvalho sobre
as relações internacionais, que são manifestamente inadequadas, e prejudiciais,
a uma condução racional da diplomacia brasileira. No plano prático, o chanceler
teve sua escolha apoiada e decidida pelos dois olavistas brasileiros, daí sua
total dependência em termos de sua legitimação no governo atual. Em
consequência do desconforto do núcleo militar com tais posturas inadequadas –
como a ideia inaceitável para os militares de uma base americana no Brasil, ou
a subserviência às posições do presidente americano – estabeleceu-se uma
espécie de cordão sanitário em torno do chanceler e do próprio Itamaraty,
inclusive porque o chanceler subverteu a hierarquia de comando no ministério,
algo que os militares consideram como inaceitável. Seria, como eles dizem, ter
coronéis mandando em generais. Eles também estão conscientes de que o Itamaraty
foi submetido a uma reforma orgânica imposta sem qualquer consulta à casa, o
que também causou desconforto geral. No conjunto, existe um comitê de tutela
informal exercido pelos militares sobre a política externa.
"Estabeleceu-se
uma espécie de cordão sanitário em torno do chanceler e do próprio
Itamaraty"
P. Pelo que o senhor acompanha,
como o Araújo chegou ao topo da carreira? Procede que ele conquistou o
presidente com o artigo Trump e o Ocidente?
R. Não é que ele conquistou o
Bolsonaro. O Bolsonaro não leu nada. Ele [Araújo] levou o artigo para o Olavo de Carvalho. Foi levado pelo Nestor Foster,
nosso ministro conselheiro em Washington, que é um olavista. Conheço o Nestor,
que é um bom funcionário, e que me deu um livro do Olavo, O Jardim das Aflições. Que é uma aflição ler, porque é
uma coisa caótica. O Olavo não tem método, ele tem rompantes, ideias. O
Ernesto, então, publicou esse artigo em minha revista sem que eu fizesse
qualquer censura. No artigo ele trata da decadência do Ocidente, que é algo
debatido por vários estudiosos, mas ele mete no meio aquela ideia de Cristo, de
Deus, que é uma coisa que você não consegue debater. Você consegue debater com
teóricos, historiadores, sobre o Ocidente em si, não a interferência de Deus.
No blog dele, o Metapolítica, ele disse que houve uma intervenção divina para
unir o Olavo e o Bolsonaro. Hoje, o que ele faz comigo é me denegar um direito
que ele teve no passado e ainda tem, o de debater suas ideias pessoais em um
blog. Na verdade, quem o colocou lá foram o Filipe Martins e o Eduardo
Bolsonaro. Sem nominá-los, em meu artigo, eu os chamei de fundamentalistas
trumpistas. O ministro achou que eu falava dele, mas não. Eu o considero um
personagem menor nesse jogo de poder. Ele construiu um perfil que não é o dele
para se elevar ao cargo de chanceler, mas é totalmente inseguro e não conseguiu
construir uma política externa até hoje.
P. Pelo fato de o senhor
considerá-lo menor, acredita que o ministro é manipulável?
R. Certamente que ele não vai
desatender sugestões do Eduardo Bolsonaro e do Filipe Martins, que são seus
promotores, nem do Olavo de Carvalho. Agora, o Olavo acaba de se desacreditar por si só com essa ordem de
que todos os seus alunos abandonem o Governo. Por um lado, ele tem essa
influência bolsonarista e olavista. De outro, ele está totalmente tutelado
pelos militares desde 1º de janeiro. Ele tratou da base americana no Brasil, o
que foi rebatido pelo Ministério da Defesa; ele defendeu o rompimento de
relações militares com o governo Maduro, o que deixou os militares brasileiros
irritados; e depois, com a Venezuela, em que ele aparentemente comprou a ideia
da agenda americana, de imposição de uma ajuda humanitária para tentar
desequilibrar o Governo chavista, o que não conseguiu. Nosso chanceler comprou
essa ideia e teve de ser controlado pelos militares, quando o general Mourão
foi o chefe de delegação na última reunião do Grupo de Lima e liderou a América
Latina na defesa da não intervenção militar na Venezuela. É uma coisa que
caberia a um diplomata. Está em nossa Constituição, nos princípios do direito
internacional. Ver um diplomata atuando antidiplomaticamente é uma coisa
inédita no Itamaraty.
P. Há uma submissão aos Estados
Unidos?
R. É algo alucinante pensar que
o chanceler não acate nossa Constituição, e isso os militares fizeram o favor
de lembrar, e tome atitudes voluntaristas e de apoio à postura americana que
não se coadunam com uma política externa sensata e razoável que o Brasil sempre
teve. Depois, as ideias bizarras expressas pelo chanceler são algo inédita em
diplomacia. Assista a aula
magna que ele deu no Instituto Rio Branco. É uma coisa constrangedora. Não faz
nem o sentido lexical, de frases completas.
P. Mas essa crítica, de que não
se consegue completar as ideias, é algo recorrente sobre os discursos do
presidente também.
R. O presidente está lá porque
foi eleito, tem a sua legitimidade. O chanceler, teoricamente, deveria conduzir
a política externa. Os diplomatas não têm a menor ideia do que esperar da
política externa brasileira. Só vejo arroubos. Nessa palestra no Rio Branco,
ele falou de comercialismo, de globalismo, contra o multilateralismo, a perda
da fé e de que não vamos apenas exportar café e minério, mas também crenças. É
algo inacreditável até no plano puramente operacional, primário, elementar.
P. Sem essa definição de uma
política externa, o que se pode esperar das relações comerciais do Brasil? Por
exemplo, a China abandona parte do mercado brasileiro para comprar dos
americanos.
