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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty - livro quase pronto, Paulo R. de Almeida

Acabo de terminar a revisão deste meu livro: agora é esperar a diagramação e confecção de capa, para o lançamento.

ALMEIDA, Paulo Roberto.
Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty – Brasília: Edição do Autor, 2019.
100 p.


1. Política externa brasileira. 2. Relações internacionais. 3. Ideologias. 4. Itamaraty. 5. Diplomacia. 6. Paulo Roberto de Almeida.
Aguardem...

Sumário
  
Prefácio: onde está a política externa do Brasil?    11

1. Miséria da diplomacia, ou sistema de contradições filosóficas  17
     1. No reino das contradições filosóficas    17
     2. Quanto à forma de designação do chanceler     19
     3. Quanto à natureza do personagem designado   21
     4. Quanto à substância de alguns temas da agenda diplomática    23

2. O Ocidente e seus salvadores: um debate de ideias   27
     1. A decadência e o Ocidente: algum perigo iminente?  27
     2. Quais são as “teses” principais de “Trump e o Ocidente”?   30
     3. O grande medo do Ocidente cristão: realidade ou paranoia?  32
     4. Contradições insanáveis no projeto de salvamento do Ocidente cristão   34

3. O marxismo cultural: um útil espantalho?   37
     1. O renascimento de uma tendência: a parábola do marxismo cultural  37
     2. A trajetória do socialismo: o elefante que voou, via opressão dos trabalhadores 39
     3. O genérico substituto do gramscismo: em socorro do socialismo   41
     4. O marxismo cultural salvo do declínio pela paranoia da direita? 44

4. A destruição da inteligência no Itamaraty: dialética da obscuridade 47
     1. No começo era o verbo, depois fizeram-se as trevas...     47
     2. Nas origens da metapolítica: o romantismo alemão que derivou para o nazismo 49
     3. Tribulações de um antiglobalista improvisado: supostas “ameaças” ao Brasil   51
     4. Dialética da obscuridade: a diplomacia do antiglobalismo   60

5. O globalismo e seus descontentes: notas de um contrarianista   63
     1. Fixando os termos do debate: a contracorrente do pensamento único  63
     2. Nota pessoal do ponto de vista de quem pratica ativamente o ceticismo sadio  64
     3. Globalização real e globalismo surreal: da física à metafísica    66
     4. Do lado da direita: todo globalismo será castigado, mesmo sem doutrina   69
     5. Teorias conspiratórias sobre o globalismo: déjà vu, all over again  71
     6. A contrafação dos neo-Illuminati no Brasil: globalismo, climatismo, marxismo  73

6. A revolução cultural na diplomacia brasileira: um exercício demolidor  77
     1. Euforia e tragédia das revoluções culturais     77
     2. O pequeno salto para trás do chanceler   79
     3. A revolução cultural na prática    82

Apêndices:
Por que sou um contrarianista?    87
Breve nota biográfica: Paulo Roberto de Almeida    92
Livros e trabalhos de Paulo Roberto de Almeida   94


Prefácio: onde está a política externa do Brasil?


