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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Uma nova etapa da grande cooperação científica Brasil-França - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho publicado em livro que eu ainda não havia divulgado publicamente: 

1321. “Uma nova etapa da grande cooperação científica Brasil-França”, in: Journées Jeunes chercheurs en sciences humaines et Sociales: regards croisés France Brésil = Jornadas Jovens pesquisadores em ciências humanas e sociais. Olhares Cruzados França Brasil. Brasília: Embaixada da França no Brasil, Serviço de Cooperação e Ação Cultural (SCAC), Universidade de Brasília (UnB), Fundação Alexandre de Gusmão, 2019, 520 p.; ISBN: 978-85-5054-000-5; pp. 13-16. Relação de Originais n. 3367.


Uma nova etapa da grande cooperação científica Brasil-França

Paulo Roberto de Almeida
in: Journées Jeunes chercheurs en sciences humaines et Sociales: regards croisés France Brésil = Jornadas Jovens pesquisadores em ciências humanas e sociais. Olhares Cruzados França Brasil. Brasília: Embaixada da França no Brasil, Serviço de Cooperação e Ação Cultural (SCAC), Universidade de Brasília (UnB), Fundação Alexandre de Gusmão, 2019, 520 p.; ISBN: 978-85-5054-000-5; pp. 13-16. Relação de Originais n. 3367.