"É
inaceitável para os militares essa subserviência aos Estados Unidos, assim como
para qualquer pessoa de bom senso"
R. Exato. A gente tem as ideias
aventadas pelo Paulo Guedes, de abertura econômica e liberalização
comercial que agora ficaram um pouco de escanteio por causa da reforma da
Previdência. Mas não vejo como será feita essa abertura econômica. Não se sabe
com quem vai se debater. O Brasil não conseguiu nem resolver como fará com o Mercosul, se ele continua como está, se
vai avançar para consolidar sua união aduaneira ou se vai recuar para um
simples projeto de zona de livre comércio. Todas essas alternativas têm seus
prós e contras na política comercial brasileira. Na nova estrutura do Governo,
publicada em janeiro, diz que o Ministério da Economia tem competência para as
negociações econômicas internacionais. E nas competências do Itamaraty, diz que
o Itamaraty participa das negociações econômicas internacionais. Ou seja, fomos
relegados a uma posição secundária, o que nunca ocorreu antes. O Ministério das
Relações Exteriores sempre teve preeminência nas negociações comerciais do
Brasil, ainda que a política comercial seja estabelecida pela Fazenda. Tem um
lado nebuloso nessas definições de políticas setoriais que até hoje não foi
resolvida. Não vi nenhuma declaração clara nem do chanceler nem do ministro da
Economia de como será conduzida a política comercial.
R. Aparentemente vai trazer o
acordo de salvaguardas tecnológicas, que está atrasado há 20 anos. É um acordo
para a utilização da base de Alcântara (no Maranhão). A boa relação dos
presidentes Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso trouxe esse acordo que
acabou sendo sabotada pelo PT, pelo próprio Bolsonaro e pelos partidos de
esquerda. Houve um relatório na Câmara do então deputado Waldir Pires, que
havia recusado esse acordo. Os deputados queriam ter transferência de tecnologia,
mas os Estados Unidos queriam preservar essas informações, que que é
absolutamente normal num mercado assimilado a construção de mísseis e
balísticas. Agora, parece que esse acordo vai sair. Na aula magna deste ano
para a turma do Itamaraty, o chanceler não conseguiu nem explicar o que seria
feito nas visitas aos Estados Unidos, Israel e Chile. Só disse coisas banais de
que se trata de relações importantes. Ele também criticou a China, várias vezes,
sem dizer o nome dela. É algo alucinante o que está acontecendo.
P. E sobre os Estados Unidos,
nada além do acordo de salvaguarda?
R. Algo que pode ser discutido
é a dispensa de vistos de americanos que visitam o Brasil, algo que pode ser
atacado pelos da esquerda, pelos nacionalistas e pelo pessoal que defende
reciprocidade estrita, o que é uma imbecilidade. Não tem reciprocidade estrita
nas relações internacionais, tudo é assimétrico. Nenhum país é igual ao outro.
Você não imagina que você tenha milhares de americanos que queiram vir ao
Brasil e se estabelecer ilegalmente. Uma família americana típica, um casal e
dois filhos, se pensa em viajar ao Brasil já tem de gastar de 600 a 700 dólares
só de visto. Com esse dinheiro eles já passam uma semana no Caribe. Então, o
visto talvez saia para os turistas e para a facilitação dos empresários nos
Estados Unidos. Não sei mais o que pode sair, de fato.
P. Politicamente para o
Bolsonaro, o que representa essa visita?
R. É a glória porque ele é uma espécie de Trump brasileiro. Ele tuita, ele
fala e aprova as posições do Trump. Falou que, assim como os Estados Unidos ia
trocar a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, falou que a China
compra o Brasil. Fico pensando o que a gente fez para merecer uma coisa dessa,
uma indefinição completa dos interesses do Brasil. Tanto que os militares se
encarregaram, mais uma vez, de cercear, de limitar, de controlar, de proibir
essa transferência da embaixada – que constrangeu os exportadores de carne halal, a ministra da Agricultura teve de intervir –
atacar a China é outra bobagem monumental e a questão da relação muito próxima
com os Estados Unidos é uma subserviência, que nosso chanceler demonstra. É
inaceitável para os militares essa subserviência aos Estados Unidos, assim como
para qualquer pessoa de bom senso.
P. O senhor está sem função
nenhuma no Itamaraty. Está indo só “bater o ponto”, sem trabalho algum?
"As
ideias bizarras expressas pelo chanceler são algo inédita em diplomacia"
R. Vou para a biblioteca, que é
o que eu fiz durante anos no lulopetismo. Aliás, tenho de agradecer ao Celso
Amorim [ex-chanceler] e ao Samuel Pinheiro Guimarães [ex-secretário-geral] por
terem me dado a oportunidade de escrever dois ou três livros no período em que
fiquei sem função alguma. De 2006 a 2010 eu só frequentava a biblioteca. Depois
tirei uma licença, fui dar aula em Paris e ocupei um cargo secundário em um
consulado nos Estados Unidos. Só voltei a ter algum cargo após o impeachment da Dilma Rousseff. Agora, voltarei ao
"departamento de escada e corredores".
P. Mas o senhor fará pesquisas,
sem produzir diretamente para o Itamaraty ou para qualquer outro órgão do
Governo, que paga o seu salário. É isso?
R. É uma irregularidade
administrativa que precisa ser resolvida pelo Itamaraty. Acredito que o Tribunal de Contas da União não admite que você receba
sem trabalhar. Então cabe ao Itamaraty me dar uma função. Em toda a gestão
lulopetista eu sempre fui ao chefe de administração e dizer que estava disposto
a trabalhar. E, apesar de promessas, não me davam
nada.