Este meu livro pode ser lido na sequência de dois outros anteriores sobre o mesmo tema: a diplomacia brasileira (tenho alguns outros, no meio, não exatamente neste mesmo campo): Nunca Antes na Diplomacia…: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014; e-book: 2016) e Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019). Com uma peculiaridade, porém: como esse último, este tampouco teria vindo à luz, se não fosse pelo fato singelo, mas que pode ocorrer em carreiras hierarquizadas e disciplinadas como a diplomática, de eu ter sido exonerado, no Carnaval deste ano, do cargo que ocupei no Itamaraty, entre 3 de agosto de 2016 e 4 de março último, como diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI) do Itamaraty.
Como revelado no pequeno texto em apêndice, “Por que sou um contrarianista?”, tenho essa característica de manter uma atitude que eu chamo de “ceticismo sadio” desde a minha já longínqua adolescência, quando comecei a contestar aquilo que Gustave Flaubert, no Dictionnaire des Idées Reçues, chamava de verdades de senso comum. Sempre fui um contestador das verdades aparentes, até conseguir comprová-las por meio de um estudo mais inquisitivo, de evidências empíricas, de uma pesquisa sobre os seus fundamentos, raízes e derivações. Daí, também, essa outra característica que sempre mantive, desde essa época: o ato de anotar todas as leituras de estudo, de encher cadernos e mais cadernos de notas com resenhas, resumos de palestras, projetos de trabalho e tudo o mais que se apresentasse de intelectualmente interessante ou apetitoso.
Ainda conservo a maior parte desses cadernos – alguns perdidos em viagens, ou esquecidos em livrarias –, nos últimos anos, ou décadas, substituídos por registros eletrônicos em meu computador, que, no entanto, não substituem os dois Moleskines de bolso que sempre carrego comigo, um médio, para o paletó, outro menor, no bolso da camisa. Praticamente todos os meus livros brotaram dessas notas meticulosamente rabiscadas nesses cadernos ou cadernetas, inclusive a tese de doutoramento, que exigiu vários cadernos – cada um para cada assunto – e muitos outros livros espalhados pela mesa e pelo chão.
Mas, justamente pelo fato de ser um contrarianista, eu posso expressar certas opiniões e argumentos que se chocam com certas verdades de senso comum, ou opiniões de superiores hierárquicos. Pois foi justamente o que ocorreu recentemente, e que motivou a publicação destes dois livros mais recentes. Estava eu tranquilamente trabalhando no IPRI – uma espécie de think tank da diplomacia brasileira, mas com pouco think e nenhum tank –, quando fui surpreendido pela minha exoneração, decidida em pleno Carnaval pelo chanceler do governo Bolsonaro pelo simples motivo que eu resolvi ser contrarianista em relação às ideias de senso comum, mas absolutamente bizarras, que ele vinha expressando desde antes de ser designado – por obra e graça de um guru da Virgínia – para o cargo máximo da diplomacia brasileira.
Eu já esperava ser substituído naquele cargo, por notória incompatibilidade com a política externa que se anunciava desde meados de 2018, mas não esperava que tal ato se efetivasse de maneira tão rápida e tão abrupta. O fato é que essa exoneração me aliviou enormemente: eu me sentiria muito desconfortável em servir uma administração que, tanto quanto a diplomacia do lulopetismo, eu já julgava, antes mesmo do seu início, que seria nefasta do ponto de vista dos bons padrões sempre preservados pelo corpo profissional do Itamaraty. Esse selo de qualidade vem sendo atualmente conspurcado pela intromissão de amadores ou lunáticos, que trouxeram temas e posturas absolutamente desprovidos de sentido para a política externa, como o surrealismo do antiglobalismo, a novidade do anticlimatismo, um estranho anticomercialismo, a luta contra a ideologia de gênero e várias outras bobagens.
Já paralisado desde o início do governo por uma ordem tão estúpida quanto obscurantista – a de não empreender nenhuma atividade no IPRI, até que as “altas chefias” decidissem o que eu poderia ou não fazer, como se eu fosse apenas um executor de ordens superiores –, tive algum tempo, nas semanas anteriores ao Carnaval, para reunir alguns textos que repousavam em meu computador desde a publicação daquele primeiro, o Nunca antes na diplomacia, publicado em 2014. Os escritos cobriam os dois anos finais do lulopetismo diplomático e os dois seguintes, do governo de transição, uma transição para algo que ainda não sabíamos, exatamente, como seria. Os textos estavam todos reunidos, mas eu não sabia, com precisão, se iria publicar em seguida, tanto que a compilação sequer tinha título.
Pois, foi surpreendido pela exoneração intempestiva, que resolvi achar um título e publicar rapidamente esse livro, que de toda forma se estendia unicamente até o final de 2018, sem sequer tocar na nova administração, que eu já imaginava tempestuosa. O título definido, de forma algo provocadora, foi esse: Contra a Corrente: ensaios contrarianistas..., o que reflete exatamente meu ceticismo sadio e meu espírito levemente provocador em relação às verdades estabelecidas.
O presente livro sequer deveria existir, pois eu normalmente preparo muitas notas, faço reflexões, formulo um primeiro esquema e só depois me decido a empreender uma nova obra. Esta aqui traz, portanto, as marcas da rapidez, mas não do improviso. Desde meados de 2018, ao ler absolutamente de tudo – como digo sempre, da extrema esquerda à extrema direita, com muita bobagem pelo caminho –, eu já estava tomando notas sobre alguns dos absurdos que vão aqui comentados, mas não pretendia publicar nada de muito crítico antes de considerar que era chegada a hora, talvez no meio do mandato, salvo acidente de percurso. Os absurdos, primeiro os conceituais, depois os práticos, foram se acumulando, mas eu procurei guardar as peças analíticas para o futuro, contentando-me em reportar matérias de imprensa e trabalhos de terceiros. Alguma provocação pode ter ocorrido, quando eu reagi a bobagens desmesuradas do sofista da Virgínia – o patrono, repito, do chanceler designado – e me referi também a “fundamentalistas trumpistas” (o que estava dirigida ao assessor da Presidência em temas internacionais, mas o chanceler tomou a carapuça para si). O simples fato de ter reproduzido em meu blog, na madrugada do domingo de Carnaval, 3 de março, uma conferência do embaixador Rubens Ricupero especialmente crítica em relação à política externa, mais um artigo do ex-chanceler, ex-ministro da Fazenda e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, seguidos de uma resposta do próprio chanceler, tecendo ásperas críticas a ambos, trouxe a fúria do Olimpo: zás, no Carnaval...
Depois que fiquei livre das arbitrariedades dos novos mandarins – como a de proibir-me de trabalhar, e a de pretender censurar ex-post materiais do governo passado, o que eles deliberadamente fizeram – decidi reunir minhas observações eletrônicas e de cadernos e publicar este livro, que adota um outro título provocativo, mas que remete à minha herança de marxista cultural, quando na juventude eu lia toda a literatura hoje condenada pelos novos donos do pensamento único. Marx, em seu primeiro exílio, em Paris, escreveu uma réplica ao livro de Proudhon, Philosophie de la Misère, a quem ele chamou de “socialista utópico”.
Este meu Miséria da Diplomacia se dirige ao diplomata utópico que ocupa hoje a cadeira de Rio Branco – um realista objetivo –, mas não só a ele: considero que o chanceler se situa no terceiro escalão da cadeia alimentar da diplomacia brasileira, uma vez que ele ali se encontra apenas por ser um fiel servidor de certas “teses” – se este termo nobre se aplica – disseminadas naquele espectro difuso que já se convencionou chamar de olavo-bolsonarismo. Essa alcunha, sem qualquer respaldo em qualquer escola “filosófica”, cobre um amálgama insosso de posturas dúbias e opções francamente risíveis, tendo em conta não apenas os padrões tradicionais com que sempre trabalhou a diplomacia profissional, mas os interesses nacionais tão simplesmente.