Este livro representa o feliz resultado de mais um empreendimento exitoso entre o Brasil e a França no campo das ciências humanas, mais especificamente entre a embaixada da França em Brasília, a Universidade de Brasília e a Fundação Alexandre de Gusmão, autarquia vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, na qual se enquadra o Instituto de Pesquisa de Relações Exteriores, atualmente sob minha direção. A ideia surgiu de uma conversa com a Dra. Mathilde Chatin, encarregada de missão junto ao Conselheiro de Cooperação e de Ação Cultural da embaixada, logo secundada por meio de contatos diretos com o Conselheiro Cultural, Alain Bourdon, a quem sou muito grato por todos os demais esforços de cooperação que temos mantido ao longo dos últimos anos em empreendimentos de caráter cultural e acadêmico, envolvendo ainda outros interlocutores de diferentes setores da vida cultural de nossos dois países.
A ideia inicial era a de oferecer uma oportunidade a que jovens pesquisadores nas diferentes vertentes das ciências humanas oferecessem seus trabalhos em curso ou já terminados – projetos de pesquisa, teses e dissertações já apresentadas, artigos e papers preparados no contexto acadêmico – a um comitê de seleção para posterior apresentação num seminário em Brasília, congregando os responsáveis pelas três áreas engajadas no exercício – a seção cultural da embaixada da França em Brasília, o IPRI-Funag e a assessoria internacional da Universidade de Brasília –, os professores e colaboradores selecionados para a avaliação desses trabalhos e os próprios jovens pesquisadores trabalhando sobre uma ampla gama de temas de interesse dos dois países no âmbito das ciências humanas. Tal como me foi apresentado pela Dra. Mathilde Chatin – autora de uma magnífica tese defendida no King’s College da Universidade de Londres sobre a política externa do Brasil, selecionada para publicação pela Funag –, o projeto me fez imediatamente relembrar um exercício precedente, mas quase esquecido nas dobras da história, sobre um precedente levantamento da cooperação Brasil-França no vasto terreno da ciência e tecnologia. Com efeito, uma parte significativa da rica cooperação Brasil-França ao longo das décadas precedentes tinha sido objeto de um encontro para balanço e avaliação, na parte de ciência e tecnologia, tal como publicada no livro coordenador por um francês, Guy Martinière, e um brasileiro Luiz Claudio Cardoso: France-Brésil: Vingt Ans de Coopération (Science et Technologie) (Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1989, 352p.; Collection “Travaux et Mémoires” de l’Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine, n° 44, Série Essai nº 4).
O novo exercício me parecia retomar o mesmo espírito de cooperação e de avaliação acadêmica das iniciativas bilaterais ou de projetos individuais que fizessem a ponte entre os dois países, com a peculiaridade de, nesse novo exercício proposto, limitar o campo aos trabalhos em ciências humanas e dirigir-se a jovens pesquisadores, ou seja, uma geração que vai continuar a trabalhar nos próximos anos em temas que continuarão a unir os dois países no grande espírito de osmose entre pesquisadores dos dois países que já tinha reunido os participantes daquele primeiro esforço de avaliação conduzido no final dos anos 1980. A variedade temática e a diversidade metodológica dos trabalhos selecionados para serem apresentados em Brasília testemunham da grande interface de interesses e da abertura epistemológica já consagrados nos múltiplos vínculos que existem entre dezenas de universidades e centros de pesquisa dos dois países, assim como da absoluta liberdade de produção que unem profissionais de terreno ou jovens acadêmicos em início de carreira em cada lado do Atlântico.
O número de propostas apresentadas representou um enorme desafio ao comitê de seleção, o que nada mais revela do que a interpenetração já existente naturalmente no terreno das humanidades nos dois países, o que parece confirmar a percepção existente. Com efeito, o Brasil ocupa, legitimamente, um lugar privilegiado na América Latina, junto com o México, no esforço francês de cooperação externa, seja na área científica e tecnológica, seja no grande terreno das humanidades, e são incontáveis os projetos conjuntos e as iniciativas individuais que, desde muito tempo, estão construindo pontes entre as comunidades respectivas de pesquisadores. A partir dos primeiros visitantes – André Thevet é incontornável na história – até os cientistas contemporâneos, passando por ilustres exemplos nas humanidades e nas artes – desde Auguste de Saint-Hilaire, Debret, Taunay, até Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss –, a França tem estado presente na própria construção das ciências humanas no Brasil, e certamente seus pesquisadores constituem uma parte importante de um processo quase equivalente ao ocorrido no terreno da capacitação industrial, e que poderíamos chamar de “substituição de importações” na teoria social brasileira, tal como conduzida na academia brasileira nas últimas três ou quatro décadas. Com a particularidade que essa “substituição” nunca terminou, de fato, mas continua a ser continuamente alimentada pelo fecundo intercâmbio de pesquisadores, jovens e maduros, que confirmam o grande interesse dessa interação exemplar a mais de um título.
Sendo eu mesmo um membro da comunidade “francófona” da academia brasileira – tendo feito todos os meus estudos universitários em francês, ainda que exibindo três diplomas, de graduação, de mestrado e doutoramento, de universidades da Bélgica –, só posso me congratular com o sucesso deste novo empreendimento cultural ao qual emprestei, desde o início, o entusiástico apoio do IPRI e da Funag. Os materiais coletados neste volume, em francês e em português, oferecem um rico panorama das novas direções de pesquisa que estão sendo diligentemente perseguidas por jovens acadêmicos dos dois países. Estou certo de que esses trabalhos frutificarão em projetos mais ambiciosos nos anos à frente e sinto-me orgulhoso pelo fato de que, ao juntar minha qualidade de acadêmico brasileiro “francófono” e de diplomata encarregado de um centro de pesquisa a serviço da diplomacia brasileira, pude agregar meu pequeno grão de colaboração pessoal ao grande caudal da cooperação bilateral Brasil-França numa área que está no centro de meus próprios estudos e pesquisas acadêmicas.
Desde as iniciativas pioneiras, no imediato pós-Segunda Guerra – mas tomando impulso nos intensos intercâmbios anteriores, até mesmo antes da consolidação de um Estado independente no Brasil – até os projetos contemporâneos unindo os dois países nas mais diferentes vertentes das atividades governamentais, empresariais e acadêmicas, as afinidades eletivas entre o Brasil e a França se reforçam continuamente, graças a projetos como o aqui apresentado. Em nome do Itamaraty e da Fundação Alexandre de Gusmão, meus renovados agradecimentos à cooperação cultural da embaixada da França em Brasília por esta magnífica iniciativa que agrega mais um tijolo na construção de pontes e vias de interação entre os dois países, e meus votos de renovada confiança na continuidade desse tipo de intercâmbio e mútuo enriquecimento nos anos à frente.