Venho agora ao título deste prefácio: onde está a política externa do Brasil? Confesso que não sei. Nas horas e dias seguintes à minha exoneração do cargo de diretor do IPRI, vários jornalistas quiseram saber os motivos da demissão e a minha opinião sobre a política externa do Itamaraty. Tive de perguntar a eles: vocês conhecem alguma? Digam-me qual é, para que eu possa avaliar. Passados três meses, desde então, já existem algumas luzes, onde antes só havia frases em latim, grego e alemão, nenhuma muito esclarecedora sobre a política externa enquanto tal. Essas poucas luzes resultam apenas da necessidade de fazer ou falar algumas coisas, em função da agenda externa, não que tenhamos tido uma exposição clara, abrangente, sobre quais são, ou deveriam ser, as prioridades da política externa – além de lutar contra o marxismo cultural e a ideologia de gênero – em relação aos grandes itens da agenda internacional, dos compromissos regionais ou das oportunidades bilaterais.
O fato é que nunca, repito, nunca, nos foi oferecida uma apresentação abrangente, sistemática, completa, de qual seria a estratégia internacional do Brasil, quais as prioridades regionais e multilaterais, como pretendemos organizar a abertura econômica e a liberalização comercial, o que fazer com o Mercosul, como resolver os desafios da inserção global do país nos grandes circuitos da economia mundial, as relações com os vizinhos e todo o resto. Recapitulando: o discurso de inauguração do presidente apresentou poucas diretivas, apenas a da “política externa sem ideologia” e um comércio exterior idem. Já o discurso de posse do chanceler foi do grego ao latim, e até ao tupi-guarani, para dizer que tínhamos sido muito subservientes com o marxismo cultural e que cabia “libertar o Itamaraty” de todas as nefastas influências que subsistiam – descobrimos depois – desde os tempos do Barão do Rio Branco. Entre Tarcísio Meira e Raul Seixas, aprendemos que temos de nos desvencilhar da “ordem global”, e até fomos confrontados a algo vergonhoso para nós, diplomatas: a notícia de que a política externa “estava presa fora do Brasil”.
Aparentemente, o chanceler acidental ainda não conseguiu desvencilhá-la dos inimigos externos e trazê-la de volta ao país, pois ele continua insistindo no tal de marxismo cultural, o que foi mais um motivo para este meu retorno a Marx. Mas o fato é que, desde então, aguardamos uma manifestação mais concreta sobre qual seria essa política externa até aqui desconhecida de meus colegas diplomatas e dos brasileiros. O que tivemos, de modo altamente diáfano, foram eflúvios bizarros contra o globalismo, sustentados naquelas teorias conspiratórias do guru da Virgínia, que parece ter sido um grande eleitor do atual governo e que continua dando as cartas em certas áreas. Todo o resto foram recuos e tergiversações. Base militar americana no Brasil, como se anunciou no primeiro dia do governo? De forma nenhuma, alertaram os militares! Mudança da embaixada em Israel para Jerusalém? Alto lá, gritaram os agricultores e exportadores de carne halal para países islâmicos! Denúncia do Acordo de Paris? Mas os ecologistas e os próprios empresários já disseram que ele é até positivo para o Brasil e não implica em nenhuma renúncia de soberania. E onde está a China “maoísta” que representaria, supostamente, uma ameaça para nossa soberania? Essa China já não existe há mais de 40 anos: os chineses só querem importar matérias primas, exportar manufaturados, assegurar a sua segurança alimentar e energética, coisas que o Brasil pode fazer muito bem (com mais investimentos... chineses). Alinhar-se a Trump para “salvar o Ocidente”? Qual é o maluco que acredita numa coisa dessas?
O tema mais relevante das relações regionais, a terrível crise na Venezuela, recebeu num primeiro momento um tratamento pouco diplomático: primeiro a recusa de qualquer diálogo com o governo ditatorial; depois a “instrução” dada a nossos diplomatas em Caracas de que eles deveriam reportar-se unicamente a Guaidó, não a Maduro, quando aquele não tem qualquer controle sobre os mais modestos mecanismos administrativos do país; em seguida, a ruptura de quaisquer relações militares com os bolivarianos, o que justamente irritou nossos militares e levantou os alarmes ao seio do núcleo mais racional do atual governo. As inconsistências nessa área foram tantas que logo instalou-se um “cordão sanitário” em torno do chanceler para impedi-lo de fazer aquilo que está expressamente proibido pela Constituição: imiscuir-se nos assuntos internos de outros países, como planejado com a adesão ao plano americano de forçar a introdução de ajuda humanitária em território venezuelano. Foi preciso que o vice-presidente Mourão se tornasse o chefe da delegação brasileira na reunião do Grupo de Lima de Bogotá para impedir mais algum gesto tresloucado do chanceler: apoiar alguma aventura militar contra o nefando regime chavista-madurista.
Volto a perguntar: onde está a política externa do Brasil? Nos ridículos destemperos olavistas contra o globalismo? Na luta contra o marxismo cultural? Numa aliança com todos os regimes direitistas e xenófobos da Europa e com Trump? Na denúncia do Pacto Global das Migrações, quando o Brasil justamente possui dez ou vinte vezes mais emigrantes do que imigrantes e esse instrumento não afeta em nada nossa soberania? Um desses tresloucados chegou até a dizer nos EUA que os brasileiros apoiam a construção do muro que Trump continua insistindo em erigir na fronteira com o México!
O que pretende, exatamente, o chanceler? Ele começou subvertendo toda a hierarquia do Itamaraty, colocando “coronéis” dando ordens a “generais”, ou seja, ministros de segunda classe comandando embaixadores mais experientes, Depois impôs uma reforma autoritária, feita secretamente no bunker do governo de transição, inclusive por amadores externos, e alterou significativamente estruturas mais racionais, ainda que extensas, da administração anterior. Os EUA constituem agora um departamento exclusivo, mas a Europa encontra-se relegada à vala comum da África e do Oriente Médio, já que ela seria um “vazio cultural”, segundo um artigo surrealista publicado nos Cadernos de Política Exterior do IPRI, que eu dirigia até ser exonerado. Mas, e como fica a recomendação de ler menos o New York Times? Certas pessoas não se pejam do ridículo...
Sobre a minha exoneração, não há muito mais a ser dito. Permito-me apenas registrar que o chanceler atual pretendeu negar-me a mesma liberdade de opinião que ele teve, na gestão Aloysio Nunes, e que ainda tem, para alimentar seu blog com vituperações direitistas, quando ele nada tinha feito nos 13 anos da hegemonia companheira, durante os quais eu não tive nenhum cargo na Secretaria de Estado, fazendo da biblioteca do Itamaraty o meu escritório de trabalho, Foi num destempero que decidiu punir-me no direito de alimentar um blog com materiais que, aliás, são veiculados nos próprios clippings de notícias da Casa. Fui exonerado do IPRI, mas sigo sendo funcionário do Estado, agora humildemente lotado na Divisão do Arquivo do Itamaraty.
Cabe talvez um aviso aos que pretendem cercear-me a liberdade de opinar e de debater ideias e posturas da diplomacia brasileira. A despeito de várias punições funcionais, por publicar artigos que eu sempre entendi adequados à minha condição de diplomata e de acadêmico, creio ter adquirido o direito de dissentir das verdades reveladas. Depois do meu livro de 2014 – Nunca Antes na Diplomacia – e do seguinte, poucos meses atrás – Contra a Corrente: ensaios contrarianistas..., 2014-2018 –, este Miséria da Diplomacia pretende, como todos os outros, deixar registro de minhas reflexões sobre um método, o da diplomacia, e sobre um conteúdo, o da política externa.
O tempo que agora passarei na Divisão do Arquivo me permitirá consultar velhos maços de documentos históricos, em vista de mais um livro sobre a fase republicana da diplomacia econômica do Brasil, na primeira metade do século XX, até Bretton Woods. Mas não deixarei de acumular também material sobre o tempo presente, a história imediata, tantos são os desafios para, primeiro entender, depois interpretar a diplomacia miserável que estão obrigando os diplomatas profissionais a executar.
Esses novos materiais ficam reservados para um próximo livro, que não sei quando virá. Tudo depende das circunstâncias e do estado da nossa diplomacia...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de julho de 2019

Nota: Todas as opiniões aqui expressas são da inteira responsabilidade deste autor, não coincidindo necessariamente com as posições do órgão público cujos quadros o autor integra nem de qualquer outro órgão do governo brasileiro.

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Uma cegueira persistente – o sentimento de uma superioridade ilusória – mantém a ideia de que todos os países de grande extensão existentes em nosso planeta devem seguir um desenvolvimento que os levará ao estado dos sistemas ocidentais atuais, teoricamente os melhores, praticamente os mais atrativos; que todos os demais mundos estão apenas impedidos temporariamente – por causa de governantes malvados ou por graves desordens internas, ou por barbárie e incompreensão – de se lançar na via da democracia ocidental, com partidos múltiplos, e de adotar o modo de vida ocidental. E cada país é julgado segundo seu grau de avanço nessa via. Mas, na verdade, esta concepção nasceu da incompreensão pelo Ocidente sobre a essência dos demais mundos, que são abusivamente medidos segundo o padrão ocidental. O cenário real do desenvolvimento em nosso planeta tem pouco a ver com isso.

Alexandre Soljenitsyn, discurso na 327ª. formatura na Universidade de Harvard, junho de 1978.

Este livro é dedicado a Carmen Lícia Palazzo, companheira exemplar de toda uma vida e de todas as nossas jornadas, plenas de viagens, de aventuras e de muitas leituras, com todo o meu amor...
Também a Pedro Paulo e Maira, e aos nossos netos queridos, Gabriel, Rafael e Yasmin, que encantam doravante nossas jornadas de felicidade, com a promessa de novas aventuras, de viagens, de mais leituras, com todo o nosso amor.


ACNUR: 71 milhões de refugiados no mundo

Número de pessoas deslocadas no mundo chega a 70,8 milhões, diz ACNUR

Famílias venezuelanas cruzam o rio Tachira em busca de comida e segurança em Cúcuta, na Colômbia. Foto: ACNUR/Vincent Tremeau
Famílias venezuelanas cruzam o rio Tachira em busca de comida e segurança em Cúcuta, na Colômbia. Foto: ACNUR/Vincent Tremeau
O número de pessoas fugindo de guerras, perseguições e conflitos superou a marca de 70 milhões em 2018. Este é o maior nível de deslocamento forçado registrado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em suas quase sete décadas de atuação — o organismo internacional foi criado em 1950.
Dados divulgados nesta quarta-feira (19) no relatório Tendências Globais — publicação anual do ACNUR — revelam que 70,8 milhões de pessoas estão em situação de deslocamento forçado no mundo. O número representa um aumento de 2,3 milhões na comparação com 2017 e se aproxima das populações de países como Tailândia e Turquia. O contingente também equivale ao dobro dos deslocados forçados registrados 20 anos atrás.
O ACNUR estima ainda que, no ano passado, 13,6 milhões de pessoas tiveram de se deslocar devido a conflitos e perseguições. Isso significa que em 2018, a cada dia, 37 mil pessoas tiveram que abandonar o lugar onde residiam em busca de segurança. Nesse grupo, estão incluídos indivíduos que já estavam em situação de deslocamento forçado e por isso não entram no cálculo do aumento líquido de deslocados forçados — estimado em 2,3 milhões.
Os 70,8 milhões de deslocados forçados no mundo são uma estimativa conservadora, sobretudo porque o número reflete apenas parcialmente a crise na Venezuela. Cerca de 4 milhões de venezuelanos já saíram de seu país desde 2015, tornando essa uma das mais recentes e maiores crises de deslocamento forçado do planeta. Embora a maioria dessa população necessite de proteção internacional para refugiados, apenas meio milhão tomou a decisão de solicitar refúgio formalmente.
“O que os dados revelam é uma tendência de crescimento no longo prazo do número de pessoas que necessitam de proteção por causa de guerras, conflitos e perseguições. Se a linguagem sobre refugiados e migrantes é frequentemente sectarista, também testemunhamos uma imensa onda de generosidade e solidariedade, vinda especialmente das comunidades que acolhem refugiados”, afirmou o alto-comissário das Nações Unidas para Refugiados, Filippo Grandi.
“Percebemos também um engajamento sem precedentes de novos atores, como agências de desenvolvimento, empresas privadas e indivíduos – que não somente refletem, mas também exemplificam o espírito do Pacto Global sobre Refugiados”, acrescentou o dirigente.
O chefe do ACNUR disse ainda que “precisamos agir a partir destes exemplos positivos e redobrar nossa solidariedade com aqueles milhares de inocentes que são forçados a saírem de suas casas todos os dias”.

Decifrando os números do deslocamento forçado

Entre os 70,8 milhões de deslocados forçados, existem três grupos distintos. O primeiro é de refugiados, que são pessoas forçadas a sair de seus países por causa de conflitos, guerras ou perseguições. Em 2018, o número de refugiados chegou a 25,9 milhões de pessoas em todo o mundo, 500 mil a mais do que em 2017. Nesse cálculo, também estão incluídos os 5,5 milhões de refugiados palestinos sob o mandato da Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA).
De acordo com a publicação do ACNUR, mais de dois terços de todos os refugiados vêm de apenas cinco países:
  • Síria — 6,7 milhões;
  • Afeganistão — 2,7 milhões;
  • Sudão do Sul — 2,3 milhões;
  • Mianmar — 1,1 milhão;
  • Somália — 900 mil.
Os países que acolhem os maiores contingentes de refugiados são:
  • Turquia — 3,7 milhões;
  • Paquistão — 1,4 milhão;
  • Uganda — 1,2 milhão;
  • Sudão — 1,1 milhão;
  • Alemanha — 1,1 milhão.
Segundo a agência das Nações Unidas, aproximadamente quatro em cada cinco refugiados vivem em países vizinhos às suas nações de origem.
O ACNUR aponta ainda que metade da população global de refugiados é composta por menores de 18 anos de idade. Das crianças e adolescentes analisados pelo relatório, 138,6 mil estavam desacompanhados ou haviam sido separados dos seus responsáveis. O número se divide em 111 mil meninos e meninas considerados refugiados em 2018 e 27,6 mil que solicitaram asilo individualmente ao longo do ano passado.
O segundo grupo documentado pelo relatório é o de solicitantes de refúgio – pessoas que estão fora de seus países de origem e que estão recebendo proteção internacional enquanto aguardam a decisão sobre os seus pedidos de refúgio. Até o final de 2018, havia 3,5 milhões de solicitantes de refúgio no mundo.
O terceiro e maior grupo é composto por 41,3 milhões de pessoas que foram forçadas a sair de suas casas, mas permaneceram dentro de seus próprios países. Normalmente, são chamados de deslocados internos, ou IDPs, na sigla em inglês.
Em geral, o crescimento do descolamento forçado acontece num ritmo maior que o das soluções encontradas para as pessoas forçadas a migrar. Para os refugiados, a melhor solução continua sendo retornar para sua casa voluntariamente, com segurança e dignidade. Outras soluções incluem a integração nas comunidades de acolhida ou o reassentamento em um terceiro país.
Em 2018, apenas 92,4 mil refugiados foram reassentados — número que representa menos de 7% dos que precisam desta solução. Também no ano passado, em torno de 593,8 mil refugiados puderam retornar para casa, enquanto 62,6 mil se naturalizaram.
“Em qualquer situação envolvendo refugiados, não importa onde ou há quanto tempo ela está se prolongando, é necessário que haja uma ênfase em soluções duradouras e na remoção de obstáculos para que pessoas possam retornar para suas casas”, afirmou Grandi.
“Este é um trabalho complexo, no qual o ACNUR está constantemente engajado, mas que também requer que os países se unam com um propósito em comum. Este é um dos maiores desafios dos tempos atuais.”