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI)
Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), Ministério das Relações Exteriores
Brasília, 1 de dezembro de 2018

 [Objetivo: servir como introdução ao volume; finalidade: Brasil-França: “Jornadas Jovens Pesquisadores em Ciências Humanas”] 

domingo, 29 de dezembro de 2019

O gol (contra) do chanceler brasileiro - Jamil Chade (UOL)


Fomos surpreendidos, na última sexta-feira do ano (27/12), com uma declaração do chanceler, feita obviamente em tom defensivo, elogiando a sua (bem, isso é um exagero) política externa (que seria, segundo ele, a do povo brasileiro) e criticando a imprensa (sempre essa malvada, sempre do contra) pelas acusações inverídicas e malévolas contra as orientações diplomáticas do governo, e suas incontáveis vitórias.
Teve até uma tentativa de "popularizar" o panegírico apelando a uma linguagem de futebol.
Dizem, mas nem sempre é verdade, que elogio em boca própria é vitupério. Pode ser, mas vamos dizer que o chanceler descreveu o que, segundo ele, são conquistas da diplomacia desse governo.
O problema é que a descrição é incompleta e pouco verídica, segundo este jornalista que é um fino observador da política externa brasileira, não pelas declarações grandiosas que seus representantes fazem da própria, mas na prática das ações e omissões do governo.
Dou a palavra ao jornalista, como é hábito deste blog, que sempre reporta o que encontra de interessante, a favor e contra, para melhor debatermos a questão.
Não esquecer que da última vez que fiz isso, fui exonerado sumariamente do IPRI.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29/12/2010


O gol (contra) do chanceler brasileiro
Jamil Chade
UOL Notícias, 29/12/2019


O chanceler Ernesto Araújo, no pseudo-balanço de suas conquistas em 2019 publicado na noite de sábado, atacou a imprensa e garantiu que a credibilidade do país pelo mundo avançou sob sua gestão. Além disso, voltou a assegurar que sua diplomacia não era ideológica....
Numa estratégia mais que conhecida entre demagogos, ele negou a realidade...

Declaração de Ernesto Araújo (no Itamaraty):

Ministro Ernesto Araújo faz balanço da política externa brasileira em 2019


Ao longo do ano, tive acesso a mais de uma dezena de telegramas confidenciais. Alguns com sua própria assinatura. E as instruções mostram que sua política externa é essencialmente ideológica, com raros traços de realismo impostos por militares e exportadores agrícolas nacionais. Também percorri, como faço há quase 20 anos, os corredores da ONU, OMC, OMS, OIT e tantos outros organismos de forma quase diária. E, nesses fóruns internacionais, passamos ao longo dos últimos doze meses de alvos de chacota a motivo de uma imensa preocupação.
O que era "divertido" no início do ano se transformou em um pesadelo para governos que, por décadas, viram o Itamaraty como referência.

Mas a realidade é que, no seu balanço do ano, ele não citou que seu ministério se recusou a dar à imprensa por dias os detalhes do tratado assinado com a UE, enquanto repetia que o acordo era "histórico". Dias depois, descobriu-se que as cotas negociadas para as exportações brasileiras eram inferiores aos patamares considerados como "mínimos" por antigos governos brasileiros.
Ex-negociadores sem qualquer relação com o governo Lula ou Dilma comentaram ao descobrir os detalhes: "entregamos tudo". Meses depois, foi a vez de a própria UE indicar em um encontro que havia levado muito mais que cedido na negociação com o Brasil.
Tampouco ele explicou que a assinatura do tratado não significa sua ratificação. Assustados diante da postura do Brasil em temas climáticos, dezenas de deputados pela Europa alertaram não vão dar o sinal verde ao tratado comercial nas atuais condições. Até mesmo aqueles que defendem o acordo chamaram a política ambiental de Bolsonaro de "abominável...
Com os EUA, Ernesto comemorou que um telefonema de Bolsonaro à Trump derrubou a tentativa de os EUA impor uma sobretaxa ao aço brasileiro. Mas ele não contou que seu governo levou um susto quando acordou e leu o Tweet de Trump com o anúncio de que taxaria o Brasil. Um aliado faz ameaças pelas redes sociais, sem antes avisar o parceiro?
Por semanas, a mera ameaça da Casa Branca levou o setor siderúrgico nacional a ver uma suspensão de todos os novos contratos com clientes americanos.
O que ele comemora é algo que não deveria nem mesmo ocorrer. Mas, ainda assim, o conteúdo do telefonema continua sem a devida transparência. Os americanos pediram algo em troca de retirar a ameaça? Houve uma negociação ou uma futura promessa?\

Ernesto tampouco explicou como decidiu abrir o mercado do trigo para o produto americano, em detrimento dos produtores argentinos, nossos aliados no Mercosul.
Ele não contou que, depois de descobrir uma carta de Pompeo para a OCDE em que não incluía o Brasil entre os países que a Casa Branca queria vez na entidade, o governo foi pedir explicações aos EUA pela atitude. Nas horas seguintes à revelação, os americanos garantiram nas redes sociais que continuavam a apoiar a adesão do Brasil ao clube dos ricos. Mas jamais mandaram uma nova carta para a OCDE para "corrigir" o texto assinado por Pompeo. Na diplomacia, o que ainda conta é a correspondência oficial.

O chanceler não contou no vídeo que um de seus melhores embaixadores teve sua eleição vetada pela Índia para presidir uma negociação na OMC. O motivo: os indianos acusavam o Brasil de ter abandonado os interesses dos países emergentes ao aceitar as imposições americanas na OMC.
Ernesto também se esqueceu de dizer que nossas relações com Israel estão baseadas em uma aliança com um primeiro-ministro indiciado por corrupção. Tampouco mencionou em seu balanço do ano que apostou em Macri. E perdeu. Que apostou em Salvini. E perdeu. Que menosprezou Greta. Mas o gol nem teve tempo de ser comemorado. No contra-ataque, a pirralha foi eleita a pessoa do ano. Ele não contou que seu chefe ofendeu líderes estrangeiros, suas esposas e seus pais assassinados.
Ernesto não contou que sua aliança na Europa é com o governo que é acusado de abandonar a democracia, silenciar a imprensa e acabar com a independência do Judiciário.
Valores brasileiros? Bom saber.
Em seu balanço, o chefe da diplomacia de Bolsonaro (parece até paradoxo) não mencionou que a OIT chegou a colocar o Brasil na lista suja dos países suspeitos de violar leis trabalhistas. Tampouco aparece uma referência ao fato de ter sido 37 vezes denunciado na ONU por violações de direitos humanos. Sem contar o processo que eventualmente pode sofrer no Tribunal Penal Internacional.
Mais recentemente, o sub-Comitê contra a Tortura da ONU chegou à conclusão que o Brasil viola seus compromissos internacionais no combate à tortura. Mas, claro, para um governo que elogia Pinochet, tal conclusão deve até ser considerada como um golaço.
Até hoje, não sabemos por qual motivo somos amigos da ditadura saudita. Ou por qual motivo felicitamos num comunicado de imprensa a eleição da Mauritânia para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Na Mauritânia, mulheres vão para prisão por adultério e a lei permite a pena de morte em alguns casos contra homossexuais.
Ele também não disse que o projeto de mudança da embaixada para Jerusalém viola resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Para 2020, ele não mencionou que vamos sediar uma reunião promovida pelos EUA e rejeitada por grande parte dos principais atores por ser considerada como uma ofensiva anti-Teerã.
Quando foi eleito ao Conselho de Direitos Humanos, Ernesto não contou que barganhou votos e que a vitória não teve qualquer relação com direitos humanos. Ah, e não contou que fez campanha contra uma candidatura da Costa Rica para tentar frear os venezuelanos na ONU. Claro, o risco era de que os centro-americanos roubassem os votos do Brasil.