Grandi pede política de portas abertas para venezuelanos

Em meio a relatos de que o Peru tornou mais rígidas as restrições para venezuelanos que tentam entrar no país, Grandi alertou para o risco de que outros países, mais próximos da Venezuela, como o Equador e a Colômbia, sigam o exemplo. Autoridades peruanas estão exigindo que os refugiados e migrantes apresentem passaporte e visto para atravessarem a fronteira. Antes, era possível ingressar no território peruano com documentos básicos, como a carteira de identidade.
O alto-comissário da ONU explicou que os venezuelanos na fronteira são pessoas que estão fugindo e, por isso, têm dificuldade em acessar os documentos de seu país de origem. Grandi ressaltou que era “contraintuitivo” pedir passaportes e vistos para venezuelanos refugiados ou em condição semelhante a de refugiados.
“O Peru é o segundo maior acolhedor de venezuelanos depois da Colômbia, e eles estão realmente sobrecarregados pela presença de todas essas pessoas e eles têm a minha plena compreensão quanto a isso”, disse o chefe do ACNUR a jornalistas.
“Mas nós os instamos a fazer como a Colômbia, Equador e Brasil e a manter as suas fronteiras abertas porque essas pessoas realmente estão em necessidade de segurança ou proteção.”
Grandi insistiu que uma política de portas abertas era essencial para lidar com os deslocamentos de venezuelanos. O alto-comissário traçou paralelos entre o cenário latino-americano e a chegada de refugiados e migrantes à Europa em 2015, quando “você tinha uma fronteira fechando atrás da outra”.
“Há muitos riscos nisso e eu gostaria de usar essa oportunidade para apelar a esses países (da América Latina). Eu sei que estou lhes pedindo muito, mas é o meu trabalho apelar a esses países para que mantenham as suas fronteiras abertas.”
Acesse o relatório Tendências Globaisna íntegra clicando aqui.
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No Brasil
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quinta-feira, 4 de julho de 2019

Controversias de cupula no meio ambiente: Bolsonaro rejeita interferencia de Merkel e Macron

Bolsonaro diz que Merkel e Macron não têm autoridade para discutir questão ambiental

Da IstoÉ, 4/07/2019
Marcos Corrêa/PR
O presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar a pressão dos governos francês e alemão sobre a política ambiental brasileira na manhã desta quinta-feira, 4, durante café da manhã com deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). “Em Osaka, no G-20, convidei Emmanuel Macron e Angela Merkel para sobrevoar a Amazônia. Se eles encontrarem um km² de desmatamento entre Boa Vista e Manaus concordaria com eles na questão ambiental. Sobrevoei a Europa, já por duas vezes, e não encontrei um km² de floresta. Diante disso, Merkel e Macron não têm autoridade para discutir questão ambiental com Brasil”, disse o presidente, sendo aplaudido pela bancada ruralista presente no encontro.
Ao falar sobre a ausência de autoridades dos países europeus na questão ambiental, o presidente citou que a Alemanha não vai cumprir o acordo de Paris no tocante à energia fóssil e garantiu que o Brasil tem “quase tudo para cumprir o Acordo”. “Faremos o que for possível”, prometeu.
Bolsonaro disse que a maneira do Brasil se portar durante o mundo mudou. “Durante décadas, com conivência de chefes de Estado, tivemos um péssimo conceito ambiental no exterior. Agora, isso não vai continuar”, defendeu, citando que os chefes de Estado da Alemanha e da França “achavam” que estavam tratando com governos anteriores em Osaka.
“Esses chefes de Estado, achavam que iam chegar no Brasil demarcando dezenas de áreas indígenas, quilombolas e de proteção após a reunião. Macron, por exemplo, queria que anunciasse junto com Raoni (Metuktire, líder indígena) decisões para questões ambiental. Dei um rotundo não ao Macron sobre reunião com Raoni”, relatou o presidente.

Politica externa brasileira se tornou altamente imprevisivel - Oliver Stuenkel (DW)

 "Com Bolsonaro, política externa se tornou uma caixa de surpresas"

Entrevista com Oliver Stuenkel por Fernando Caulyt

Deutsche Wellle, 1/07/2019


Em seis meses, governo Bolsonaro provocou ruptura na política externa, marcada por distanciamento do multilateralismo e imprevisibilidade. Mudança gerou preocupação na comunidade internacional, avalia cientista político.

Jair Bolsonaro completa seis meses na Presidência do Brasil nesta segunda-feira (01/07) e, até agora, sua política externa pode ser caracterizada pela maior ruptura vista na política externa brasileira nos últimos cem anos, avalia Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em entrevista à DW Brasil, Stuenkel destaca que o país abandonou uma postura voltada para o multilateralismo e passou a adotar uma política externa altamente imprevisível.

"Há uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China, Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade internacional", afirma.

Para o cientista político, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é "um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de fazer declarações absurdas e causar danos". "Parece-me bastante provável que o país continue passando vergonha com frequência nos próximos anos", comenta.

- DW Brasil: Como você avalia os seis primeiros meses de Bolsonaro em relação à política externa?
- Oliver Stuenkel: Nós vimos uma grande ruptura na política externa. Ela mudou em duas dimensões: o posicionamento externo do Brasil se alterou totalmente, o país deixou de enfatizar o multilateralismo como estratégia preferida da sua política externa e se alinhou mais a países que têm um profundo ceticismo quanto ao sistema multilateral. Assim, o Brasil faz uma rejeição mais ampla ao multilateralismo e tem posturas que colocam o país como parte do campo antiglobalista. Eu diria que é a mudança mais profunda na política externa em pelo menos cem anos.

A segunda grande mudança é que a política externa se tornou altamente imprevisível. Antes, havia uma previsibilidade sobre o comportamento brasileiro no palco internacional. E, agora, em função da briga constante entre três grupos [os militares, os "olavistas" e os tecnocratas], a política externa se tornou uma caixa de surpresas – e isso, no âmbito internacional, reduz muito a capacidade brasileira de assumir liderança e de influenciar outros países. Pouco indica que isso mudará ao longo dos próximos anos. Além da mudança de posicionamentos, há uma incerteza em relação a o que o Brasil pensa quanto à China, Mercosul e Oriente Médio, gerando uma grande preocupação da comunidade internacional em relação ao papel e à estratégia brasileira.