Ficou ainda devendo uma resposta ao STF, que lhe cobrou transparência e a entrega das instruções que ele enviou aos diplomatas sobre questões de gênero. Tampouco contou que suas propostas de modificação de textos de resoluções sobre mulheres foram amplamente derrubadas em reuniões em que eu estive presente.
Quando Ernesto pede em seu vídeo que se acredite apenas na versão oficial e que o público deixe de ler a imprensa, ele está dizendo: não verifiquem os detalhes, não descubram o que dizem os telegramas confidenciais, não busquem saber o que ocorreu nos bastidores.
Fiquem na arquibancada. Queremos torcida. Não queremos cidadãos.
VAR? Impossível diante da qualidade da filmagem.
Enfim, se queremos falar de um balanço de política externa e o papel da imprensa, vamos deixar as comparações do futebol de lado. Não apenas a realidade é mais complexa. Mas recorrer a isso é subestimar a inteligência dos cidadãos e até uma ofensa ao futebol.
Em um ano no comando do Itamaraty, Ernesto de fato reposicionou o Brasil no mundo. Mas, desta vez....Opa, opa.. calma lá...mais um gol da Alemanha.

“O Livro Negro do Comunismo no Brasil”, de Gustavo Marques - Resenha de Euler de França Belém

Euler de França Belém
Euler de França Belém

Diplomata lança “O Livro Negro do Comunismo no Brasil”

A história do golpismo e do stalinismo das esquerdas brasileiras é pouca contada pelos historiadores. Prevalece uma visão heroica
Há quem acredite que comunistas são advogados renhidos da democracia. Certo, quando estão na oposição – quando não estão no poder –, os comunistas, para abrir espaço para seus projetos tático-estratégicos, se tornam apologistas da democracia.
Mas comunistas não veem a democracia como valor universal, e sim como “etapa” para alguma coisa, quer dizer, para o comunismo, que, ao se tornar poder, expurga a democracia. Carlos Nelson Coutinho, intelectual de esquerda respeitável, escreveu um livro, “A Democracia Como Valor Universal”, no qual sugere que a democracia é um fim, não é uma etapa. Não é o que pensam – ou pensavam – os comunistas.
Gustavo Henrique Marques Bezerra: autor de uma pesquisa exaustiva sobre o comunismo no Brasil | Foto: Facebook
Em 1935, o Brasil não vivia sob ditadura, mas é possível qualificar o governo do presidente Getúlio Vargas de semi-autoritário (entre 1937 e 1945, era uma ditadura totalitária, mas não tão cruenta quanto a nazista, sobretudo, e a fascista). Os comunistas ligados a Luiz Carlos Prestes e Olga Benario, bancados pela União Soviética de Óssip Stálin, decidiram dar um golpe de Estado e se deram mal. Acabaram presos. A alemã Olga Benario foi deportada para a Alemanha de Adolf Hitler e, infelizmente, morreu num campo de concentração nazista. (Prestes autorizou a execução de Elza Fernandes porque temia-se que fosse espiã da polícia. Não era. Mas quase ninguém fala disso. O jornalista Sérgio Rodrigues publicou um livro corajoso sobre o assunto-tabu, “Elza, a Garota: A História da Jovem Comunista que o Partido Matou”.)
Luiz Carlos Prestes: homem de Stálin no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1940 | Foto: Reprodução
Os comunistas de 1935, os da Intentona Comunista, não queriam arrancar Getúlio Vargas do poder para instalar uma democracia plena. Na verdade, planejavam retirá-lo do poder para implantar uma ditadura comunista no país – sob inspiração de Stálin, um dos mais cruéis assassinos da história, tendo mandado matar de 25 milhões a 30 milhões de pessoas, única e exclusivamente por discordarem dele. Aliás, muitos foram mortos por pura paranoia, porque nem eram adversários de Stálin e do regime que assumiu o poder em outubro de 1917, com Lênin na linha de frente.
Depois de liderar a Coluna Prestes, um movimento militarista de cunho praticamente messiânico, Luiz Carlos Prestes se tornou comunista e voltou ao Brasil, na década de 1930, devidamente catequizado pelo Comintern, organização dirigida por asseclas de Stálin, como o búlgaro Georgi Dimitrov. Prestes seria o Stálin patropi. Mas, como não soube avaliar a correlação de forças – dado que era voluntarista, pecadilho que comunistas rejeitam –, acabou preso pela polícia de Getúlio Vargas. Mais tarde, ante a tática do “mal menor”, aliou-se a Getúlio Vargas (que entregou sua mulher aos nazistas) contra a UDN de Eduardo Gomes, Juarez Távora e Carlos Lacerda.
Carlos Marighella: o líder da ALN | Foto: Reprodução
Em 1962, a esquerda se dividiu. De um lado, ficou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão, e, de outro, o Partido Comunista do Brasil (PC do B). O primeiro defendia um caminho pacífico para o socialismo, com “etapas necessárias”. O segundo, adepto da China e, depois, da Albânia – e defensor do legado de Stálin –, defendia a luta armada.
Depois do golpe civil-militar de 1964, as esquerdas tradicionais se atomizaram. O PCB continuou moderado, avaliando que a luta armada mais fortaleceria do que enfraqueceria a ditadura. O PC do B enviou jovens, quase meninos, para organizar um campo guerrilheiro no Sul do Pará e Norte de Goiás (hoje, Tocantins). Isto já em 1966. O grupo, liderado por João Amazonas, Osvaldão Orlando da Costa e Maurício Grabois, acabou descoberto em 1972 e, em 1974, estava inteiramente dizimado. Era uma guerra entre os comunistas e as Forças Armadas. Não era uma brincadeira. Mas é preciso admitir que, a partir de determinado momento, com pessoas presas e não mais capazes de reagir, os militares começaram uma matança, o que merece a qualificação de barbárie e genocídio. Morrer na batalha é uma coisa – tem sua lógica –, mas ser morto, depois de capturado e não ser capaz de reação, é assassinato.
Carlos Eugênio Paz, líder da ALN, admitiu que guerrilha recebeu dinheiro até da Coreia do Norte | Foto: Reprodução
O PC do B pretendia a retomada da democracia, com sua Guerrilha do Araguaia? A história contada pelos comunistas sugere que sim. Mas isto é fake news. Os comunistas pretendiam derrubar a ditadura para substitui-la por outra ditadura – só que de esquerda. A luta pelo retorno da democracia era, a rigor, uma batalha de políticos pacíficos – como Tancredo Neves e Ulysses Guimarães –, quase sempre ridicularizados pelas esquerdas.