- Mas o Brasil sempre se beneficiou do sistema multilateral.
- Toda a lógica da política externa brasileira se baseia na crença de que um sistema multilateral forte é benéfico para o Brasil, porque o multilateralismo, de certa maneira, ajuda a mitigar o impacto da geopolítica. É consenso também que o Brasil tem sido, ao longo das últimas décadas, o país que mais se beneficiou desta ordem multilateral, porque é uma nação que tem forte influência nestas instituições, que conhece muito bem suas regras e sabe interpretá-las para aumentar sua influência. E Bolsonaro iniciou um processo para combater justamente este sistema que beneficiou tanto o país, e este governo não apresentou ainda uma resposta crível às suas alegações de que o globalismo limita a autonomia do Brasil, apesar de Brasília ter uma grande capacidade de influenciar as regras do jogo.

- Quais são as consequências dessa falta de rumo na política externa para a região e a comunidade internacional?
- Fica evidente que é cada vez mais difícil contar com o Brasil, porque, como o posicionamento brasileiro não está totalmente claro e nunca se sabe qual grupo interno irá se impor, Brasília é chamada cada vez menos para iniciativas. Um exemplo recente é a lançada pela Alemanha e pela França em defesa do multilateralismo, à qual foram chamados países como Argentina, Austrália, Canadá e Coreia do Sul – quer dizer, potências médias que têm interesse em defender o multilateralismo. O Brasil não foi chamado, e isso é inédito. Brasília participará menos de novas iniciativas, porque até mesmo países antiglobalistas, como os EUA, têm dúvidas sobre a capacidade de Bolsonaro implementar políticas de maneira coerente no âmbito externo.

Os seis primeiros meses do governo foram caracterizados por declarações polêmicas – como a de que o nazismo foi de esquerda – e manobras para cumprir parcialmente promessas eleitorais, como a abertura de um escritório comercial em Jerusalém em vez da transferência da embaixada brasileira para a cidade.

Essas afirmações mostram que, além do radicalismo do governo, há também claramente uma falta de preparo. Isso aumenta a frequência de gafes e erros crassos na política externa, como viajar para um país e articular uma preferência clara em relação à política interna dessas nações, como foi o caso da Argentina e EUA. Não há problema nenhum em ter uma preferência, mas articular de uma maneira tão explícita gera um problema quando esse seu lado preferido perde a próxima eleição. E isso afeta negativamente a relação bilateral. Nós vemos uma acumulação de erros desnecessários que não são posicionamentos que geram algum valor para o Brasil. A solução seria colocar um chanceler experiente que possa controlar o presidente, mas acho pouco provável que isso aconteça. Então me parece bastante provável que o país continue passando vergonha com frequência nos próximos anos.

- Como você avalia a atuação do chanceler Ernesto Araújo?
- Ele simboliza a ruptura radical que muitos eleitores desejaram ao votar em Bolsonaro. O chanceler articula essa "mudança de verdade" com uma postura que gera muita tensão interna e dificuldades de o Brasil fazer cooperação com outros países. A grande maioria do Itamaraty discorda dos posicionamentos dele, e isso afeta gravemente a reputação do país no exterior. Ele tem concorrentes dentro do próprio grupo político [dos antiglobalistas], e os interlocutores dele têm muitas dúvidas sobre o poder que ele tem de verdade, o que é péssimo para um chanceler. Ele é um ministro extremamente fraco, mas mantém sua capacidade de fazer declarações absurdas e causar danos.

- Como você vê as alianças de Bolsonaro com ultranacionalistas como Donald Trump e Viktor Orbán, e a postura do brasileiro de contrariar parceiros de longa data no Oriente Médio ao se aliar com Israel?
-
De certa maneira, essas alianças deixam muito claro para onde esse governo quer ir e facilitam o entendimento da comunidade internacional sobre quais são as intenções de Brasília. Porém, isso causa problemas para o interesse nacional brasileiro, porque esses países, do ponto de vista econômico, agregam muito pouco: o valor do comércio do país com Israel, Polônia, Hungria e Itália é relativamente pequeno. Por isso que existe aí uma preocupação profunda entre representantes da economia brasileira sobre o possível impacto negativo que essas mudanças podem ter para a economia do país.

- Berlim e Brasília têm uma parceria estratégica desde 2002, mas ela esfriou principalmente após as turbulências do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Antes da reunião do G20 da semana passada, a chanceler federal alemã, Angela Merkel, e Bolsonaro trocaram farpas. Como você vê o futuro da relação entre os dois países?
- O espaço para a cooperação bilateral diminuiu bastante, porque em várias áreas importantes, como mudança climática e multilateralismo, o Brasil mudou radicalmente de direção. O ministro do Exterior alemão, Heiko Maas, esteve neste ano no país para avaliar como é possível continuar com essa parceria estratégica, mas certamente será necessário adaptá-la às novas circunstâncias e ser muito mais modesto a possíveis resultados.

- Como você avalia o alinhamento do Brasil com os EUA? Até agora, quais foram os ganhos para Brasília?
- Houve ganhos pontuais, ou seja, o Brasil faz parte agora dos países aliados fora da Otan, o que facilita a cooperação militar. Mas com as duas questões fundamentais que Washington quer de Brasília, que são o apoio para resolver a crise na Venezuela e a ajuda para limitar a influência chinesa na América Latina, o Brasil não conseguirá contribuir. Em função disso, parece-me que a relação dificilmente se aprofundará da maneira que o governo brasileiro espera.

- Como você vê o futuro das relações do Brasil com a China e com a Europa?
- No momento há algo interessante acontecendo: uma parte do governo quer se aproximar dos EUA e, a outra, manter os laços com a China. Em breve, o Brasil terá que tomar decisões muito importantes que dificultam uma estratégia de ficar bem com os dois lados: a primeira é se Brasília fará parte ou não da iniciativa "One Belt One Road". Washington quer que o Brasil não participe; já a China, obviamente, tem a expectativa de que isso ocorra. A segunda questão é em relação ao 5G: os EUA pressionam para que o Brasil possa banir a Huawei, e grande parte dos técnicos quer que a empresa participe da construção da rede brasileira.

Em relação à União Europeia, a relação vai se aprofundar devido ao fechamento do acordo de livre-comércio com o Mercosul. Mas sempre há a ressalva de que os líderes europeus têm plena consciência da hostilidade do governo brasileiro em relação ao projeto europeu, e isso, fora o âmbito comercial, vai limitar qualquer tipo de cooperação.