Outros ramos da esquerda – Ação Libertadora Nacional (ALN – liderada por Carlos Marighella), MR-8 (do capitão Carlos Lamarca) e VAR-Palmares, entre outros – se organizaram também em núcleos guerrilheiros. O objetivo de tais grupos era derrubar a ditadura civil-militar e, claro, instalar outra ditadura no país – só que de esquerda. As Forças Armadas, que não queriam “entregar” o poder, reagiram rapidamente e, em pouco tempo – inclusive com o apoio de esquerdistas, como o Cabo Anselmo (e outros menos citados, como Gilberto Prata) –, destruíram as guerrilhas urbana e rural.
Os guerrilheiros brasileiros receberam dinheiro de Cuba e até da Coreia do Norte (a história foi revelada por Carlos Eugênio Paz, o Clemente, último comandante da ALN).
A história cristalizada pelas esquerdas sugere que os guerrilheiros estavam, ao lutar contra a ditadura dos militares e de muitos civis, promovendo a volta da democracia ao Brasil. Nada disso é verdadeiro. Mas fica evidente que, perdendo o combate, tais esquerdas ganharam o debate histórico. Tanto que a luta pacífica pelo retorno à democracia é muito menos pesquisada do que a batalha dos guerrilheiros.
Nos combates ocorridos entre o fim da década de 1960 e início da década de 1970, militares e guerrilheiros mataram várias pessoas. Os mortos da esquerda são lembrados de maneira gloriosa. Entretanto, os que foram mortos pela esquerda nem são lembrados – e são muitos, vários deles inocentes, como guardas de bancos. Tais assassinados não têm a história para ampará-los (foram excluídos). Tanto que suas famílias não têm direito a indenizações.
Por que isto? Como a esquerda fala em nome do “bem da humanidade” parece que lhe é facultado cometer as maiores atrocidades. O presente “ruim” afinal levará a futuro “radioso”. O comunismo, a “pátria” dos iguais, é o nirvana das esquerdas. Como notou o filósofo italiano Norberto Bobbio, os meios corrompem os fins. Quem mata em nome de um futuro paradisíaco – ou percebe a democracia como etapa (e não deixa de ser curioso como, no momento, a esquerda está preocupada com a crise da democracia) –, sacrificando os indivíduos do presente, não constrói paraíso algum. Stálin e seu discípulo chinês, Mao Tsé-tung, cometeram as maiores atrocidades – mataram, juntos, 100 milhões de pessoas – e não edificaram a sociedade perfeita.
Recentemente, o historiador Hugo Studart escreveu um livro seminal sobre a Guerrilha do Araguaia, mas, finalmente, incluindo os militares – cujas vozes se fazem presentes. Trata-se de uma tese de doutorado rigorosa e nuançada – apresentada na Universidade de Brasília (UnB). Engana-se quem avalia que seja a “favor” dos militares. Pelo contrário, mostra, de maneira detalhada, o massacre que cometeram no Araguaia (e revela a cadeia de comando militar, como ninguém havia feito antes, o que possibilita uma melhor compreensão do outro lado da guerra, o das Forças Armadas). Mesmo assim, o livro tem sido “condenado” por desarvorados militantes do PC do B. O motivo é prosaico: o pesquisador ouviu os militares e, por assim dizer, fez uma reforma agrária no tema Guerrilha do Araguaia – democratizando as versões. A história da batalha era “propriedade privada” do PC do B – que a trata como uma coisa heroica, sem contradições (ignora-se inclusive as críticas pioneiras de Pedro Pomar, que pertencia ao partido, mas soube denunciar o equívoco da guerrilha).
João Amazonas, líder histórico do PC do B | Foto: Orlando Brito
Felizmente, para a compreensão da história – que só é história quando se torna inclusiva, quer dizer, quando inclui todos os lados da questão –, a Guerrilha do Araguaia não é mais latifúndio do PC do B e agregados.
Como Hugo Studart, o diplomata Gustavo Marques é um pesquisador corajoso ao lançar “O Livro Negro do Comunismo no Brasil” (Jaguatirica, 872 páginas). Ele já começa a receber “pedradas”, como o doutor pela UnB. Assim como foi estocado, em tempos idos, Osvaldo Peralva, o ex-comunista que publicou um livro devastador sobre os bastidores dos comunistas, “O Retrato” (Três Estrelas, 440 páginas).
Sinopse do livro: “Inspirada em ‘O Livro Negro do Comunismo’, publicado por Stéphane Courtois [e outros] na França em 1997, esta obra, de autoria do diplomata Gustavo Henrique Marques Bezerra, versa sobre a trajetória do movimento comunista e sua influência na vida política e cultural brasileira desde o advento do anarquismo e do marxismo, no final do século 19, até o começo dos anos 1990, com a falência dos regimes comunistas do Leste Europeu. O livro, que tem características monumentais – pois é fruto de mais de 10 anos de intensa pesquisa histórica ampla e minuciosa, em mais de 400 títulos entre fontes primárias (depoimentos, memórias, entrevistas, documentos) e secundárias, nacionais e estrangeiras, e que se divide em seis capítulos, com quase 900 páginas e milhares de notas –, coloca ênfase em fatos geralmente omitidos e/ou pouco explorados pela historiografia brasileira, majoritariamente de esquerda, que revelam o ‘lado obscuro’ dos comunistas e seus aliados no Brasil ao longo do século 20”.