- O governo Bolsonaro reduziu o papel político do país no Mercosul e na crise da Venezuela. Quais são as consequências de Brasília com menos influência regional para o futuro da região?
- O Brasil não tem uma estratégia clara nem para o Mercosul nem para a América do Sul. Em função disso, a região não sabe como responder à postura brasileira, e há um vácuo de liderança na América do Sul. Isso é agravado pelo fato de o Brasil ter que encarar muitos desafios internos e ter muita dificuldade de governar. Isso significa que nenhum projeto regional irá avançar nos próximos anos, e a região continuará à deriva, sem um plano brasileiro crível para resolver a crise da Venezuela ou, pelo menos, exercer uma influência positiva naquele país.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Diretor da Cepal avalia crise na cooperação técnica brasileira - Carlos Mussi

Diretor da Cepal avalia crise na cooperação técnica brasileira - Carlos Mussi

FioCruz Brasília, 27/06/2019
Com a redução de recursos econômicos, a “cooperação micro” – promovida individualmente por órgãos e entidades públicas – manterá a cooperação brasileira em atividade. Foi o que sustentou o diretor do escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em Brasília, Carlos Mussi, durante o X Ciclo de Debates: Cooperação Internacional na América Latina. A representante da Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil, Socorro Gross, coordenou a mesa – realizada em 27 de junho, no auditório interno da Fiocruz Brasília.
Segundo ele, em função do alcance delimitado, essas ações tendem a ter orçamento e continuidade assegurados. “Apesar de geralmente não levarem a identidade do país, e sim da instituição envolvida, são mais estáveis”. De acordo com Mussi, desde o governo de Dilma Rousseff, há uma adequação das atividades de cooperação à disponibilidade de recursos econômicos.
Mussi avalia que independentemente de quais posições forem adotadas nas políticas externa e governamental brasileira, instituições como a Fiocruz conseguirão manter viva a cooperação Sul-Sul em razão da demanda permanente por novas tecnologias e por bons serviços públicos. “Haverá sempre um nicho para cooperação em áreas especializadas, como é o caso da saúde”.
Fiocruz e Opas/OMS
Socorro Gross destacou a relação entre a Fiocruz e a Opas, instituições centenárias que trabalham com saúde. Ela lembrou que antes do surgimento do conceito de cooperação Sul-Sul, a Organização promovia ações de cooperação internacional em países do Sul Global. “É necessário pensar a cooperação a partir da Agenda 2030 de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. Não podemos esquecer da importância da capacitação em pesquisa voltadas para a promoção do desenvolvimento global”, disse.
Convergência entre agendas
A partir das agendas da saúde e do desenvolvimento econômico-social, quais caminhos a Fiocruz, a Opas/OMS e a Cepal podem convergir para fortalecer a atuação conjunta? Foi com esse propósito que a diretora da Fiocruz Brasília, Fabiana Damásio, recebeu os representantes da Opas e da Cepal após o Ciclo de Debates.
Como atividade proposta pela Presidência da Fiocruz, a 3ª Feira de Soluções para a Saúde, que acontecerá no Ceará, entre 16 e 19 de outubro, foi a principal agenda da reunião. Edições anteriores da Feira de Soluções foram realizadas em Salvador, na Bahia, e em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul.
“As soluções industriais, sociais e de serviços para a saúde dão um caráter nacional e internacional ao evento, visto que nele são debatidas e divulgadas respostas para desafios globais de saúde pública”, explicou Fabiana Damásio. Nas Feiras, pesquisadores, movimentos sociais e instituições públicas e privadas são convidados a apresentar suas iniciativas nos mais diversos formatos. Confira aqui os destaques das edições anteriores do evento.
Segundo Mussi, a Cepal tem proximidade aos temas que são discutidos no evento. “Temos uma agenda interessante em tecnologia digital, inclusive com trabalhos em telemedicina e esses estudos podem ser compartilhados”, disse. Ele sugeriu o estabelecimento de parceria entre a Escola de Governo Fiocruz Brasília e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) para promoção de projetos que envolvam a Agenda 2030.
A representante da Opas/OMS ressaltou a importância da promoção de atividades em ciência e tecnologia que favoreçam o engajamento de jovens. “Apesar de ser difícil despertar o interesse deles, a perspectiva dos jovens traz consigo importante componente de inovação para a saúde”, disse.
As Feiras de Solução para a Saúde surgiram do projeto Plataforma de Vigilância de Longo Prazo para Zika vírus e microcefalia no âmbito do SUS, conduzido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs) da Fiocruz e pela Fiocruz Brasília.

Hong Kong: a foto da Liberdade


A foto do ano, a foto da liberdade, contra a opressão:
o Parlamento de Hong-Kong jamais será o da RPC.

Desigualdade no Brasil: um problema histórico, macroestrutural e político - Pedro H. G. Ferreira de Souza

Concordo em que a questão da desigualdade é uma das mais graves características do Brasil, desde sempre, e assim continuará sendo durante muito tempo ainda.
Não concordo, porém, em que os governos devam focar na desigualdade, e passar a redistribuir o estoque existente de riqueza – grande parte dela nas mãos, nos cofres, bolsos, patrimônio e contas externas dos muito ricos, disso estou consciente – pois isto não me parece sustentável e pode até diminuir o crescimento medíocre que já temos desde os anos 1980.
Acredito que o governo, qualquer governo, em qualquer época e regime político, deve se fixar nos ganhos de produtividade, que é o que faz a diferença no longo prazo, e é a única coisa sustentável, desde que atuando nos focos corretos da produtividade: formação de capital humano, infraestrutura e ambiente de negócios, num ambiente de máxima liberdade econômica.
Políticas distributivas "vingativas" não são sustentáveis e como mostra o exemplo da China, a desigualdade pode até aumentar desde que a taxa de crescimento mantenha um aumento constante da renda absoluta – não a relativa – dos mais pobres, trazendo-os para patamares maiores e melhores de bem-estar. Com esse crescimento, que é absolutamente necessário, os mais pobres deixarão de ser mais pobres, e sua progressão na escala de renda permitirá, e até impulsionará o aumento da produtividade, base da melhoria na distribuição de renda.
O livro pode registrar um retrato dramático, e realista, de nossa desigualdade, e até pode concordar com os dados de Piketty, mas não acredito que as prescrições desse economista francês, estritamente distributivas, sejam a melhor fórmula para corrigir estruturalmente o problema.
Resumindo: a despeito de toda a comoção nacional – basicamente política – em torno da questão, certamente dramática, da desigualdade no Brasil, mantenho minha convicção que antes da solução do problema social da desigualdade está o problema macroestrutural das bases efetivas de um processo de crescimento sustentado da economia, com transformação tecnológica e distribuição social dos seus resultados via mercados, não via Estado, que é no Brasil um dos principais fatores de desigualdade distributiva. Isso significa focar numa agenda da produtividade (sobretudo capital humano, infraestrutura e ambiente de negócios), antes do que numa agenda distributiva.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3 de julho de 2019

LIVRO SOBRE DESIGUALDADE É O MELHOR EM ANOS, DIZ CELSO ROCHA DE BARROS!

(Celso Rocha de Barros - Ilustríssima - Folha de S.Paulo, 30/06/2019) “Uma História de Desigualdade” é o melhor trabalho produzido pelas ciências sociais no país nos últimos anos. Caso seja sinal de uma tendência de conciliar rigor quantitativo com discussões teóricas historicamente relevantes, talvez estejamos prestes a assistir a uma grande era na reflexão sobre a sociedade brasileira.

O livro é fruto de tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade de Brasília. O autor, Pedro H. G. Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea, venceu com essa pesquisa prêmios conferidos pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Por isso o livro é, fundamentalmente, uma tese. Tem gráfico, tem tabela —e grande parte de seu atrativo vem disso. Para quem estuda sociedade brasileira, trata-se de uma leitura obrigatória, embora a discussão sobre dados possa afastar alguns leitores.

O Brasil é um caso de grande interesse para os estudos sobre desigualdade. Já fomos o país mais desigual do mundo e continuamos no pelotão da frente em todas as medidas nesse quesito. Ao nosso lado nessa nada honrosa lista estão outros países da América Latina e países africanos extremamente pobres e/ou afetados por guerras civis.

Quando a desigualdade russa disparou nos anos 1990, lembro-me de pessoas dizendo: “se continuar assim, vai ficar igual ao Brasil”. Quando um pesquisador estrangeiro fala de “brasilianização”, o mais provável é que esteja se referindo a algum cenário de desigualdade crescente.

Nada disso é novidade, mas é raro o assunto ser tratado com dados novos e procedimentos estatísticos rigorosos.

O trabalho de Souza e de seu orientador Marcelo Medeiros (também pesquisador do Ipea) ganhou notoriedade, inicialmente, como contestação da reivindicação petista de que a desigualdade havia despencado na era Lula. A tese mostra uma notável estabilidade na fração da renda controlada pelo 1% da população mais rica.

Sem a utilização dos dados obtidos por Souza, o quadro anterior indicava grande queda da desigualdade, causada pela redução (aí sim, bem grande) da distância entre os pobres e a classe média, ou entre os pobres e os não tão pobres.

Na verdade, é possível resumir o lulismo em um gráfico com os dois resultados. Os pobres conseguiram se aproximar do meio da distribuição da renda, mas os governos petistas não encostaram na renda dos mais ricos. É a redistribuição sem conflito, bem descrita nos trabalhos de André Singer.

Se Souza e Medeiros tivessem só ajudado a compor metade desse quadro, já seria uma bela contribuição. Mas o livro é bem mais que isso.

Sob um certo aspecto, é a história de uma proporção: a parte da renda nacional que está nas mãos dos ricos. Souza foi atrás de dados de tabelas do Imposto de Renda que refletem melhor a renda dos ricos que as pesquisas domiciliares por amostragem, base dos estudos anteriores. Os ricos —e, em especial, os muito ricos— aparecem pouco nessas pesquisas, que, portanto, tendem a subestimar a desigualdade total.

De posse dos dados e após reconstruir a história da taxação da renda no Brasil, Souza reconta a evolução da proporção da renda dos brasileiros controlada pelos ricos, com atenção especial ao 1% mais rico, de 1926 a 2013.

A despeito dessa façanha, o livro é bem mais do que um bom trabalho de sistematização de dados. O que os números revelam é interessantíssimo. Não há espaço aqui para discutir todos os resultados, nem mesmo os mais interessantes, mas vale a pena citar ao menos um, com seus desdobramentos.

A desigualdade brasileira caiu nos períodos democráticos (tanto no período de 1945 a 1964 quanto na fase atual) e subiu durante as ditaduras (tanto no Estado Novo quanto no regime militar). Souza é o primeiro a dizer que não se deve interpretar esse fato apressadamente.

É possível que a democracia tenha reduzido a desigualdade, dando voz aos pobres que exigiram redistribuição; também é possível que as ditaduras tenham levado a um crescimento da desigualdade, pois reprimiram movimentos sociais pró-redistribuição, como os sindicatos. Mas em cada uma das conjunturas-chave (as transições para a democracia e para regimes autoritários), vários outros fatos também podem ter sido decisivos.

Enquanto lia, ocorreu-me uma hipótese bem mais pessimista: talvez a democracia brasileira só tenha sido capaz de se sustentar enquanto foi possível redistribuir renda. Espero que as descobertas de Souza inaugurem um bom debate sobre o tema.

O livro oferece ainda apoio parcial às teses do economista Jeffrey Williamson, que mostrou que a desigualdade na América Latina não era tão mais alta do que a europeia, no final do século 19. Nossa excepcionalidade está no fato de que perdemos a “grande equalização” que ocorreu nos países ricos durante o século 20. As comparações internacionais, a propósito, são um dos pontos fortes do livro.

Os resultados de Souza nos fazem pensar sobre o quanto a falta de democracia nos fez perder a grande equalização. Está claro, porém, que não se trata apenas disso. Afinal, a Europa passou por grandes calamidades no século 20 que acabaram por reduzir a desigualdade. As guerras mundiais, as crises econômicas e a inflação destruíram uma quantidade imensa de riqueza.

Souza chama de “Jencks-Piketty” a hipótese de que a desigualdade só cai bruscamente pela ação de grandes reviravoltas históricas (em geral, desastres). O nome é uma homenagem aos pesquisadores Christopher Jencks e Thomas Piketty.

Souza, por sinal, parece inclinado a interpretar seus resultados à luz de Jencks e Piketty, relacionando os grandes movimentos da desigualdade às grandes crises brasileiras que causaram sucessivas mudanças de regime político.

Faz sentido e é consistente com os dados, mas ainda acho que se deva dar mais uma chance à hipótese de que a democracia foi crucial para derrubar a desigualdade, tanto aqui quanto nos países ricos.

O século 20 foi uma era de calamidades, mas também dos espetaculares ganhos sociais obtidos pela social-democracia e suas variantes onde ela teve chance de se desenvolver. As duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. É difícil isolar os efeitos da democracia e os das calamidades, mas vale a pena continuar tentando.

De qualquer forma, parece claro que precisaremos levar a sério a ideia de Mangabeira Unger de que “a imaginação antecipa o trabalho da crise” e começar a pensar em soluções para o problema da desigualdade que sejam compatíveis com alguma estabilidade institucional.

Supondo, é claro, que ainda estejamos, enquanto país, interessados em reduzir nossas desigualdades. Isso já foi mais certo.